"Este documento sei de onde vem, quem o fez e em que circunstâncias"

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O relatório da "acção punitiva de pacificação" da sanzala Mihinjo foi descoberto numa das caixas que pertencem à delegação da PIDE/DGS em Angola e que estava ainda por catalogar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a quem foi confiado todo o espólio documental da polícia política do Estado Novo, em 1994.

Desde essa altura, o acervo tem vindo a ser sistematicamente inventariado, embora ainda haja muito a fazer. Afinal, explica ao PÚBLICO o director da Torre do Tombo (TT), Silvestre Lacerda, são 1300 metros de arquivo, o que equivale, aproximadamente, a 13 milhões de documentos (só fichas pessoais, a que tem vindo a ser dada prioridade, são oito milhões).

"Por que é que só é descoberto agora? É preciso não esquecer que estamos a falar de um arquivo contemporâneo. São milhões de documentos. Isto é impressionante, sobretudo se pensarmos que, do século IX, há três documentos originais. E nós ainda temos surpresas em relação a documentos medievais...", diz Lacerda, acrescentando que, de todos os territórios ultramarinos, o arquivo de Angola é o mais volumoso.

Ao documento reproduzido nestas páginas foram retirados quaisquer elementos que permitam levar à identificação do seu autor ou de outras pessoas nele referidos, de acordo com o que determina a política arquivística nacional (Decreto-Lei n.º 16/93), explica Silvestre Lacerda. É o artigo 17 deste diploma que, no n.º 2, explicita que "não são comunicáveis os documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico [...] ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou a intimidade da sua vida privada e familiar e a sua própria imagem, salvo se os dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contém, sem perigo de fácil identificação". "Expurgados" significa retirados.

"Não podemos divulgar o nome nem outros dados que levem à identificação do autor ou de quaisquer outros envolvidos a que o documento faça referência, porque a lei geral dos arquivos salvaguarda o direito ao bom-nome", precisa Lacerda. "E esse direito mantém-se durante 50 anos após a morte do autor ou 75 passados sobre a data do documento." É por isso que este relatório, acrescenta, está acessível a ser consultado por qualquer pessoa, "mas sempre expurgado".

Lacerda está perfeitamente convencido de que o relatório agora publicado em Portugal "é um documento fidedigno". Ressalvando que se trata de uma cópia enviada à época para Lisboa e não de um original, o director do arquivo nacional garante que nada na análise material do documento o leva a crer que pode ser forjado. E isto sem olhar ao conteúdo, só avaliando o suporte e o contexto em que ele aparece.

"O contexto é fundamental para atestar da veracidade do documento. O facto de haver outro em anexo que nos diz que o original foi destruído, o facto de ter vindo do arquivo da PIDE em Luanda, que sabemos ter recebido uma cópia deste relatório... Por isso digo que este é um documento importante." Mais importante, na sua opinião, do que as fotografias que circulam dos massacres.

"É claro que já vimos fotografias de massacres em Angola e já ouvimos e lemos testemunhos pessoais de soldados, mas as fotografias eu não sei em que contexto foram produzidas, de onde saíram, quem as fez, como chegaram até aos livros e aos sites onde as podemos ver. Este documento sei de onde vem, quem o fez e em que circunstâncias."

Silvestre Lacerda diz que não é possível saber se, entre a documentação ainda por analisar da PIDE, haverá outros documentos semelhantes: "Teoricamente, pode haver outro. Digo 'teoricamente' porque não sei o que lá está. Agora, acho difícil que, como este, volte a aparecer. Mesmo para um não-especialista em história militar e em guerra colonial, como eu, [este relatório] parece muito singular."
 
 

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