O segredo de José Luís Peixoto
"Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão
De facto, para quê aprender a perguntar onde é o restaurante mais próximo se o mais que certo é o guia ter tratado disso, e de tudo o resto. A Coreia do Norte não é um local onde um turista (fará sentido esta palavra num sítio como este?) possa simplesmente ir à procura de um restauranteonde lhe apetece comer, ou decidir o que pretende fazer no resto da tarde. De qualquer forma, José Luís Peixoto não se ocupou de frases apologéticas. Não foi para isso que o escritor português atravessou meio mundo. Ou melhor: se calhar até foi, mas não para as decorar e repetir. Há muito tempo que queria ver uma ditadura de perto.
Isto foi em Abril. O escritor ainda não tinha regressado e já começara a escrever o livro Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Não costuma tirar tantas notas, mas desta vez encheu praticamente três blocos. Esta semana, em Lisboa, numa sala de reuniões da sua editora, a Quetzal, José Luís Peixoto conversa com a revista 2, sem pressas. Acabou de chegar da Índia - Goa e Bombaim - mas a entrevista obriga-o a voltar agora à Ásia Oriental e àquela experiência de há meses, quando viu de perto um "país muito extraordinário".
Antes de qualquer mal-entendido, convém talvez citá-lo a partir do seu livro e esclarecer:
"1 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras.
2 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras."
Não tinha a ilusão de que iria escapar à realidade que tinha sido encenada para si e para os outros membros do grupo formado para a visita a que a Koryo Tours (que organiza viagens através de Pequim) chamou de "Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour". Mega tour porque as visitas são normalmente de uma semana, no máximo, e esta era de 15 dias. Foi um momento de celebração em grande, em mega, por causa, precisamente, dos 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o fundador da nação.
Entremos então nesse "país extraordinário", onde a separação entre a realidade e a ficção é uma linha marcada a régua, pelas mãos do poderoso departamento de Propaganda do regime agora chefiado por Kim Jong-un. A menina Kim guiou José Luís Peixoto, o escritor irá agora guiar-nos a nós.
"Há uma encenação grande para quem visita, mas há uma encenação maior para quem está lá. Essa é que é a grande encenação ali. Porque aquelas pessoas vivem num país completamente fechado e é tarefa do Estado criar uma ideia sobre todo o mundo que existe lá fora, não é?"
Essa tarefa obriga a que telemóveis fiquem na fronteira dentro de um saco de plástico (e em Pyongyang as chamadas para falar com os filhos, em Lisboa, custaram-lhe seis euros por minuto), tal como livros (transgrediu e levou o D. Quixote de La Mancha na bagagem) e outros objectos que possam veicular informação ocidental, num país onde apenas um grupo muito restrito tem acesso à Internet. "As pessoas não têm sequer noção do que é a realidade fora da Coreia do Norte. Por exemplo, não têm qualquer acesso a música que não seja aquela música, que é muito limitada [descreve no livro o género que celebra o regime, o Taejung kayo, em que as canções têm títulos como Iremos seguir-te para sempre; O general é nosso pai e Defenderemos o General Kim Jong-un com as nossas vidas]. Nasceram sem esse acesso e nem concebem que exista outro tipo de música. Nem concebem que existe outra realidade."
A carrinha dos visitantes estrangeiros atravessou o país: de Pyongyang à Zona Desmilitarizada (que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul, num corredor de alta tensão que atravessa toda a península coreana); de Kaesong (também no Sul), onde foi servida uma refeição pouco habitual ("Não é agradável roer ossos de cão"), a Hamhung (a segunda cidade do país) e Pujon, o ponto mais a norte do percurso. Passou ainda por Nampo para visitar a siderurgia Chollima, Sariwon e Wonsan. Pelo caminho formam-se imagens dos campos extensos, cultivados graças à mão-de-obra de centenas e centenas de pessoas agachadas, com pequenos utensílios. E de fábricas a cuspir fumo, com maquinaria pesada e a precisar ainda assim de trabalho humano duríssimo. "Aquela população está num tempo fora deste tempo", diz à revista 2.
