Reforma de Estado
A questão dos incentivos ao desempenho na administração pública, nomeadamente na da Saúde, é um daqueles temas malditos, com escassos intervalos de lucidez governativa.
São duas as razões que me levam a passar a barreira da reserva: o tratar-se de uma essencial e unanimemente aplaudida reforma dos cuidados de saúde primários, com provas registadas e riscos anunciados de que ela possa desaparecer. Nesta mesma página, Francisco Ramos, que acompanhou a reforma como secretário de estado no tempo em que fui ministro, explica de forma clara o que trouxeram as USF. Basta consultar alguns Portugueses que as frequentem regularmente e comparar a evolução de gastos associados à consulta. Digamos ainda, por ser verdade, que as USF só foram possíveis por terem sido preparadas, desenhadas, administradas e animadas por médicos e enfermeiros que, com sacrifício da sua comodidade, estiveram dispostos a alterar o ineficaz e ineficiente modelo dos centros de saúde convencionais em unidades onde o doente tivesse sempre consulta marcada, sem ter que ir às seis da manhã buscar a senha para um contacto que podia ocorrer apenas às doze, ou nem sequer ocorrer. Que pudesse falar ao telefone com seu médico e que caso ele estivesse ausente, em serviço ou formação, pudesse ser visto com todo o seu processo clínico por um colega. Um dos elementos essenciais desta revolução seria o pagamento em duas componentes, uma de base, que servisse para garantir os direitos dos profissionais à pensão correspondente à sua categoria profissional e outra, proporcional ao desempenho. Naturalmente, incentivos paralelos foram criados para enfermeiros e secretários clínicos, sem cujo contributo o sistema não pode funcionar. Certamente as despesas directas com pessoal aumentaram, mas foram compensadas pela redução de horas extra, encerramento de serviços de atendimento permanente e urgências nocturnas, pela redução dos encargos em medicamentos e meios de diagnósticos e sobretudo pela poupança de tempo do doente, simplificação do processo, qualidade do atendimento e pela visível satisfação para doentes e profissionais que consideram as USF como coisa sua.
Apesar de recente, o modelo foi adoptado pela Troika, merecendo referência expressa no primeiro memorando de entendimento como medida a prosseguir e a generalizar. O reconhecimento internacional tem sido unânime, de países tão diversos como Argentina e Canadá. A criação de novas USF tem crescido a ritmo lento, sobretudo nos últimos anos, das 106 que existiam em Janeiro de 2008 quando cessei funções, a um pouco menos de 400 que agora existem. Várias explicações concorrem: fadiga do entusiasmo após a “first move advantage”, passagem à reforma de muitos médicos e enfermeiros de família, ausência de ânimo dos serviços e seus sucessivos dirigentes, restrições financeiras mesmo para as pequenas obras e equipamentos necessários, contaminação pelo ambiente depressivo geral do País e concentração da mensagem política do Governo, em geral, na teoria do abuso e castigo.
A questão dos incentivos ao desempenho na administração pública, nomeadamente na da Saúde, é um daqueles temas malditos, com escassos intervalos de lucidez governativa. Paulo Mendo e Leonor Beleza, cada um a seu tempo e de modos diferentes, tentaram criar sistemas de incentivos. Mendo, como confirmador da carreira de medicina familiar (após a sua criação frustrada pelo Governo Pintasilgo) e forte contribuinte dos centros de saúde de segunda geração, tentou denodadamente junto do ministério das finanças substituir ou complementar o pagamento por ordenado por retribuição por desempenho. Sem sucesso. Conhecendo eu a mentalidade prevalente naquele ministério, onde o pavor do incerto vence sempre a eficiência da inovação, tinha obrigação de não me deixar derrotar. Poupo nos pormenores, apenas para referir que me joguei todo no prato da balança. Convenci o governo e as finanças, duas entidades distintas como todos sabemos. Lá ficaram na lei os incentivos e até aqui têm sido bem administrados.
Nesta semana fomos surpreendidos por uma notícia fatal: as administrações regionais de saúde haviam comunicado que estava suspensa uma das componentes salariais devidas a enfermeiros e a secretários clínicos. Informação real. No dia seguinte o Ministério comunicava que o Governo estava a “estudar a forma de repor os pagamentos a todos os profissionais, sem ferir a legalidade”. Seja o que for que queira dizer esta expressão, entendo-a como o resultado de bom senso e espero que ela se transforme, nesta época festiva, em notícia de que “o governo, em cumprimento das obrigações assumidas com a Troika, resolveu fixar em 500 a meta de USF em pleno funcionamento até final do ano de 2014”. Seria confirmar uma consensual reforma de estado.
Deputado do PS ao Parlamento Europeu