O Brasil procura novo fôlego para resgatar a sua era dourada
O Brasil andou a viver o melhor de dois mundos: cresceu e foi capaz de tirar da miséria milhões de pessoas. Mas esse ciclo de ouro acabou. A economia derrapa, as contas do Estado estão mais apertadas e o fantasma da inflação volta a pairar. Esgotada a bonança da era Lula, dos salários altos e do consumo vertiginoso, o Brasil procura respostas para voltar a ser um tigre. Os perigos abundam, mas as riquezas do gigante da América do Sul também.
Depois de uma década prodigiosa de enriquecimento e de um “notável” combate à desigualdade social (o adjectivo é da insuspeita OCDE), após a combinação de uma mudança demográfica com uma geração de políticas sociais que tiraram 40 milhões de pessoas da pobreza e engordaram a classe média, a euforia do crédito e do consumo começou a esvanecer-se. E o que foi uma era dourada também.
Apesar do seu proverbial optimismo, os brasileiros sentem que algo mudou para pior, sabem que a máxima “Ordem e Progresso” do positivismo de Augusto Comte inscrita na sua bandeira deixou de ser uma certeza absoluta. José está confiante, pois “este país é muito rico, este país tem muito futuro” e, em bom rigor, ninguém ousa admitir uma recessão no horizonte próximo. O que acabou foi o tempo em que os rendimentos reais das pessoas aumentavam, em que os brasileiros puderam comprar 3,8 milhões de carros novos por ano, adquirir apartamentos em Miami, alimentar as lojas de luxo da Avenida da Liberdade, em Lisboa.
Depois de crescer acima dos 4% ao ano na era de Lula, a economia resistiu à crise financeira mundial e em 2010 surpreendeu o mundo com um disparo de 7,5%. Mas esse registo digno do clube que o economista Jim O’Neill da Goldman Sachs denominou de BRIC (acrónimo de Brasil, Rússia, Índia e China) parece ter sido um canto do cisne. Em 2012 a economia estagnou nos 0,9% e desde então tem crescido apenas metade da média da década anterior.
Este desempenho faria as delícias de qualquer ministro das Finanças europeu. Mas para uma economia emergente que se mede em comparação com os seus parceiros mais dinâmicos do clube BRIC, os resultados são decepcionantes. Nos últimos cinco anos, a China cresceu a uma média de 9,3% e a Índia 6,.5%. O Brasil patina em torno dos 2%.
“Este modelo está esgotado. O Brasil aumentou o rendimento mas não aumentou a produtividade, pelo que a economia está a perder competitividade no mercado mundial”, diz José Ricardo Roriz Coelho, diretor do Departamento de Competitividade e Tecnologia da Fiesp, a poderosa federação dos empresários do estado que por si só vale um terço da riqueza nacional, São Paulo.
Em 2013, o PIB cresceu 2,3%, mas para lá chegar o Governo teve de aquecer a economia. Abriu ainda mais a torneira do crédito dos bancos públicos e fez o seu Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) injectar na economia 58 mil milhões de euros. O superávite primário das contas públicas que o Governo tinha anunciado só se cumpriu devido a receitas extraordinárias da concessão do campo petrolífero de Libra, na zona do pré-sal, ou ao adiamento de pagamentos para 2014.
A retirada de estímulos à economia nos Estados Unidos ameaça desviar recursos dos países emergentes, Brasil incluído, para a maior economia mundial. O Bovespa, o índice da Bolsa de São Paulo, caiu cerca de 20%, contrariando o bom ano das principais praças mundiais. A taxa de juro, que estava nos 7,5% em Abril, subiu para 10,5% já este ano. O real perdeu no mesmo espaço de tempo quase um terço do seu valor face ao euro.
A conjugação destes indicadores é grave, mas o caso torna-se mais sério quando se lhe acrescenta o regresso do fantasma da inflação. Os brasileiros, como os alemães, têm um pavor especial ao descontrolo dos preços. Até ao Plano Real de 1994, sentiram na pele os seus horrores. No ano passado, a taxa de inflação ficou no limite superior das previsões do Governo, que está nos 6%. Mas apenas à custa do congelamento político dos preços de transportes, da energia e dos combustíveis. Sem essa intervenção, teria disparado. E sublinhado os receios de Fernando Henrique Cardoso, que vislumbra “nuvens pesadas” sobre a economia do Brasil este ano. E nos próximos.