Realidade em forma de romance
"É uma realidade que vem já quase com a forma de um romance, muito delimitada, com personagens-tipo muito caracterizadas: o militar, o guia, a criança pioneira", conta-nos o escritor. "Às vezes andamos numa aldeia do interior [de Portugal] e nem nos apercebemos dos elementos exteriores que ela recebeu. Na Coreia do Norte isso não acontece. Isso faz com que se viva sob uma realidade própria, estagnada. A ignorância do mundo ali sente-se em tudo. Todos os elementos foram pensados... Os melhores atletas da Coreia do Norte são os melhores atletas do mundo, porque a Coreia do Norte é tudo o que há. É muito pobre esse imaginário. Os elementos são sempre os mesmos."
A máquina é poderosa e mesmo os muito poucos que viajaram para o exterior não deixam de acreditar no seu Governo. José Luís Peixoto falou com guias que já tinham estado na Europa. "Algumas pessoas consideram que a Coreia do Norte é mais organizada, que existe uma vida melhor. Não sei até que ponto não se obrigam a elas próprias a ignorar uma quantidade de coisas que são a vida real daquele país. Mas é um facto que essas pessoas apontam algumas questões que são muito más, que existem na nossa sociedade e que não existem ali. Como as crianças ou as mulheres andarem sozinhas na rua, à noite, com medo de serem assaltadas ou agredidas sexualmente. Na Coreia do Norte não há essa possibilidade. As pessoas não têm esse medo."
Ali, há razões para fazer a apologia do regime: "A ignorância e a sobrevivência. Ninguém pode apontar o dedo a quem tenta sobreviver, a quem tenta que aqueles que ama sobrevivam. Isso é o que todos fazemos." E assim como os norte-coreanos "tomam como absolutamente adquirido toda aquela informação que recebem pelas fontes do Estado e da propaganda, eu acho que nós, neste lado do mundo, também tomamos por garantido uma série de informação que recebemos e que se calhar não é tão garantida assim. Todos nós não podemos duvidar de tudo em todos os momentos. Temos de ter a segurança de acreditar em alguma coisa".
São muitos os mecanismos de isolamento do "Reino Eremita". Não basta impedir a entrada de telefones ou rádios. O escritor conta-nos uma história. "Fomos aconselhados a dar um presente aos guias que falasse do nosso país. Eu levei duas garrafas de vinho do Porto. Mas avisaram-nos muito sobre as características que esse presente deveria ter: bebida, cigarros ou alguma coisa que se pudesse consumir. Houve um alemão que não sei bem o que é que deu, mas sei que o embrulhou em jornais alemães. No dia seguinte, os guias estavam completamente alterados e a devolver-lhe os jornais e a dizer para ele os levar porque eles não podiam aceitar aquilo. Os jornais, que eram o papel do embrulho. Eram jornais banais, mas esse tipo de coisas são muito ameaçadoras."
É a Propaganda que escolhe o que os norte-coreanos devem conhecer do exterior e por isso "não há verdadeiramente um conhecimento do que é o mundo fora dali... Quando existe alguma coisa estrangeira, é muito controlada e muito folclórica. Como, por exemplo, as danças russas. E diz-se às pessoas: "Isto é como eles se divertem na Rússia"".
Sociedade militarizada
Também é a Propaganda que escolhe o que os estrangeiros podem conhecer do país. A menina Kim, a guia desta Mega Tour, é praticamente a única voz norte-coreana do livro - sempre para lembrar os limites e as regras. Quase como se não fosse necessária outra, porque sabemos de antemão que as falas iriam ser, muito provavelmente, as mesmas - inventadas não pelo escritor, que neste livro foi fiel à realidade (já lá iremos), mas pelo regime para serem repetidas à exaustão. Museus, monumentos, locais sagrados (ou seja, relacionados com algum aspecto da vida dos grandes e queridos líderes), fábricas, montanhas e aldeias - tudo faz parte dessa grande narrativa chamada República Popular Democrática da Coreia, onde o questionamento, a existir, está totalmente silenciado.
