Em vez da “Contribuição extraordinária de solidariedade” uma “Contribuição solidária de mobilidade”

Uma alternativa, entre outras, consistiria em criar uma “contribuição solidária de mobilidade” que abrangeria muito mais pessoas: as que têm automóvel.

Chamado a apreciá-la, o Tribunal Constitucional, por maioria, decidiu que as respetivas normas não se achavam feridas de inconstitucionalidade (n.ºs 69 e segs.), por, designadamente, a sujeição dos pensionistas a uma contribuição para o financiamento do sistema de segurança social, de modo a diminuir a necessidade de afetação de verbas públicas, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental (que incluíam também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas), se apoiar numa racionalidade coerente com uma estratégia de atuação cuja definição cabia ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador.

A incidência de um tributo parafiscal sobre o universo de pensionistas como meio de reduzir excecional e temporariamente a despesa no pagamento de pensões e obter um financiamento suplementar do sistema de segurança social seria uma medida adequada aos fins que o legislador se tinha proposto realizar.

Acrescia que, em termos práticos, ela corresponderia, em grande parte, a uma extensão da medida de redução salarial já aplicada aos trabalhadores do setor público em 2011 e 2012, e fora mantida em 2013, a qual no acórdão n.º 396/2011 também se havia considerado não ser desproporcionada ou excessiva.

 

2. Salvo o devido respeito, afiguram-se, contudo, bem mais convincentes os argumentos aduzidos pelos juízes que votaram vencidos (desde logo quanto à natureza de imposto dessa contribuição financeira) muito mais que o discurso argumentativo do acórdão.

Assim, o Conselheiro Pedro Machete, ao falar na quebra de conexão entre a contribuição e o benefício; o Conselheiro Cunha Barbosa, ao aludir a imprevisibilidade e a irracionalidade da medida; a Conselheira Catarina Sarmento e Castro, ao qualificá-la, por recair sobre uma espécie de contribuintes, como um imposto de classe; a Conselheira Maria José Rangel de Mesquita, ao salientar a violação do direito à segurança económica dos idosos consignado no art. 72.º da Constituição; e o Conselheiro Fernando Vaz Ventura, ao apontar a infração do princípio da igualdade.

De resto, o próprio Tribunal reconheceria (n.º 79) “que as pessoas na situação de reforma ou aposentação, tendo chegado ao termo da sua vida ativa e obtido o direito ao pagamento de uma pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de segurança social, têm expectativas legítimas na continuidade do quadro legislativo e na manutenção da posição jurídica de que são titulares, não lhes sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação a um possível desenvolvimento da atuação dos poderes públicos suscetível de se repercutir na sua esfera jurídica”.

E, na verdade, são aqui sujeitos passivos os aposentados, reformados e pensionistas, com o peso da idade, tantas vezes com o peso da doença e, em não raros casos, na grave situação social que se vive, a terem ainda de ajudar os filhos desempregados ou portadores de deficiência. Mesmo admitindo – sem conceder – que não se trata de verdadeiro e próprio imposto (logo, inconstitucional, por ofender a regra da unicidade do imposto sobre o rendimento pessoal do art. 104.º, nº 1, 1.ª parte, da Constituição), atinge-se o princípio de que as contribuições financeiras em favor das entidades públicas devem ter em conta as necessidades do agregado familiar [os arts. 67.º, n.º 2, alínea f), e 104.º, n.º 1, 2.ª parte não podem circunscrever-se aos impostos stricto sensu).

Além disso, é sobretudo afetada a geração dos que sofreram, na juventude, a ditadura e as guerras, dos que conseguiram construir a democracia entre 1974 e 1976 e dos que, nas décadas seguintes, pelo seu trabalho, fizeram do Portugal de hoje um país melhor, em todos os planos, do que o Portugal de há quarenta anos. Aqueles que agora ocupam o poder nos partidos do chamado arco da governação receberam esse legado sem para ele pouco ou nada terem contribuído.

 

3. Por sinal, no acórdão nº 862/2013, de 19 de dezembro, sobre a “convergência de pensões” entre o setor público e o setor privado (e esse votado por unanimidade) o Tribunal Constitucional definiu em rigor o princípio de proteção da confiança (n.º 27).

“A proteção da confiança é uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do art. 2.º da Constituição. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.