Um sonho da esquerda
Depois do crescimento fulgurante no auge da Ditadura Militar, na primeira metade dos anos 1970, o Brasil experimentou o caos da hiperinflação. Começou a estabilizar com o Plano Real, há 20 anos. A eleição de Lula em Outubro de 2002, um sindicalista com um discurso anti-capitalista que liderava uma coligação que incluia populistas de esquerda, marxistas ortodoxos, trotskistas e maoístas, colocou o país perante um dilema que tinha feito história nos governos do pós-guerra de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubitchek ou João Goulart: como conciliar o crescimento com uma política de redistribuição capaz de apagar uma herança que tornara o Brasil num dos países mais injustos do mundo? Em 1964, com a Ditadura Militar, essa ambição histórica da esquerda brasileira foi congelada. Luis Inácio Lula da Silva tratou de a resgatar.
Só que, contrariando as expectativas da ala esquerda da sua base política, mas também dos seus críticos mais à direita, Lula não pôs em causa o modelo macroeconómica de Fernando Henrique Cardoso. A política cambial, o equilíbrio do do défice e da dívida do Estado, ou o controlo da inflação foram preservados. Para muitos, esse foi o maior legado de Lula ao Brasil.
“Em 2003 [primeiro ano Lula], foi uma surpresa muito grande. Tivemos um governo de Esquerda seguindo um receituário ortodoxo”, diz Sílvia Matos, investigadora da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Essa opção tranquilizou os investidores e fez recuar o “risco Brasil”. Depois, “como havia ociosidade na economia, com muita gente disponível no mercado de trabalho, com uma indústria que não produzia o que era capaz de produzir, com a ajuda do aumento do preço das matérias-primas [bens agrícolas ou minérios] no mercado mundial e com esse choque positivo da política, a economia disparou”, explica Sílvia Matos.
Os anos de Lula tornaram-se provavelmente no melhor tempo para se viver no Brasil em muitas gerações. A economia quase quadruplicou em termos nominais desde 2000 (o seu PIB, a produção anual de bens e serviços da economia, ascende a 1,34 biliões de euros, sete vezes e meia o PIB português). É a sétima maior do planeta. Os salários cresceram nos últimos anos mais de 3% acima da inflação. O salário mínimo quase dobrou o seu valor e hoje vale 720 reais (320 euros). A população universitária duplicou. Uma mudança demográfica fez com que o número de dependentes de cada família se reduzisse, o que aumentou os rendimentos médios e esbateu a pobreza. O desemprego recuou para o nível do pleno emprego nas regiões mais desenvolvidas do sudeste e do sul. O investimento estrangeiro disparou, arrastando uma média de 47 mil milhões de euros por ano, o quarto mais alto valor do mundo.
Com a economia a aquecer à luz da ortodoxia liberal, Lula regressou às doutrinas da esquerda para aplicar as suas promessas sociais. O sucesso dos seus programas é objecto de elogio quase geral, em Davos, na ONU ou no Vaticano. Mesmo os adversários do PT (Partido dos Trabalhadores, que Lula liderou) receiam atacar abertamente o seu resultado. A OCDE, insuspeita de simpatias por políticas mais associadas à esquerda, aplaude. Enquanto a maioria dos países industrializados registou um agravamento do índice de Gini, que mede a desigualdade relativa num país, o Brasil tornou-se um país mais justo do que a Colômbia ou a África do Sul. Em 2002, 23,2% dos brasileiros viviam com menos de dois dólares; hoje são 5,9% (na China são 30%).
Em boa medida, esse sucesso deve-se ao Bolsa Família, um programa de apoio às pessoas que vivem com menos de 70 reais por mês (cerca de 15 euros) e que exige como contrapartida que as crianças frequentem a escola e se submetam a programas de saúde básica. O Bolsa Família arrancou em 2004 com 6,5 milhões de beneficiários; hoje são cerca de 14 milhões, mais de metade dos quais no Nordeste, a região do país que, conjuntamente com o Norte, continua minada pela pobreza extrema. Este programa, que torna o PT imbatível nas eleições em estados como Pernambuco ou o Piauí, custa apenas 0,5% do PIB brasileiro. Tão pouco que a OCDE desafia o Governo a “considerar a melhoria das condições de vida dos agregados familiares mais pobres, aumentando os níveis de ajuda do Bolsa Família”.