Por isso, talvez, também teve medo: quando no final, o guarda da fronteira quis ver as fotografias que tirou durante a viagem ("... tive medo que o meu coração se ouvisse a bater", descreve) e quando no hotel Yanggakdo ("o melhor hotel de Pyongyang", com mais de mil quartos, segundo o folheto) o chamaram à recepção depois de um telefonema para Portugal. Afinal, era só uma camisola esquecida na cabine telefónica.
É uma sociedade onde a ordem é uma palavra cheia e o Exército é omnipresente. "Vêem-se militares em todos os lugares, sempre, constantemente. Uma em cada cinco pessoas é militar." É ameaçador? "Não, por ser tão presente. Eles estão muito mal apetrechados, a maior parte não tem qualquer espécie de arma, a única coisa que tem é o uniforme. Mas mesmo os civis muitas vezes se confundem com os militares pelas roupas: muitas vezes são muito próximas de um uniforme militar; e os militares também fazem muitos trabalhos civis. Na televisão há sempre a glorificação dos militares, mesmo as crianças que estão a saudar os militares quando eles passam no desfile, vê-se que elas aspiram a ser militares um dia. Não são uma força que seja sentida como opressiva pelas populações. Na verdade, essa opressão nunca se sente directamente. Nunca ninguém chama a atenção de ninguém sobre nada porque as pessoas entram nos museus a marchar, em filas organizadas. A própria movimentação das pessoas em todos os momentos é sempre muito alinhada... Estão sempre muito compostas."
Mais impressionante ainda é o culto cego da personalidade que se dedica aos chefes de Estado. "Tem uma repercussão no quotidiano em aspectos tão prosaicos para um visitante como a impossibilidade de dobrar um jornal com a imagem do líder, ou tirar fotografias onde fiquem cortadas algumas partes do corpo dos líderes. Têm de ser sempre fotografados de corpo inteiro", diz-nos José Luís Peixoto. "São aspectos que são de uma característica que ali é vivida de uma forma muito intensa: a absoluta impossibilidade de pôr minimamente em questão as capacidades e as qualidades sobre-humanas dos líderes." E por líderes entenda-se a dinastia Kim, ou seja, Il-sung, o Eterno Líder, Jong-il, o Querido Líder, e agora o neto e filho, Jong-un, o Líder Supremo.
O culto não se limita a inventar um milagre como o arco-íris duplo que apareceu no monte Paektu no dia em que Kim Jong-il nasceu. Nem aos retratos dos dirigentes, que são os únicos possíveis nas paredes de casa dos norte-coreanos. Ou às flores baptizadas com os seus nomes - "Cheirei as kimilsunguias e as kimjonguilias. Não cheiram a nada", lê-se no livro. Está em todos os momentos da vida pública - e privada - da população. Nos emblemas com as caras de Kim Il-sung ou (e) Kim Jong-il que têm de levar ao peito cada vez que saem de casa. "Não conheço religiões tão vividas como aquele culto. Não há nenhum escape. O culto aos líderes é total."
Como a sopa da mãe
Em todo o caso, os movimentos de um ocidental não são tão controlados como o escritor previu. Ainda que a regra de não se poder andar sozinho na rua seja "de ferro, de pedra ou de qualquer outro material de rigidez sem apelo", escreveu. Tirou mais fotografias do que seria seguro e transportou sempre o D. Quixote de La Mancha. "O D. Quixote era um pouco como comer a sopa da minha mãe: encontro palavras que a minha mãe usa corrompidas. Para não falar de todos os paralelismos que é possível traçar: a encenação e a alucinação. É uma questão que colocamos a nós próprios - isto parece mesmo real. Mas a realidade é discutível. Depende muito dos sentidos e os sentidos não são nada objectivos. Dependem de coisas como bebermos a água choca do poço do Kim Il-sung" - que a guia assegurou que fortalecia o espírito, mas que ao escritor estragou algumas partes da viagem.
"Esperava na verdade menos liberdade e menos contacto com as pessoas do que aquele que tive", continua. "Houve conversas interessantes (com os guias de museus, às vezes um ou outro falava inglês), que nem incluí no livro, sobre aspectos mais ligados à vida [quotidiana]: como conhecem alguém e se casam, ou sobre os rituais da morte, os funerais. Mas mesmo esse diálogo é muito oficial. A verdade é que se notava sempre a preocupação de não ficar mal na fotografia, sempre a preocupação de dizer que a Coreia é um país extraordinário, que as pessoas vivem muito bem."
