“País ficou traumatizado ao aperceber-se da factura das PPP”

Economista Alfredo Marvão Pereira defende que foi um erro introduzir portagens nas Scut.

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Alfredo Marvão Pereira Miguel Manso

No Guião sobre a Reforma do Estado defende-se claramente que “o Governo considera do interesse nacional manter uma política de restrição quanto à criação de novas empresas públicas e quanto à contratualização de novas PPP”. Acha que o país ficou traumatizado quando começaram as chegar as elevadas facturas das PPP que começam agora a ser pagas (e nos próximos 30 a 40 anos)?
Acho que sim. Acho que o país ficou traumatizado ao aperceber-se destes compromissos. Mas acho que o trauma também é muito devido à situação geral do país em termos económicos e orçamentais. As facturas das PPP não criaram a crise. A crise orçamental existiria mesmo sem as PPP. Aliás poderia argumentar-se que a importância que as PPP vieram a assumir é ela própria um reflexo directo das dificuldades orçamentais que já se iam vivendo. Claro que a crise torna estas facturas muito mais dramáticas e daí a dimensão do trauma. Mas acho que a situação não é única em termos de finanças públicas em Portugal. Um ponto que eu ando a fazer há anos é que a dívida implícita da Segurança Social, isto é, a factura futura que o Estado se comprometeu a pagar aos futuros pensionistas e que não está coberta pelas contribuições futuras é dramaticamente muito grande. Este aspecto parece escapar ao trauma público, o que se percebe porque os efeitos de reconhecer este trauma seriam o de perceber a inevitabilidade da dureza das mudanças que têm vindo a ser implementadas nas áreas da segurança social e CGA. De um ponto de vista conceptual, que não de um ponto de vista emocional ou social, estas reduções são análogas às renegociações com as PPP. A analogia estende-se ao facto de que quer as mudanças na segurança social e CGA quer as renegociações das PPP fariam sentido mesmo que não estivéssemos na crise em que estamos.

Isto quer dizer que concorda com a actual política do Governo em fazer a convergência das pensões da CGA com a Segurança Social?
Concordo. Com isto e outras medidas recentes e programadas nesta área, como o aumento da idade de reforma, a consideração explícita da esperança média de vida, a aproximação dos benefícios as contribuições etc. São medidas que defendo há muitos anos e que são fundamentais para a sustentabilidade futura dos sistemas de segurança social. São medidas estruturais e cuja importância transcende a sua relevância orçamental imediata. São medidas que não seria preciso haver crise para serem positivas mas que infelizmente com toda a probabilidade não teriam sido implementadas se não fosse a crise.

No seu ensaio diz que Portugal se tornou o país com maior incidência de parcerias, quer em relação ao PIB quer em relação ao Orçamento do Estado. Isto significa que exagerámos nas PPP?
Não necessariamente. Poderia querer dizer que usámos um modelo de financiamento internacionalmente reconhecido com grande sucesso e para nosso benefício. E em boa parte assim terá sido. Acho contudo que exagerámos nas PPP como exagerámos em outras coisas nestas matérias de investimentos de iniciativa pública. Mas o problema não foi tanto as PPP mas o facto de se ter decidido implementar projectos de investimento de rentabilidade duvidosa só porque havia que usar fundos comunitários. Acho ainda mais que o sistema de concessões em geral, e PPP em particular, terão a partir de agora um lugar de ribalta em matérias de investimento de iniciativa pública em Portugal.

Partilha da crítica que muitos fazem de que as PPP foram uma forma de desorçamentar as despesas de investimento? Ou foram apenas um substituto para os fundos comunitários que são cada vez menores?
Ambas. Foram uma forma de desorçamentar quando os fundos comunitários começaram a escassear e as contas públicas se viram confrontadas com requisitos internacionais de natureza institucional de metas de défice que não tomaram em conta a situação do país e mais ainda o que estaria por detrás dos números. Isto não teria necessariamente que acontecer se houvesse nas contas públicas uma clara demarcação entre contas correntes e de capital no sentido económico que não contabilístico dos termos. Mas esta é outra conversa e uma batalha que se me afigura de momento fútil.

Como explica a resistência dos governos em fazer os chamados estudos custo-benefício antes de avançar com as PPP? E quando os fazem, os pressupostos parecem ser, quase invariavelmente, demasiados optimistas no que concerne às projecções de tráfego, taxas de utilização, etc.., com óbvios prejuízos para o interesse público!
Este é um problema muito mais geral e não é só com as PPP, ainda que seja bem mais problemático pelas suas consequências no caso das PPP. Explico-me. Se se tratam de privatizações ou de concessões tradicionais, o problema é de algum modo mitigado pelo facto de as empresas privadas fazerem as suas contas, a sua análise de custo-benefício e se não o fizerem bem feito só terão a perder, já que não podem esperar transferências do Estado cada vez que tenham prejuízos. Com as PPP, o problema complica-se porque ao se contratualizarem transferências anuais do Estado para as empresas privadas, estas ou não assumem ou assumem menor fracção do risco associado à sua utilização. Para as PPP a contrapartida não é o pagamento dos utilizadores, mas totalmente ou parcialmente as transferências do Estado. Se o Estado fez mal as contas é o Estado que perde e não a empresa privada. Então a questão pode colocar-se assim. Se você fosse uma empresa privada e estivesse a negociar com o Estado uma concessão, preferia concessão tradicional ou PPP? Se você for o Estado quando é que prefere uma PPP a uma concessão tradicional? A resposta é a mesma. Se a parceria for rentável economicamente ambas as partes preferem a concessão normal em que a concessionária cobra e retém os pagamentos dos utilizadores. Se a parceria for mais arriscada então o único meio para o Estado para convencer a concessionária a participar é uma PPP. E aqui chegamos ao cerne da questão. Nestes casos uma análise de custo-benefício tradicional dificilmente sugeriria benefícios económicos líquidos. Qual a saída? Ou não se faz análise de custo-benefício cujos resultados não seriam lisonjeiros ou então – se as instâncias europeias por exemplo assim o exigem – usam-se pressupostos excessivamente optimistas, que por esse meio levam a uma pretensa identificação de benefícios líquidos.  O sistema está viciado neste sentido.

