O desastre é "evitável", mas a Venezuela está à beira de uma grave crise humanitária
Organização de prevenção de conflitos alerta para as consequências dramáticas da crise económica que está deixar famílias sem comida e doentes sem medicamentos. Tensão na fronteira com a Colômbia pode chegar aos tribunais internacionais.
Intitulado “Venezuela, um desastre evitável”, o documento aponta os efeitos nefastos da crise política em Caracas, que se tem aprofundado desmesuradamente desde 2014, com o fim do diálogo entre o Governo do Presidente Nicolás Maduro e a oposição, e que alimenta receios de uma nova onda de violência, durante a campanha e depois da votação das eleições legislativas marcadas para Dezembro.
Mas com as atenções viradas para o conflito político, “um outro aspecto do drama” em curso na Venezuela tem passado despercebido, lamenta a organização: “o problema social, que se não for abordado rapidamente e de forma contundente poderá converter-se numa grave crise humanitária, com um impacto sísmico na política e na sociedade”.
Para o ICC, um think tank internacional cuja missão é prevenir os conflitos no mundo, a combinação de uma série de factores e desenvolvimentos negativos produziu um quadro de pobreza, sofrimento e que se assemelha àquele que se verifica em locais devastados por desastres naturais. Entre eles está a “queda pronunciada dos rendimentos reais das famílias, a vincada escassez de alimentos básicos, medicamentos e outros produtos de primeira necessidade” e ainda o “colapso dos serviços sanitários e do sistema de saúde”.
O relatório, redigido após uma pesquisa com visitas ao terreno entre Abril e Julho, apresenta casos concretos de hospitais desmantelados e doentes cardíacos, oncológicos ou com sida que “passam meses sem acesso aos medicamentos de que necessitam para sobreviver”; de famílias que passam horas em filas de supermercado e regressam a casa de mãos vazias, fruto da crise de abastecimento e do sistema de racionamento imposto pelo Governo e de crianças e idosos que já não se lembram quando foi a última vez que comeram carne.
Para os relatores do Crisis Group, a crise na Venezuela “é o resultado de más decisões políticas, incompetência e corrupção”. O país, que vive com a mais alta taxa de inflação do mundo (a previsão é que este ano seja de 150 a 200%) e um défice orçamental de quase 20% do PIB, atravessa uma recessão profunda: em 2014, a Venezuela registou um crescimento negativo de 4% e para este ano as estimativas são de uma queda de 7% do Produto Interno Bruto. Economistas independentes prevêem que a taxa de escassez de produtos básicos supere os 60% antes do fim do ano.
Apesar do retrato negro dos indicadores, o país conseguiu até agora evitar a fome, que foi prognosticada por vários especialistas como resultado inevitável da escassez e colapso do consumo. Para o ICC, “uma consequência mais provável é a malnutrição crónica, que já é possível detectar em alguns inquéritos”.
Na economia, “a expropriação de terras a empresas privadas, os duros controlos de preços e câmbios e as empresas estatais, ineficientes e frequentemente geridas de forma corrupta, afectam a produção de bens e serviços”, lê-se no documento. O modelo em vigor, prossegue, “fomenta a corrupção, o contrabando e o mercado negro, ao mesmo tempo que alimenta a inflação e a escassez”: a solução, preconiza, seria o seu “desmantelamento cuidadoso e substituição por mecanismos que proporcionem uma rede de segurança para os mais pobres sem asfixiar a produção”.
A tal combinação que deixa a população venezuelana em situação de vulnerabilidade, também representa um desafio regional, dados os “riscos potenciais de migração económica e política a larga escala, a propagação de doenças e a proliferação do crime organizado”. “Uma Venezuela instável e incapaz de cumprir os seus compromissos internacionais poderá desestabilizar outros países da região, em particular as nações do Caribe que dependem da energia que importam de Caracas a preços subsidiados”, considera o ICC.
A situação mais complexa, e que já evoluiu para uma crise diplomática internacional, tem a ver com o fecho da fronteira entre a Venezuela e a Colômbia e a ordem de deportação de mais de mil cidadãos colombianos residentes no país, acusados pelo Presidente Nicolás Maduro de serem “paramilitares” e “contrabandistas”. Na terça-feira à noite, numa comunicação ao país, o Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, disse estar disposto a denunciar “membros da cúpula civil e militar do Governo da Venezuela” ao Tribunal Penal Internacional, por alegados abusos dos direitos humanos e crimes contra a humanidade.