O crescimento, a bonança demográfica e as políticas sociais mudaram por completo a fisionomia do Brasil. A metáfora da Belíndia, criada em 1974 pelo economista mineiro Edmar Bacha, com a qual censurava o regime militar por criar um país onde uma pequena Bélgica, rica e moderna, coexistia com uma imensa Índia, pobre e desigual, deixou de fazer sentido. Hoje, a maioria dos brasileiros não se encontram nos extremos da pirâmide social: estão na classe C, onde os rendimentos familiares oscilam entre os 532 e os 2.290 euros (o intervalo usado é o da OCDE). São, ao todo, uns 115 milhões de pessoas, quando no início da era Lula se ficavam pelos 66 milhões. Os mais ricos também aumentaram de número, mas, diz a OCDE, o rendimento familiar médio dos 25% mais desfavorecidos cresceu 45% desde 2002, enquanto a dos 25% mais prósperos subiu apenas 13%. Foi a classe C que fez disparar o consumo e foi o consumo que determinou a natureza do modelo de crescimento do Brasil ao integrar a imensa periferia urbana, excluída e pobre, num grande mercado interno de 200 milhões de cidadãos.
Com o passar dos anos, a “ociosidade” da economia de que fala Sílvia Matos foi-se esgotando. O uso pleno da força de trabalho fez cair o desemprego e pressionou a subida real dos salários. A prioridade dada à redistribuição elevou em duas décadas o peso dos impostos de 24% do PIB para 37%. Um índice semelhante ao dos países europeus (39,8% em Portugal), mas muito distante dos seus concorrentes como a China (17%). Desse bolo, programas como o Bolsa Família contam pouco. E os gastos com a educação e a saúde, dois serviços básicos cuja qualidade inferior está na origem dos recentes protestos sociais, não são supérfluos em termos mundiais. O mesmo não acontece com a Segurança Social.
A indexação das pensões ao salário mínimo em permanente crescimento fez disparar os gastos previdenciários. As pensões “generosas” (a expressão é da OCDE) tornaram-se para muitos analistas insustentáveis. Um brasileiro pode reformar-se aos 55 anos com 97% dos seus rendimentos médios anteriores. As pensões de subsistência a viúvos, que custam cinco vezes mais do que o Bolsa Família, deram origem a uma explosão de casamentos entre jovens e reformados tão evidente que até os técnicos da OCDE a referem como um sintoma de que algo vai mal. As pensões de invalidez valem outros 3% do PIB.
“Vivemos uma falsidade, um engano. Como as pessoas estão a conseguir entrar no mercado de trabalho há menos necessidade de políticas sociais tão generalizadas. As políticas sociais devem ser para quem realmente precisa. Vamos ter de focalizar as medidas de distribuição de rendimento”, considera Sílvia Matos.
Mas, para já, ninguém em Brasília quer falar do problema. “O sistema tributário está um tanto inadequado”, reconhece Luís Marinho, duas vezes ministro dos governos Lula (foi um dos ideólogos do crescimento do salário mínimo) e hoje prefeito de São Bernardo do Campo, no coração industrial de São Paulo. Mas, na sua opinião, nada justifica uma reforma nas pensões. Ao contrário dos economistas mais alinhados com os modelos liberais. “Nós somos uma sociedade que pensa mais no presente e menos no futuro”, lamenta Sílvia Matos.
Os gargalos
Apesar da gigantesca colecta fiscal, a aposta na redução da desigualdade social deixou poucos recursos livres para o investimento. Em termos internacionais, o Brasil investe muito pouco: a média dos últimos cinco anos ficou em 18,8% do PIB. Menos que russos, quase um terço do que aplicam os chineses. E se se atender apenas aos investimentos do Estado em obras públicas, esse índice é mais comprometedor: apenas 2% do PIB, três vezes menos do que gasta, por exemplo, o vizinho Chile. Nas multinacionais, ou em empresas de classe mundial como a Embraer, o dinheiro que chega das sedes ou do mercado financeiro chega para manter altos níveis de competitividade. O mesmo não aconteceu com as infra-estruturas ou com a qualificação.
Para muitos, o nó górdio do Brasil está na pobreza das suas estradas, das suas escolas ou na qualidade e escassez dos seus quadros superiores. Na pobreza da sua infra-estrutura.
O sistema portuário, a rede rodoviária e ferroviária ou os aeroportos são hoje “gargalos”, como dizem os brasileiros, que travam a expansão da economia. Uma viagem pela Via Dutra que liga o Rio a São Paulo é um suplício. No interior, há troços de estradas federais em que é impossível distinguir o asfalto da terra. O metro de uma megalópole como São Paulo tem apenas 70 quilómetros de linhas, quando o de uma cidade equivalente de um país equivalente, a Cidade do México, tem 200. No porto de Santos, o maior do país, os camiões de soja ou milho que fizeram a longa viagem desde o Mato Grosso chegam a esperar 25 dias para poderem descarregar. Por cada tonelada exportada, os produtores gastam em média 97 dólares, quando os concorrentes argentinos gastam 20 e os americanos 22.