O Governo já anunciou um corte de 300 milhões de euros/ano com a renegociação das PPP. Mas numa altura em que se aumentam impostos, se cortam pensões e salários da função pública não se poderia ter ido mais longe?
É-me muito difícil dizer, dado não conhecer intimamente os detalhes das negociações. Este é um problema multifacetado. Por um lado, uma boa parte das negociações envolvem eliminação de obras de manutenção e de futuras obras de extensão das infra-estruturas. Neste sentido ajudam a consolidação orçamental no imediato, independentemente dos efeitos no crescimento de longo prazo que possam vir a ter, penso insignificantes. Por seu lado, as empresas nestes casos não perdem muito. Poder-se-ia ter ido mais longe? Talvez. Por outro lado quando as renegociações têm a ver com as transferências referentes ao uso da infra-estrutura a questão é diferente. A redução de pagamentos é questionável, já que se liga directamente às expectativas que foram dadas às empresas privadas no momento da concessão nomeadamente em termos de transferências contratuais mínimas. Aqui a margem de manobra do Estado é bem menor.

Acha que o Estado perdeu na recente renegociação com os privados sobre as reduções do objecto dos contratos das subconcessões da Estradas de Portugal e na redução dos pagamentos às antigas Scut? Pagar às concessionárias pela disponibilidade (e não pelo uso) não é uma transferência de todo o risco para o Estado?
Voltamos à questão das expectativas criadas quando os contratos foram inicialmente negociados. As previsões de tráfego assumem mais uma vez papel de charneira. As previsões foram exageradas? Sim e, portanto, nem o Estado nem a concessionária recuperariam através de portagens ou outros pagamentos pelo uso da infra-estrutura o suficiente para se cobrirem os custos de construção, manutenção etc. Como se resolve isso? Se as previsões foram apenas moderadamente exageradas então poderá a renegociação envolver a cobrança e retenção dos pagamentos dos utilizadores pelas concessionárias. Se, contudo, a realidade for muito menos favorável, de tal modo que os pagamentos pelos utilizadores nunca nem de perto cobririam os custos de investimento etc.? Neste caso não se pode esperar que as empresas privadas possam aceitar pagamentos por uso e daí os pagamentos por disponibilidade. Se faz sentido? Faz. Se haverá abusos, também não duvido. Quem ganha e perde depende das circunstâncias e do poder negocial de cada empresa. Devo ainda aqui mencionar, no contexto desta sua questão e da anterior, que o Estado poderá estar efectivamente a introduzir mecanismos alternativos para obter das PPP o que não conseguiu de forma negocial ou arbitral e dada a natureza do nosso sistema judicial não poderia obter de forma expedita pela via judicial. É a questão da possível contribuição extraordinária a introduzir sobre as PPP. É um padrão que se repete, por exemplo, na área da energia.

Por que é defende que a introdução de portagens nas Scuts foi um erro? Sem portagens como seriam pagos os encargos?
Isto já é questão do passado. Contudo mantém-se como um bom exemplo de por vezes se escolher as batalhas erradas em que os benefícios não são muitos e o desgaste criado enorme. Acho que a introdução de portagens foi desnecessária na melhor das hipóteses e com toda a probabilidade contraproducente. Explico-me. Com a introdução de portagens assistiu-se a um enorme declínio do uso das estradas portajadas, muito superior ao declínio geral que se observou no tráfego devido à crise económica.  Assim, as receitas reais foram bem menores que o programado – também devido às dificuldades com a própria facturação. Por seu lado os benefícios económicos e sociais induzidos por estas novas estradas foram minimizados. Por exemplo, observa-se um aumento da sinistralidade nestas áreas, já que a incidência de sinistralidade nas estradas alternativas é claramente superior à das vias que passaram a ser portajadas. Finalmente as regras orçamentais comunitárias obrigaram à contabilização no orçamento de investimentos que tinham sido desorçamentados e portanto por essa via a coisa não ajudou a consolidação orçamental. Se o objectivo era o utilizador pagar a infra-estrutura através da cobrança pelo seu uso, isso não resultou, já que as receitas estão muito longe de cobrir os custos correntes. Se o objectivo era orçamental não resultou. Fica a questão então de como seriam pagos os encargos sem portagens? A pergunta é extensiva a quase todos os bens que são tornados disponíveis através de provisão pública. Como se pagam as estradas nacionais que não são portajadas? Como se paga o nosso sistema educativo? O nosso sistema de saúde? Claro que o dinheiro público não chega para tudo e daí também a importância de uma reforma do Estado séria. O meu ponto e que a questão é muito mais abrangente.

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