“A metodologia a seguir na aplicação deste critério implica sempre uma ponderação de interesses contrapostos: de um lado, as expectativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente; do outro, as razões de interesse público que justificam a não continuidade das soluções legislativas. Os particulares têm interesse na estabilidade da ordem jurídica e das situações jurídicas constituídas, a fim de organizarem os seus planos de vida e de evitar o mais possível a frustração das suas expectativas fundadas; mas a esse interesse contrapõe-se o interesse público na transformação da ordem jurídica e na sua adaptação às novas ideias de ordenação social designadamente com base nos princípios da sustentabilidade e da justiça intergeracional [arts. 9.º, alínea d), 66.º, n.os 1 e 2, 81.º, alínea a) e 101.º da Constituição]. (…)”.

Não foi um adequado exercício de ponderação aquele que fez o Tribunal em abril, ao sacrificar as legítimas expectativas e a reserva de confiança dos aposentados, reformados e pensionistas.

 

4. Quanto à sustentabilidade do sistema de segurança social, não se nega a existência de problemas. Só que importa não esquecer:

a) Que a segurança social está concebida para proteger os cidadãos na velhice (art. 63.º, n.º 3 da Constituição), e não para serem os idosos a sustentá-la;

b) Que os aposentados já contribuíram para ela quer através dos descontos legalmente estabelecidos quer através de impostos que pagaram e que serviram para assegurar as pensões dos seus ascendentes;

c) Que não são medidas avulsas e conjunturais que resolvem o problema, mas sim, como consta ainda do acórdão n.º 862/2013, soluções referenciadas à unidade do sistema e não apenas a uma das suas parcelas (n.º 42);

d) Que a sustentabilidade, a prazo, do sistema – e até do país – passa, além do crescimento económico e da mudança do clima psicológico, por uma política de natalidade, com benefícios fiscais às famílias com mais de um filho, com a organização do trabalho de modo a permitir a conciliação da atividade profissional e da vida familiar [arts. 59.º, nº 1, alínea b) e 67.º, n.º 2, alínea h) da Constituição], uma rede nacional de creches e outras formas de apoio social à família [art. 67.º, n.º 2, alínea b)] e o fim da gratuitidade do aborto realizado em serviços públicos a pedido da mulher.

A sustentabilidade e, em última análise, a solidariedade entre gerações implica a consideração de uma cadeia de gerações, passadas, presentes e futuras. Implica um contrato entre elas, avalizado pelo Estado e pelas instituições da sociedade civil. Exige um sentido de responsabilidade por todos assumido. E um Estado de Direito democrático não pode deixar de ser um Estado de Justiça.

 

5. Tão pouco se ignora a necessidade, neste momento, de receitas do Estado para cobrir o défice orçamental e para levar a cabo ações de impulso ao crescimento económico.

No entanto, ao contrário do que o Tribunal afirmou no acórdão n.º 187/2013, vislumbram-se alternativas.

Uma alternativa, entre outras, consistiria em criar, em vez de “contribuição extraordinária de solidariedade” (que apenas abrange os aposentados, reformados e pensionistas), uma “contribuição solidária de mobilidade” que abrangeria muito mais pessoas: as que têm automóvel. E que poderia traduzir-se em acrescentar ao atual imposto de circulação um montante, por exemplo, entre 50 e 100 euros por automóvel, tendo em conta a cilindrada e a antiguidade da viatura.

Deve haver em Portugal três, quatro, cinco milhões de automóveis. Não se vai a nenhuma cidade, vila ou aldeia que deles não esteja repleta. E, a despeito da crise, tem aumentado, nos últimos meses, o número de carros vendidos. Estrangeiros que visitam Portugal, principalmente dos países nórdicos, mais ricos do que nós, ficam admirados com a massa de automóveis que veem nas ruas. Ao mesmo tempo, tem vindo a diminuir a utilização dos transportes públicos; e não é somente por as pessoas ficarem em casa ou andarem mais a pé.

Quase toda a gente reconhece o erro que foi investir em mais e mais auto-estradas, em vez de se renovar e ampliar a rede ferroviária. Mesmo assim, os comboios entre Porto e Lisboa (ou entre Braga e Faro) e os suburbanos funcionam satisfatoriamente e são excelentes os metropolitanos de Lisboa e do Porto. Assim como se afigura razoável a rede de autocarros e de camionagem. Mais pessoas a irem em transporte público para o emprego auxiliaria a diminuir o défice das empresas do Estado e dos municípios e, com isso, a diminuir os encargos dos contribuintes.

O produto desta “contribuição solidária de mobilidade” poderia, por conseguinte, compensar, talvez de longe o produto da dita “contribuição extraordinária de solidariedade”; e com mais justiça entre os cidadãos e mais eficiência económico-financeira.

Por que não encarar seriamente a hipótese? E por que insistir em manter e agravar o tratamento tributário dos aposentados, reformados e pensionistas, como, segundo parece, a que, nos próximos dias, se vai proceder?

Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa, Constitucionalista

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