Uruguai quer concorrer com traficantes para derrotar o narcotráfico
Responsável pela coordenação do combate à toxicodependência em Portugal, João Goulão, diz que a medida "merecerá toda a atenção", mas não prevê mudanças na actual lei portuguesa.
As quase 12 horas de debate no Senado e os números da votação final (16-13) reflectem a divisão da sociedade uruguaia. Uma sondagem da empresa Equipos Consultores revela que 58% dos cidadãos não concordam com a nova lei, apesar de este valor ter descido dos 68% registados em Junho.
No final da matarona, dezenas de pessoas que assistiam ao debate nas galerias do Senado receberam a decisão com gritos e aplausos, enquanto centenas aguardavam nas escadarias do edifício com cartazes onde se podiam ler frases como: "Cultivando a liberdade, o Uruguai cresce."
O senador Roberto Conde, da Frente Ampla, no poder, foi directo ao assunto na defesa da nova lei: "A guerra às drogas fracassou." A proposta do Uruguai é combater o tráfico de cannabis com outras armas: o controlo da produção e da distribuição pelo Estado, com preços equivalentes aos praticados no mercado ilegal.
Quando entrar em vigor, em Abril de 2014, qualquer uruguaio com mais de 18 anos de idade poderá comprar um grama por um dólar (pouco mais de 70 cêntimos de euro), sendo preço ajustado consoante os preços praticados no mercado ilegal – o Governo uruguaio espera que a intervenção do Estado possa levar à redução dos valores obtidos pelos traficantes.
Os interessados devem fazer um registo numa base de dados – que não será pública – e podem comprar até 40 gramas por mês nas farmácias. Para além da venda, o projecto prevê mais duas modalidades para o acesso à cannabis. A autocultura, com um limite de seis plantas, e a plantação em clubes, com um máximo de 45 pessoas e 99 plantas. De acordo com a Junta Nacional de Drogas (JND), 20 hectares de plantações serão suficientes para cobrir o consumo.
Num país com pouco mais de 3,3 milhões de habitantes, e em que a posse de cannabis para consumo próprio nunca foi criminalizada, há entre 120.000 e 200.000 consumidores, segundo os números oficiais da JND. As estatísticas mostram que o consumo duplicou nos últimos anos, num mercado que vê passar todos os anos 22 toneladas de cannabis.
"O nosso objectivo é roubar-lhes o mercado"
Desde que foi eleito Presidente, em 2010, José Mujica, antigo guerrilheiro do movimento Tupamaros nas décadas de 1960 e 1970, já patrocinou algumas alterações marcantes nas leis do país. Depois do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que entrou em vigor em Agosto passado, Mujica, de 78 anos, defendeu a regulação do mercado de cannabis com o pragmatismo com que tem conduzido a sua acção política nos últimos anos.
"Não é legalização, é regulação de um mercado que já existe. Independentemente da nossa vontade, esse mercado existe. A diferença é que nós começamos por admitir a realidade", disse José Mujica numa entrevista ao jornal brasileiro Folha de São Paulo, publicada no início de Dezembro.
Não é uma questão de gostos ou preferências, salientou o Presidente do Uruguai. "Eu não gosto. Queria que a cannabis não existisse. A cannabis, como qualquer droga, como qualquer vício, é uma praga. Mas pior do que a toxicodependência é o narcotráfico, porque corrompe e castiga toda a sociedade", disse Mujica.
"O nosso objectivo é roubar-lhes o mercado. Só repressão não resulta. Vamos continuar a reprimir, mas da forma como fazem os domadores: com uma mão, oferecemos comida; com a outra, castigamos."
Portugal atento à nova lei do Uruguai
A lei vai ser assinada pelo Presidente nas próximas semanas e deverá entrar em vigor em Abril de 2014, mas as autoridades uruguaias salientam que haverá um período de experimentação. Se não resultar – se o consumo aumentar –, o Governo já disse que voltará atrás.