Também não sentiu que houvesse ordens expressas para a população não se relacionar com os visitantes. Pôde emocionar-se com "o cuidado dispensado às crianças", lê-se. "Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional."
De volta à conversa em Lisboa: "O que eu senti é que há uma barreira enorme, que é a língua. Mas essa barreira existe na maioria dos países asiáticos. Depois, também existe o pouco hábito de contacto com os estrangeiros, o que faz com que os estrangeiros sejam muito olhados, olhados de uma forma que se sente que é curiosa e às vezes amedrontada. Mas também há uma coisa interessante: eu cheguei ontem da Índia, que é um lugar onde as mulheres têm às vezes aqueles brincos enormes, e todos aqueles adornos, e andava muita gente a ver-me as orelhas e os piercings e as tatuagens. Na Coreia do Norte, fui com camisolas de manga comprida e considerei tirar os piercings (embora não o tenha feito) porque achava que podia ser um motivo de mais estranheza e mais distância. Na verdade, cheguei lá e percebi que só o facto de ser estrangeiro já era distância suficiente. Não havia nada que fizesse com que essa distância fosse maior. Inclusivamente, havia pessoas que participaram nessa viagem que eram de outras raças, que à partida podiam causar uma estranheza maior, com tons de pele mais escuros, e isso não se notava. A estranheza era igual. E depois havia estranheza perante coisas que se calhar não tínhamos pensado, como por exemplo peso a mais. Qualquer pessoa com um pouco mais de peso era muito estranha ali porque na Coreia do Norte toda a gente é muito magra... [Os líderes] são um pouquinho anafados, mas na rua não se encontra uma única pessoa que tenha um pneu! Toda a gente é mesmo muito magra. Também se pode fazer todo o tipo de especulações acerca disso. A especulação de que a alimentação não é a melhor, na minha opinião, é justificada. Mesmo não andando atrás das pessoas a ver o que elas comem, dá para perceber que a alimentação é muito má... Existem carências grandes."
Logo no início do seu relato, José Luís Peixoto escreve que "talvez a decisão de visitar a Coreia do Norte tenha nascido do desejo de estar num lugar onde nenhuma pessoa tivesse a minha aparência. Ou talvez não". No fim, foi precisamente isso que o extenuou. Assistiu ao fogo-de-artifício das celebrações do aniversário de Kim Il-sung, a 150 metros de distância das outras pessoas do seu grupo, sentindo-se um "norte-coreano": "Depois de ser tão apontado e de me sentir tão estranho, sempre tão diferente, tive ali um descanso. Aquele alívio de por um momento não ser notado foi tão grande que senti que voltei a ser uma pessoa como as outras, que eram as que me estavam a rodear e que eram norte-coreanas", explica-nos.
Nota-se esse cansaço. José Luís Peixoto assume-o. "Tinha uma epifania quase diária: estou na Coreia do Norte!... A primeira metade, vivia-a com grande entusiasmo, a segunda como uma condenação. Foi curioso que a partir de certa altura o objectivo de liberdade se tornasse a China [a ponte para chegar e partir da Coreia do Norte]. Ansiava por poder andar sem ter alguém atrás de mim, escolher o que ia comer, telefonar a quem eu quisesse, mandar mensagens. Sentia saudades de coisas como a publicidade."
Mais perto do jornalismo
Como já dissemos: José Luís Peixoto ainda não tinha deixado a Coreia do Norte e já começara a escrever Dentro do Segredo - continuou depois em jornadas de trabalho de 15 horas no Brasil, EUA, Macau; e enviou o livro à editora a partir de Toronto (Canadá).
Tinha feito várias leituras antes, tirado muitas notas durante. E desta vez, pela primeira vez, a sua escrita recorreu-se de outros elementos. "As fotografias e os pequenos vídeos que fui fazendo foram muitíssimo úteis" - "uma forma de tirar apontamentos", diz. Porque precisava de ter a certeza de que tudo o que estava a escrever correspondia ao que tinha visto. Porque sentiu a necessidade de se "aproximar do jornalismo", sobretudo da crónica. "Foi uma experiência diferente, que me deu um trabalho diferente de escrita. Se digo que o comboio era de uma determinada cor, ele era mesmo dessa cor. Num romance posso dizer que o comboio é azul porque na verdade não existe comboio."
