Medo, Raiva, Esperança

Este é um artigo sobre como é que se constrói a mudança em épocas de crise. E começa em Junho de 2002, dez meses após os ataques de 11 de Setembro às Torres Gémeas e ao Pentágono, quando me encontrava em Washington junto com outros colegas europeus numa sessão com um membro do partido Democrata. Estava então na Casa Branca George W. Bush e o foco na segurança interna dos EUA e a intervenção militar no exterior eram o centro da agenda política. Entre o ingénuo e o provocador, inquiri o nosso interlocutor sobre porque razão é que o partido Democrata não criticava os excessos da política de então. A resposta foi a de que havia uma atmosfera de receio no ar e, portanto, não valia a pena dizer coisas diferentes, porque quem quer que falasse seria directamente acusado de não proteger os interesses fundamentais da nação.

O que este episódio ilustra é que, em situações de excepção, até mesmo as sociedades democráticas podem ficar paralisadas pelo medo. E o medo é uma forte arma política, como lembra Manuel Castells no livro Redes de Indignação e Esperança, o medo, é a emoção paralisante da qual os poderes dependem, a fim de prosperarem e se reproduzirem, pela intimidação e desencorajamento.

Neste momento histórico de intervenções externas nas economias do euro, o medo constituí uma estratégia em uso generalizado – nomeadamente pelas instituições internacionais, como as presentes na troika, que o exercem ora sobre os Governos ora sobre as populações em geral, tal como Portugal experimentou na última semana com o relatório do FMI.

No entanto, há um problema com o uso excessivo do medo como arma política. É que ele tende a sair fora de controlo. Pois, rapidamente uma sobredose de instrumentalização do medo se transforma em indignação, seguida de uma qualquer situação que provoca sentimentos de injustiça, sendo depois vencido pela raiva, a qual muitas vezes se transforma em esperança numa melhor sociedade – ou pelo menos é o que nos ensina a história desde sempre. O mundo pós-2008 viveu (e vive) múltiplas situações que nos demonstram como a raiva e a indignação têm vencido o medo e sido transpostas em esperança. A esperança tem brotado na Islândia, em Israel, no mundo Árabe, nos múltiplos movimentos Occupy e de Acampadas, nos movimentos estudantis do Canadá e do Chile, nas recentes mobilizações populares na Índia e, também, em tudo aquilo a que temos assistido nas redes e nas ruas de Portugal ao longo dos últimos quatro anos.

Iniciei este artigo declarando que esta era uma análise sobre a mudança e, muito provavelmente, chegado a este ponto o leitor pensará algo de parecido com “tudo muito bem, mas nada daquilo que vimos desde 2010 até agora mudou nada!”. Se for essa a sua questão, deixe-me contra-argumentar, dizendo que nem hoje nem antes nada mudou de repente. Não há nem ideias, nem pessoas, nem acções, nem políticas providenciais. Há sim pessoas que se juntam, que estão indignadas e que a dado momento dizem basta! E a partir daí ocupam os espaços públicos (na rede e fora dela) em busca de outros que pensem como eles e que queiram juntos encontrar soluções.

O poder da mudança reside em surgirem pessoas que dizem coisas diferentes, que apontam preocupações diferentes e, a dado momento, soluções diferentes. Mas acima de tudo o seu poder deriva de surgirem e terem a capacidade de provocar a diferença, pelo mero acto de existirem. Pois, por muito reduzido que seja o seu número, eles possuem uma característica fundamental, não almejam tomar o poder, mas sim mudar as mentes das pessoas, para assim mudar as instituições do poder. Um caminho que pode parecer longo, mas que sabemos que dá os seus resultados. 

Tal como muitos outros, acredito que estamos a viver um momento que demonstra que a crise do capitalismo global financeiro, e o subsequente ataque aos estados europeus numa tentativa daquele restabelecer a sua boa saúde, não é necessariamente um beco sem saída – pode até ser o sinal de um “recomeço inesperado”. No entanto, esse recomeço não será encontrado nem nos relatórios do FMI nem nos comunicados das instituições da União Europeia sobre o futuro da Europa. Porquê? Porque a indignação generalizada nas sociedades intervencionadas europeias está centrada na humilhação provocada pelo cinismo e arrogância dos que assumem o poder, seja ele financeiro, político ou cultural – quer a nível nacional quer a nível das instituições europeias e multilaterais.

Mas de onde vêm então a esperança? Ela vem das pessoas que se decidem juntar de forma informal e em momentos em que possam experimentar, sem limitações institucionais, o futuro que querem construir. Dando origem a diferentes movimentos sociais. São esses os movimentos de pessoas que através da história são os produtores de novos valores e novas metas, em torno das quais as instituições da sociedade se transformam para a criação de novas normas que  organizem a vida social.

E onde estão essas pessoas? Quando não estão nas ruas ou nas salas ao nosso lado, basta a qualquer um de nós navegar na web ou no facebook para as encontrar.

E como aqueles que incorporam o exercício do poder nas sociedades democráticas, isto é os partidos políticos, ajudar a romper com a actual maldição de perda de confiança, que no extremo está a levar a que os contratos sociais se dissolvam, podendo transformar-nos num conjunto de individualistas lutando apenas pela própria sobrevivência?

A resposta reside, muito provavelmente, na capacidade de os partidos deixarem de ser estruturas inspiradas no modelo hierárquico burocrático e assumirem a sua identidade de redes (reprogramáveis) com as ideias que germinam por entre aqueles que sempre mudaram as sociedades, as pessoas e não as instituições – pois estas últimas são “apenas” meros instrumentos para levar avante a mudança.

No geral, ao contrário do que alguns pensarão, o cenário parece hoje mais encorajador em Portugal, na medida em que os partidos ensaiaram e, estão a praticar, essa tentativa de busca de novas ideias que desencadearão novas formas de agir – o futuro, como sempre, nos dirá com que grau de sucesso.

E agora? Agora, falta assumir-se que a sociedade já está a mudar (e começou-o sem esperar pelas instituições políticas), ir ao encontro das pessoas que já se juntaram em busca de mudar o sentido da sua vida e não o sentido do poder, e ajudar-nos a todos nós através, não da reforma do Estado, mas sim primeiro da reforma dos modos de pensar para além do individualismo e do interesse próprio.

O resto virá por arrasto sem precisar de memorandos ou relatórios – os quais de qualquer forma passarão para a história como meros documentos – pois o que importa é a vida que queremos ter e o sentido que queremos dar-lhe.

Gustavo Cardoso é investigador e coordenador do Mestrado de Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE
Sugerir correcção
Comentar