Um Porto das palavras aos actos
A sociedade portuense nunca foi dada a grandes mudanças sociais, culturais e políticas. Pelo contrário, as grandes mudanças foram-no sempre em nome de revoluções e de transformações históricas violentas em contextos muito específicos. E esses estão bem presentes no nosso Porto.
As suas instituições tiveram sempre aquele ímpeto transformista, mas nunca foram uma força de mudança radical. O Porto sempre foi uma cidade de compromissos, de pactos, de cedências e de resistências. Mas aqui também há um Porto escondido, próprio de uma cidade aberta ao mundo, cosmopolita e universal. Um Porto-cidade que vai da "Ribeira até à Foz", na voz de Rui Veloso, e que traduz bem este lado rural, fechado, localista e tripeiro, em confronto com uma aspiração universal e cosmopolita do Grande Porto.
O Porto nunca foi de Garrett e de Antero. Nem mesmo foi de Eugénio de Andrade. Mal o poeta fechou os olhos, encerram-lhe a fundação lá para os lados da Foz. Agustina vive enclausurada na sua domus literária. O Porto é assim, fechado, elitista, burguês e provinciano. O Porto é escuro, cinzento e popular para Resende. O amigo e escritor Viale Moutinho no seu poema Júlio Resende e a Ribeira Negra diz-nos como este Porto é "uma cidade desencantada e triste/ com as suas pontes de medonho porte/ e este lambrim de mulheres e peixes/ de carrejões frutas e inutéis docas".
Os seus arquitectos são mal compreendidos e as suas obras são vitimas do desleixo autárquico. Siza Vieira: o mal-amado e incompreendido pela sua poética arquitectónica ao serviço dos bairros e do povo miúdo da cidade. Souto Moura: o estranho e provocador genial que desenha um burgo na vertical na Avenida da Boavista.
No Porto a filosofia rima com poesia. Desde Garrett a Antero, de Leonardo Coimbra a Pascoaes, de Teófilo a Pedro Homem de Mello. No Porto nunca houve aquilo que poderíamos chamar Escola. A escola era o café, a tertúlia, o gabinete, o sindicato, a viagem, a Cooperativa Árvore e a Confronto, o devaneio associado ao impulso criador, a curiosidade pelo saber e pela busca da utopia.
Nesta cidade a liberdade rima com criatividade. Ainda, hoje, falar de Escola de Arquitectura do Porto, é para os nossos arquitectos, como Siza e Souto de Moura um puro eufemismo e vaidade.
Este Porto com sabor a tripas, com cheiro a rio e mar é único e singular na morfologia da cidade e na produção artística e cultural atlântica.
Mas também é um Porto mesquinho, estreito e redutor quando olha para os seus criadores e génios com desconfiança e desdém, próprios de um pequeno burgo que vive com um pé na Foz e outro na Metrópole. O Porto de Manoel de Oliveira é universal e cinematograficamente genial quando retrata o quotidiano de um Porto pobre e clandestino e faz daí a sua arte.
O Porto político tem sido um Porto do aparelho e da clientela. Pouco lúcido e universal. Tem faltado humanismo e arte ao governo da cidade. Vereadores ignorantes que se recusam a atribuírem ruas a poetas e a escritores; que negam a arte e a cultura que faz "ser" a sua cidade. Que fecham as portas dos teatros a companhias e alugam as suas salas numa lógica de mercado.
O Porto político é conservador e mesquinho, egoísta e analfabeto. Burguês na acção e rude no pensamento. O Porto político desconfia da universalidade e ignora a sua identidade cultural. Persegue e desloca os fracos que habitam nos bairros e ilhas da cidade e protege e glorifica os fortes que vivem à sombra dos poderes que governam em nome da cidade.
Hoje gostávamos de ter um novo Porto. Um Porto que dialogasse com os fortes e protegesse os fracos. Que fizesse da sua governança uma celebração e exaltação a uma cultura cívica aberta ao mundo, à criatividade e à diferença cultural. Um Porto que tivesse como propósito a criação e a valorização de uma cidade para todos e com todos. Um espaço inclusivo alicerçado em valores humanistas de respeito pelas diferenças singulares.
Uma cidade onde as ruas não podem ser unicamente um espaço de negócio, mas sobretudo um lugar de convívio, de fraternidade e de socialização. Onde o viver aqui seja um acto digno de respeito por todos. Um Porto que conserve e valorize as suas ruas, os seus bairros, as suas ilhas e os seus jardins.
Um Porto que abra as portas dos seus museus, das suas salas de cinema, dos seus jardins e palácios. Um Porto de espaço aberto e plural para o saber e para a arte, que se aprende a fazer nas escolas e instituições (teatros, escolas e cooperativas) da cidade. Um Porto-cidade que não seja mais um Porto da não-cidade. Onde se derrubem casas e bairros, se desloquem pessoas e famílias, se lance o estigma sobre comunidades inteiras.