Talvez o surrealismo deste país dispense a ficção. Ou talvez esta ainda não esteja totalmente afastada. "Posso algum dia tentar fazer." Por enquanto, a realidade que estava à frente dos seus olhos pedia outra coisa. "Era muito importante que o texto tivesse um carácter documental, sério. Pelo tema e por aquilo que me propunha retratar... Nunca se tem completamente a noção do que é a verdade e do que está realmente a acontecer, porque existem versões antagónicas, e ambas às vezes parecem falhar, num ponto ou noutro. Quando colocamos alguma coisa em causa, depois sentimos a tentação de colocar tudo em causa. Por isso, muitas vezes sinto que aquela história não está completamente bem contada. A minha tentativa foi de a contar, mas apercebi-me claramente de que não estava a contar a história final e que certamente haveria muitos equívocos da minha parte." "Não tive acesso a informação que permitisse acrescentar alguma coisa, mas senti que não havia esse livro: como é estar lá? Foi isso que me levou à Coreia do Norte."
Houve outras. "A necessidade de me afastar de mim próprio enquanto tema" para falar de uma realidade exterior. Em todo o caso, usa a primeira pessoa. Talvez nem fizesse sentido ser de outra maneira, num local onde o confronto com o outro, que passa a ser o estrangeiro, visitado pelo leitor, é tão brutal. "Também é cansativo esse confronto. Não há fuga."
A escrita também saiu do seu processo habitual porque foi espoletada pela viagem, sabendo de antemão que era isso mesmo que iria acontecer. "Vivia aquela experiência de estar lá sabendo que iria escrever sobre ela, e quando voltei, escrevi. O livro foi surgindo, mas eu tinha a intenção à partida de escrever sobre a Coreia do Norte."
Dentro do Segredo será apenas um pequeno fragmento de uma realidade para a qual não existe uma só verdade. "Eu tenho uma vivência desse país que é muito intensa e muito importante para mim, marcante, e que está expressa no livro. No entanto, não é a única, e tenho a certeza de que há muitas histórias para contar e por contar. É um país absolutamente fascinante, apesar de toda a crueldade que encerra e que me parece que é muito evidente."
No final, o escritor dirige-se a um futuro e hipotético leitor norte-coreano. Em coreano. Tradução, por favor: "Digo-lhe que aquilo que ali está é aquilo que eu pude saber neste momento e que ele está numa posição, sob um certo ponto de vista, privilegiada para saber algumas coisas mais do que eu. Mas sob outro ponto de vista, vai ter um conhecimento diferente do meu." Ou seja, o escritor que visitou a Coreia do Norte em Abril de 2012 ajudará a completar a imagem.
"Essa questão pode ser transposta para aqui, para este preciso momento: nós não temos distanciamento para fazer um retrato completo desta sociedade, onde a informação circula de forma diferente e onde às vezes nos parece que temos informação a mais, porque a [falta de] distância não nos permite ter uma perspectiva. Daqui a 50 anos possivelmente vamos ter essa perspectiva, mas vai-nos faltar o cheiro, o contacto directo dos sentidos. Neste livro, em muitos momentos, tenho a preocupação de dizer que foi assim em 2012; não porque eu ache que ele vai ser lido daqui a séculos, mas porque acredito que é um livro marcado no tempo e daqui a dez anos a situação naquele país vai ser certamente diferente, aquilo que se vai saber vai ser certamente diferente, e vamo-nos surpreender com isso."
Também nos iremos surpreender com aquilo que está para vir de viagens futuras, assegurou. "A obra total de um autor pode ser comparada a uma obra mesmo, a uma construção. Este livro abriu uma nova ala. Tenho a intenção de escrever outros livros de viagem. As crónicas [que escreve para a revista Visão] têm sido importantes. Necessariamente torno-me uma personagem. A partir deste livro, o eu já está caracterizado."
Texto publicado na Revista 2 de 18 de Novembro de 2012