A universidade também “regressa aos mercados”?

Uma universidade não pode ser uma instituição que produz a formação da força de trabalho para o mercado.

O recente concurso FCT 2013 levantou objecções sérias a nível nacional na comunidade científica, depois de ter eliminado mais de mil doutorados, a geração mais bem preparada de sempre do país, na mesma semana em que o primeiro-ministro “lamentou a saída de jovens do país”, ou seja, a sangria de riqueza nacional por via da emigração forçada. O concurso abriu uma crise no meio académico, pela obscuridade do processo e pelos resultados. Foi a gota de água de um problema de fundo – a ausência de uma política de emprego científico nacional, num país com uma das taxas mais baixas de formação a nível de toda a OCDE – 15% de diplomados entre a população com 25 e 64 anos de idade, quando na OCDE a média é 32%. Todos estes, cientistas de topo, deviam estar empregados. Não me ocorre melhor metáfora: estamos, como na crise de 1929, a destruir comida rodeados de esfomeados.

Ou por ausência de dinheiro para pagar a avaliadores internacionais, ou pressa em assinar contratos, ou pelo limitado número de vagas, este despedimento de cientistas deu-se através de um concurso que não acautelou a mais elementar protecção de direitos. Num concurso deste nível na UE e em todo o mundo os candidatos são avaliados por um número ímpar de avaliadores (3 a 5), cujos nomes e CV são públicos. Estes avaliadores reúnem-se, presencialmente, tendo que avaliar o candidato mediante uma grelha de pontuação detalhada de itens do CV e projectos. Em Portugal existe um processo de pré-selecção interna que elimina uma parte significativa dos candidatos a concurso. Estes não têm o seu projecto avaliado por um júri internacional, mas por um pré-júri (cujo número e CV são desconhecidos, se é composto por um ou mais avaliadores, avaliando em conjunto ou em cadeia (quando chega às mãos de um, já tem um visto prévio do outro?). Segue-se a isto a não publicação das actas, de avaliações, etc. Aceitar este método é abrir um precedente inaceitável para toda a comunidade científica.

O pano de fundo desta situação é a chegada à universidade de um modelo de reconversão do mercado de trabalho que promove uma “eugenização da força laboral”, atirando para fora todos os que têm relações de trabalho-padrão (protegidas) e indo buscar o trabalho flexível, barato. Reformas sem substituição de novos trabalhadores, bloqueio de contratações, despedimentos mediante selecção de concursos: de um lado despede-se, do outro aumenta-se a carga horária e as tarefas dos que estão a trabalhar (pressionando os cientistas para investigarem, darem aulas, orientarem, publicarem, procurarem fundos, etc.). Este modelo é o de crescimento a empobrecer, isto é, a força de trabalho é usada até à exaustão, os ganhos de produtividade não são obtidos por melhor formação da força de trabalho e racionalização, mas por esta trabalhar mais horas por menos salário (mais produtividade com menor custo unitário do trabalho). Os danos colaterais – misérias, doenças, retrocesso civilizacional – são amparados pelas políticas assistencialistas, que crescem na mesma proporção que decresce o Estado social.

O caminho é o do despenhadeiro. A diminuição do número dos professores de carreira (quase 400 só entre 2009 e 2011) foi contrapesada pelo aumento do número de docentes convidados. As recentes leis bloqueiam a contratação de convidados. Abre-se então caminho ao trabalho parcial, e mais recentemente ao trabalho pago à hora, que disparou nesses dois anos 70% (são os mini jobs que aconselhava o ministro das Finanças alemão). Há professores universitários no sector privado com horário de aulas igual ao público a ganhar 690 euros mensais. Mini jobs, mini-salário, muita assistência – 17% da população de Berlim, por exemplo, recebe o rendimento mínimo, o Hartz IV. Em Portugal 10% da população a trabalhar não consegue pagar contas mínimas de sobrevivência. Na assistência, familiar ou social, ficarão agora os investigadores despedidos? Ou emigram?

O primeiro-ministro não tem o que lamentar. Podia haver outro modelo, em que se reduz o horário de trabalho, se faz escala móvel de salários e de tempo de trabalho sem reduzir salário, diminui-se o rácio professor/aluno e aumenta-se a riqueza produzida por estes cientistas e docentes. A reboque, aumentam-se as contribuições para a Segurança Social e o Estado social. Mas para isso é preciso fazer escolhas: o OE 2014 prevê gastar em ciência e tecnologia 5% do que se prevê pagar em juros da dívida pública!

A palavra escola tem a sua origem na palavra ócio, que para os gregos era o contrário de negócio. Ócio não era preguiça, era tempo de reflexão. Marilena Chaui, destacada filósofa brasileira, num relatório que fez para a UNESCO, disse que se a universidade “trabalha é porque deixou de cumprir a sua função”. Uma universidade – e este é o âmago da questão – não pode ser uma instituição que produz a formação da força de trabalho para o mercado. Ela é uma instituição de contrapoderes, seja à Igreja, ao Estado, aos partidos ou ao mercado. A sua função – temos que quebrar este tabu – não é adaptar-se “ao que o mercado necessita”. O mercado, ou seja, a forma como hoje vivemos, produzimos e reproduzimos a sociedade, é que tem de vir com urgência à universidade para ser criticado, no lugar onde se produz conhecimento, onde se questiona o óbvio, onde se desafia, com coragem, o senso comum.

Historiadora do trabalho, investigadora FCT, IHC, IISH (Amesterdão)

 

 

 

 
 
 
 
 

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