Valls anuncia "medidas excepcionais" contra o jihadismo e radicalismo
Primeiro-ministro diz que não se trata do regime de excepção reclamado pela bancada da UMP no parlamento.
As iniciativas propostas pelo Governo vão no sentido de impedir que actos terroristas como o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo – que lança esta quarta-feira uma edição especial, com uma tiragem histórica de três milhões de exemplares –, o assalto mortal a uma agente da polícia na rua ou o sequestro à mercearia de produtos kosher Hyper Cacher possam voltar a acontecer. Para tal, o executivo propõe o reforço da vigilância de indivíduos suspeitos, acusados e detidos por crimes de terrorismo, e outros que as autoridades considerem um “risco” para a segurança nacional.
Assim, aqueles que estejam no sistema prisional e sejam classificados como “radicalizados” terão um novo regime de isolamento em alas especiais dentro das cadeias, que para o coordenador europeu da luta contra o terrorismo, Gilles de Kerchove, têm funcionado como “incubadoras de jihadistas”. A medida, que está a ser experimentada desde Novembro numa prisão da região de Paris, será alargada a toda a França.
Em relação aos indivíduos em liberdade, Manuel Valls fez referência à criação de um “arquivo” de recenseamento de pessoas que tenham integrado grupos de combate ou sido condenadas por terrorismo, e que serão obrigadas a declarar o domicílio e a submeter-se ao controlo das autoridades. As “condições jurídicas” para o estabelecimento deste novo arquivo serão definidas pela ministra da Justiça, Christine Taubira, e pelo ministro do Interior, Bernard Cazeneuve – que ficou ainda incumbido de apresentar, “dentro de oito dias”, o rascunho de um novo decreto para agilizar a recolha de informação e vigilância electrónica de suspeitos de terrorismo, com “propostas particulares para a utilização da Internet e das redes sociais”.
Mais polémica é a intenção de avançar com um programa de vigilância de passageiros aéreos, rejeitado pelo comité de Liberdades do Parlamento Europeu. Manuel Valls defendeu o funcionamento deste dispositivo à escala europeia, mas recusou esperar pela luz verde de Bruxelas: segundo garantiu, o chamado sistema PNR (acrónimo de Passenger Name Record) francês estará operacional no terceiro trimestre de 2015. O programa prevê que os dados pessoais dos passageiros, coligidos pelas companhias aéreas, sejam cruzados com os arquivos da polícia e dos serviços secretos, que poderão sinalizar comportamentos inabituais (por exemplo, a compra de viagens só de ida para destinos sensíveis ou percursos com múltiplas escalas para baralhar pistas).
De resto, o primeiro-ministro anunciou ainda o “reforço muito significativo” de competências, quadros e meios materiais dos serviços de informação e antiterrorismo, que reconheceu estão “sobrecarregados” – só a investigação do “ramo” sírio e iraquiano em França requere actualmente 1250 profissionais, exemplificou.
A intervenção de Valls foi pontuada por apelos à razão, à moderação, tolerância e respeito “pela liberdade e a democracia”. O primeiro-ministro fez questão de dizer que “a França está em guerra contra o terrorismo mas não está em guerra contra uma religião”, e lembrou que “o Estado protege tanto aqueles que crêem, como os que não crêem”. O discurso, de cerca de 20 minutos, foi longamente aplaudido por todos os deputados.
Antes disso, já se tinham visto outros sinais de unidade no hemiciclo: os parlamentares cumpriram um minuto de silêncio em memória das vítimas dos atentados em Paris e, de improviso, entoaram o hino nacional (“acontecimento raro”, assinalava a imprensa francesa). Também prestaram tributo, com uma ovação de pé, às forças de segurança, que esta semana iniciaram uma operação sem precedentes no país: o Exército disponibilizou dez mil soldados para patrulhar a capital e outros pontos sensíveis do território, enquanto cinco mil polícias estão destacados para a segurança dos locais de reunião de judeus e muçulmanos.
Porém, a unanimidade acabou por ser quebrada nas intervenções políticas posteriores. O líder da bancada da UMP, Christian Jacob, defendeu a votação de um regime verdadeiramente excepcional, que “restringisse as liberdades de alguns” ou autorizasse a “censura da Internet e da televisão”, num discurso que o Libération (diário de esquerda) descreveu como “ultra-securitário” e vários críticos nas redes sociais denunciaram como “ultra-reaccionário”. “E com estas palavras Jacob põe um fim à unidade nacional”, vaticinou o deputado socialista Pascal Cherki, que não deixou de lamentar a ausência de uma “dimensão social” no discurso do primeiro-ministro, “que não vai ser capaz de resolver todos os problemas com medidas da ordem”.
Os mais procurados
A polícia acrescentou mais um nome à lista dos “mais procurados de França”: Mehdi Sabri Belhouchine, o cidadão francês de 23 anos que viajou para a Turquia e posteriormente para a Síria com Hayat Boumeddiene, companheira de um dos terroristas mortos pela polícia no cerco ao supermercado judaico (a investigação está a tentar apurar se o alvo inicial era uma escola judaica das proximidades). Belhouchine foi interrogado em 2010 por suspeita de ter sido recrutado para combater na fronteira do Paquistão e Afeganistão, mas nunca foi acusado.
Um outro francês, que foi detido no primeiro dia do ano na Bulgária ao abrigo de um mandado de captura por suspeita de sequestro do filho, é suspeito de envolvimento no ataque ao Charlie Hebdo. Fritz-Joly Joachim, de origem haitiana, foi detido a bordo de um autocarro que se dirigia para a fronteira turca: a ex-mulher, que apresentou queixa, alega que pretendia seguir com o filho de três anos para a Síria e juntar-se aos jihadistas, uma acusação que o próprio desmentiu, negando ser “radical ou terrorista”.
As autoridades estabeleceram uma série de contactos entre Joachim e um dos dois irmãos Kouachi, autores do atentado ao Charlie Hebdo que fez 12 mortos. As buscas pelos cúmplices prosseguem, com a polícia a suspeitar que outras seis pessoas – incluindo um homem que foi visto a conduzir o carro de Boumeddiene – possam ter participado no ataque.