A revolução do Uruguai nos planos de combate ao tráfico de droga está a ser acompanhada com atenção em todo o mundo, em particular em Portugal, onde a lei da descriminalização, de 2001, representou também uma mudança de paradigma e um exemplo para muitos outros países.
O debate sobre o combate ao tráfico e ao consumo de drogas ganhou um novo fôlego, disso ao PÚBLICO João Goulão, presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) e responsável do Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência.
"Esta assunção de um papel dominante por parte do Estado na regulação do mercado é uma experiência que naturalmente merecerá toda a atenção. Tal como outros países fizeram em relação à experiência portuguesa da descriminalização, também esta nova experiência do Uruguai será merecedora de atenção, para avaliar que efeitos terá nos consumos e nos mercados", disse o responsável.
Em termos pessoais, João Goulão admite não ter nada contra a intervenção directa do Estado, à semelhança do caso uruguaio, mas não vê no horizonte qualquer discussão sobre a aplicação de uma solução semelhante em Portugal ou em qualquer outro país da União Europeia.
"Em relação à alteração do quadro legal existente em Portugal, não preconizo nenhuma mudança. Considero que o quadro legal que temos em Portugal é adequado ao desenvolvimento da nossa sociedade. Sinto que a nível da União Europeia há uma preocupação em manter aquilo que foi alcançado na última década. Não há muitos movimentos no sentido de dar saltos em frente. Os diversos Estados-membros estão mais preocupados em consolidar aquilo que já conseguiram, e que tem dado de uma forma geral bons resultados, com evoluções positivas na maioria dos indicadores, do que propriamente em alterar o paradigma do quadro legislativo", disse o director do SICAD.
João Goulão confirma a ideia transmitida pelo senador Roberto Conde, na sua defesa da aprovação da nova lei no Uruguai. "Este movimento tem muito a ver com a reivindicação do fim da guerra às drogas. Tem-se constatado que um combate aos problemas da droga e da toxicodependência centrado apenas na intervenção das forças policiais não tem contribuído de forma significativa para a diminuição do impacto destes problemas naquelas sociedades."
Para o responsável, desde a aprovação da descriminalização em Portugal, em 2001, tem-se vindo a assistir a "uma década de assunção de que a tal guerra às drogas não tem conduzido à erradicação dos consumos e dos problemas, não tem sido coroada de êxito, pelo que estão a ser procurados pelos diversos países, e a nível regional, caminhos alternativos nestas abordagens".
O êxito do chamado "modelo português" – assente na "admissão de que a toxicodependência é uma doença crónica e recidivante", na descriminalização, nos cuidados de saúde e no apoio social – tem sido estudado ao longo dos anos. O próprio João Goulão esteve no Uruguai, "numa reunião que provavelmente teve alguma coisa de precursor no sentido desta decisão".
A todos diz a mesma coisa: "Aquilo que invariavelmente lhes dizemos é que de facto a descriminalização não foi a bala de prata que resolveu os problemas. Descriminalizar sem fazer todo o resto do trabalho de casa, que no nosso caso foi a instalação de respostas de saúde, de uma rede facilmente acessível, gratuita, de cobertura nacional, para as pessoas afectadas pelo problema – e o desenvolvimento de políticas de prevenção, de redução de riscos e de reinserção social –, tudo isso é um pacote completo e não é dissociável da descriminalização".
Apesar de toda a expectativa e curiosidade, a ONU reiterou nesta quarta-feira as críticas à aprovação da nova lei pelo Senado do Uruguai. Em comunicado, a UNODC acusa o país de violar a Convenção de Drogas Narcóticas de 1961, assinada pelo Uruguai, e que limita o uso de cannabis a fins médicos ou científicos.
A nova lei uruguaia, acusa Raymond Yans, presidente da Comissão Internacional de Controlo de Narcóticos, "não vai proteger os jovens, mas antes ter o efeito perverso de encorajar a experimentação ainda mais cedo, contribuindo assim para problemas de desenvolvimento e para o aparecimento de dependências e outros distúrbios em idades mais jovens".