O Governo está consciente dessa limitação. Em 2007, lançou o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), que até 2010 investiu cerca de 2000 milhões de euros nas áreas da energia, habitação social e transportes. Em 2011, nasceu o PAC 2, com quase três mil milhões de euros. Mas cedo se percebeu que as necessidades financeiras da modernização de estradas ou aeroportos, agora pressionadas pela organização do Mundial de Futebol ou dos Jogos Olímpicos, estavam muito para lá das capacidades do Tesouro. Até porque as concessões para infra-estruturas num país gigantesco exigem investimentos colossais. Foi assim que, contrariando a opinião dos sectores mais à esquerda do PT, o Governo avançou com um regime de parcerias público-privadas para viabilizar as obras.
No âmbito desse programa está prevista a construção de 7500 km novas auto-estradas, de 10.000 km caminhos-de-ferro, 159 portos ou dois aeroportos internacionais. Num primeiro momento, os privados recusaram as propostas e deixaram alguns concursos desertos. Mas as concessões acabaram por ser prolongadas no tempo (passaram de 25 para 30 anos), garantiram-se juros ao investimento inferiores aos do mercado, a taxa de retorno foi aumentada de 10 para 15%.
Para que não sobrassem dúvidas sobre a abertura do Governo a um novo tempo na política económica, Dilma foi a Davos dizer que “o Brasil precisa e quer a parceria com o investimento privado nacional e externo”. A ala esquerda do PT e da “base governista” não gostou da cedência. “Esse Governo da Dilma foi uma grande aprendizagem na forma de gerir o conflito entre a ortodoxia da esquerda e o pragmatismo”, afirma Sílvia Matos.
Mas para que o Brasil possa encarar de frente o desafio da globalização, não basta melhorar a sua infra-estrutura. As organizações internacionais afirmam que a sua economia tem de ser mais aberta. Dando seguimento a um modelo de política económica que remonta aos anos 50, o “desenvolvimentismo”, o Brasil é uma economia fechada. “Os produtores domésticos continuam a ser protegidos da competição exterior”, acusa a OCDE.
Nos investimentos na área de transportes, 80% dos equipamentos têm de ser brasileiros. No petróleo, a empresa nacional, Petrobras, tem de deter no mínimo 30% das concessões e as novas plataformas de extracção no pré-sal e os navios de transporte têm de ser construídos nos estaleiros nacionais. No ano passado, uma lista de 100 produtos importados sofreu um agravamento nas tarifas. O custo para importar um contentor era de 1650 euros, em 2013, de acordo com o Banco Mundial. Em Portugal, ficava em 653 euros.
Não admira por isso que o Brasil compre muito pouco no exterior, uns 14% do PIB. Nem que exporte ainda menos – 12,6% do PIB (Portugal 40%). Para a OCDE, a “participação do Brasil no comércio internacional está abaixo do que seria de esperar para uma economia grande e sofisticada como a brasileira”. Apesar das barreiras tarifárias e burocráticas, a indústria nacional não consegue responder ao aumento do consumo. No ano passado, o défice do país em produtos manufacturados ascendeu a 76 mil milhões de euros (quase tanto como o programa de ajustamento negociado com a troika para Portugal), um recorde histórico. O maior parque industrial da América do Sul, dizem os economistas, está debilitado pelos custos de produção, pelos impostos (34% do seu rendimento), pelo labirinto fiscal que consome 2600 horas de trabalho por ano – o Banco Mundial no seu relatório anual Doing Business calcula que, em média, as empresas da OCDE despacham os seus assuntos com o fisco em 176 horas.
“O Brasil não exporta mais porque o custo de produção é muito alto”, lamenta José Ricardo Roriz Coelho. “Houve anos em que o reajuste salarial foi desproporcional, e isso não é bom”, reconhece Rafael Marques, que está à frente do sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo que projectou Lula no final dos 80. Em 2011, de acordo com a OCDE, um trabalhador da indústria no Brasil ganhava tanto como um eslovaco e pouco menos que um operário português (8,5 euros por hora contra 9,4). Com a subida da factura salarial nos anos recentes, hoje há-de ganhar mais. A produtividade média, porém, estagnou. E é aqui que está, ao menos para os empresários, a raiz do problema.
O caso da Inox é exemplar. Sob um intenso sol tropical, num cenário luxuriante a escassos metros do curso do rio Paraíba, pouco mais de uma dezena de trabalhadores manteve por algumas semanas um piquete de greve para evitar que o patrão retirasse as máquinas desta metalomecânica que entretanto declarou falência. Os trabalhadores acusavam o patrão de má gestão, de vender a preços abaixo do custo. A Inox, que chegara a exportar peças para o Japão, morreu como estão a morrer “todas as fábricas pequenas, com 100 ou 150 trabalhadores”, diz Luis Donizetti, do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos. Muitas simplesmente não resistem à concorrência. Outras mudam-se para lugares com mão-de-obra mais barata e custos fiscais mais apetecíveis, na Argentina ou no Amazonas.
E agora, Brasil?
Saber se o Brasil pode manter o manter o nível de salários actual ou os seus programas sociais num quadro de baixo crescimento é tema de um debate que chega a ser feroz. Devanir Ribeiro, deputado federal do PT e companheiro de Lula desde os tempos heróicos do combate sindical à ditadura militar, diz que os analistas que criticam o estado da economia “não são analistas, mas torcedores”. Luís Marinho subscreve a tese ao dizer que “a economia não está tão boa como gostávamos que estivesse, mas não está tão ruim como fala o Jornal Nacional [telejornal das oito horas da Globo, o que tem a maior audiência]. Vamos continuar a crescer pouco, mas de forma consistente”, diz. Mas as dúvidas persistem. Sílvia Matos, por exemplo, alimenta-as. “Dificilmente voltaremos a ter taxas de crescimento como houve no Governo Lula”, diz esta economista, filha de um português que se dedica ao agronegócio em Mato Grosso.
O Governo de Dilma procura tranquilizar as hostes. Diz que as críticas traduzem “uma guerra psicológica” ao Governo. Os cidadãos estão a gastar menos (as vendas no último Natal aumentaram apenas 2,7% face ao ano anterior), mas não parecem acreditar que a euforia da primeira década do século acabou abruptamente. No ano passado, os brasileiros gastaram nas suas viagens ao estrangeiro 18,2 mil milhões de euros, quase tanto como o que Portugal vai receber em fundos estruturais da União Europeia até 2021. Até um poderoso patrão do comércio, como João Carlos Pais Mendonça, que depois de vender a sua participação na terceira maior rede de supermercados do país à Walmart decidiu investir em shoppings (e no vinho do Douro) se espanta. “Há aqui uma coisa que eu não compreendo: como se continua a comprar tanto quando o nível de rendimento parou?”, pergunta este empresário no topo do edifício com o seu acrónimo numa zona perto das praias do Pina, no Recife.
A pergunta, porém, faz pouco sentido para um universo de 115 milhões de pessoas que finalmente teve acesso a um padrão de vida inimaginável há apenas 20 anos. Com o seu impulso, a economia continuará a crescer. Até porque nada prenuncia um desastre no curto prazo. Os indicadores do Brasil fazem corar de inveja qualquer economia avançada – e ainda mais países os países da periferia do euro: o desemprego está baixo, a dívida pública em 65% do PIB (contra 110% da média da OCDE) e, apesar de em 2013 ter recorrido a mecanismos de contabilidade criativa, o Governo consegue um saldo positivo nas suas contas de 22 mil milhões de euros e mantém uma reserva de 274 mil milhões de euros, o equivalente ao PIB gerado na economia portuguesa durante um ano e meio. O crédito duplicou em oito anos, diz a OCDE, mas ainda assim o seu peso “é baixo em termos internacionais”. As famílias brasileiras devem, em média, o equivalente a 44% do seu rendimento (em Portugal esse valor sobre para 126%). Depois, o Brasil é um gigante 100 vezes maior que Portugal e um gigante jovem: um quarto da sua população tem menos de 15 anos.
Depois de ganhar a batalha contra a miséria, o Brasil procura assim escapar à “armadilha do rendimento médio” que torna os países em desenvolvimento incapazes de dar o salto para uma economia mais sofisticada, menos baseada no consumo, no proteccionismo e no agronegócio e mais dependente de produtos com alto valor acrescentado. O seu mais duro teste é conseguir entrar na elite dos 35 países que o Fórum Económico Mundial considera movidos pela inovação.
Sílvia Matos diz que para dar esse salto, tarde ou cedo “vai ter de haver uma dieta horrível”, em que “todo o mundo fica mal-humorado mas depois colhe os benefícios”. Vai ter de haver investimentos colossais em escolas, hospitais, estradas, portos ou no sistema de recolha de lixo que não chega a um quarto dos brasileiros. Numa altura em que os recursos escasseiam e as dúvidas aumentam, José, o taxista do Rio que teve de vender o carro da família para levar a mãe atacada por um AVC a um hospital privado, sabe que a tarefa é hercúlea. Mas, felizmente para ele, “Deus é mesmo um cara brasileiro”.