Um sabor a vitória na praça. E uma sensação de fim de alguma coisa
As pessoas vieram para celebrar uma vitória, ainda incerta, mas real. Dizem que querem viver num país normal, europeu. A Ucrânia é um país com cultura e com orgulho em si próprio.
Por todos os acessos, de todas as direcções, muitos milhares de pessoas afluíram ao coração da Maidan, ali onde há menos de 24 horas mais de 100 pessoas morreram, nos confrontos entre manifestantes e forças policiais.
As pessoas vieram para celebrar uma vitória, incerta, mas real. Talvez o Presidente volte atrás nas suas promessas de realizar eleições antecipadas, repor a Constituição de 2004 que atribuía mais poderes ao Parlamento, formar um Governo de Unidade Nacional. Mas a derrota não tem recuo. A humilhação de ter matado e a seguir perdido.
E talvez os manifestantes acabem por não se sentir satisfeitos com a promessas do Presidente, principalmente porque não confiam nele, e decidam prosseguir a luta. Alguns grupos e porta-vozes já o disseram - não vão retirar-se e planeiam novos ataques, talvez deitando a perder o que foi conseguido. Mas ninguém lhes pode tirar este sabor de vitória. O sentir que a acção tem consequências.
“Temos de exigir que todos os responsáveis pela violência sejam investigados e julgados”, disse Olga, 35 anos, professora. “A Ucrânia tem de mostrar ao mundo que é um estado de direito, uma democracia. Que as pessoas são responsáveis pelos seus actos, mesmo os governantes. Sobretudo eles. Eu quero voltar a ter orgulho de ser ucraniana”.
Esta é uma das sensibilidades da manifestação. Uma percentagem dos que protestam fá-lo porque quer mais liberdade política, mais direitos, mais dignidade. “A minha geração experimentou a liberdade”, diz Olga. “Antes de Ianukovich chegar ao poder, houve um período de total liberdade neste país. Foram criados mais de 100 partidos políticos, surgiram jornais e revistas de todas as tendências, era permitido dizer e escrever tudo. Entretanto chegámos a este ponto, em que uma pessoa pode ser assassinada a tiro por vir para a rua manifestar-se. As pessoas da minha geração não se conformam com isso. Querem viver num país normal, europeu. A Ucrânia é um país com cultura, com civismo, com humanidade, com orgulho em si próprio. Recusamo-nos a viver em ditadura. Nunca mais, nunca mais”.
De repente há a sensação de que isso foi conseguido, e que o foi de um modo sólido e irreversível, tão natural parece agora este mundo de liberdade que é Maidan. Um mundo recente e precário, vulnerável como o sangue ainda vermelho e húmido de algumas das vítimas de ontem, derramado no chão e cercado de flores.
Mas agora que a zona controlada pelos manifestantes se estende por todas as grandes avenidas do centro, com as suas barricadas de mais de três metros de altura, antes construídas com neve comprimida e agora fortificadas com pedregulhos, com as suas bancas de distribuição de armas - pedras, bastões e cocktails molotov - os seus checkpoints de segurança, as suas tendas de comida e bebidas, as suas brigadas de limpeza, agora que não é possível avistar nenhum polícia, militar ou qualquer outro agente de autoridade, a vertigem é ainda maior.
Sobraram seres esquisitos
Sobraram seres esquisitos. Uma senhora elegante, de casaco de peles e uma tranca debaixo do braço. Um jovem hippie com uma barra de ferro na mão. Uma rapariga magra, de olhos azuis, protegendo o peito com um escudo de ferro.
Outros, infinitamente mais aberrantes, revelam-se esteticamente mais coerentes, porém - homens musculados, com capacetes de guerra, coletes à prova de bala, máscaras negras, escudos e bastões, e bandeiras de partidos fascistas. Movimentam-se no seu elemento: um cenário de campo de batalha, com os seus montes de detritos, pneus, pirâmides de lixo, pontos de armamento, munições e extintores, tendas de lona verde e uma fuligem negra cobrindo tudo e pairando sobre as carcaças de contentores e carros incendiados.
Alexander, 58 anos, ex-membro das forças especiais soviéticas, e Oleg, 54 anos, treinador de luta greco-romana, militam num partido de extrema-direita, o Svoboda, e simpatizam com a Organização Nacionalista Ucraniana (UNO), um velho movimento conhecido pela sua entusiástica colaboração com os nazis, na Segunda Guerra Mundial.
“Os polícias são animais, porque atacaram uma tenda onde havia figuras e vários objectos religiosos”, disse o surpreendentemente pio Alexander, antes de explicar, com pormenores de profissional, como é que mais de 70 pessoas foram mortas por snipers da polícia estrategicamente colocados nos edifícios circundantes. “Ianukovich é um fascista”, disse Oleg. “Anunciou um dia de luto pelos mortos, fez hastear por todo o lado as bandeiras a meia-haste, e depois lançou a polícia contra o povo, para provocar ainda mais mortos”.
Retratos dos mártires
Alexander e Oleg passaram a noite na praça junto a uma banca com velas em memória dos mártires do movimento nacionalista ucraniano. Por trás da banca com os retratos dos mártires, a bandeira vermelha e negra do UNO, que, segundo os dois amigos, vai agora ressuscitar como partido legal. “A Ucrânia deve ser para os ucranianos”, explica Alexander com o tom enfático de quem formulasse uma ideia original. “Estamos cansados de ser subjugados pela Rússia e outras potências”, continua Alexander. “Eu fui obrigado a ir viver para a Rússia, para servir numa unidade especial do Exército Vermelho. Muitos outros ucranianos foram forçados a combater no Afeganistão e no Cáucaso. Milhões de pessoas foram deslocadas. O nosso país foi invadido e ocupado muitas vezes por potências estrangeiras. Nós amamos a Ucrânia, queremos que o mundo respeite a Ucrânia”.
Os grupos nacionalistas, que outrora faziam gáudio do seu anti-semitismo, mostram-se agora grandes teóricos do conspiracionismo. Uma cabala orquestrada pelos americanos e judeus para destruir a Ucrânia está em curso e joga-se aqui, sob os nossos olhos, na própria revolução da Maidan, explicam Alexander e Oleg. Cabala essa que é no entanto liderada, de forma algo incompatível, pela Rússia de Putin, “o homem mais perigoso do mundo”.
Uma conspiração?
Leo, um georgiano de 27 anos que desistiu de combater o poder russo no seu país, veio aproveitar o momento mais propício de Kiev. “Há uma conspiração da maçonaria e dos milionários americanos para destruir a Ucrânia”, disse ele, de onde concluiu que a situação apenas tende a complicar-se: “Isto é o princípio de uma grande guerra entre a Ucrânia e a Rússia”.
Leo casou com uma rapariga de Ternopil, uma cidade do Oeste da Ucrânia onde o partido direitista Svoboda detém o poder local. Vivem lá os dois, com dois filhos, e vieram para Kiev num dos cinco autocarros fretados para trazer manifestantes à capital. Se o actual conflito degenerasse numa guerra civil, como alguns auguram, Ternopil e Lviv seriam os centros da facção anti-Rússia e anti- Ianukovich.
Sveta, a mulher de Leo, admite que está cheia de medo, mas considera a sua presença no protesto “uma obrigação”. Tem também uma teoria secreta: “Ninguém sabe, neste país, mas eu tenho a certeza de que há muitos russos misturados com a Berkut (a força especial da polícia ucraniana)”.
Tudo indica que as teorias da conspiração são espalhadas pelos grupos de extrema-direita. Mas acabam por contagiar toda a gente na Maidan. Até inocentes manifestantes como Olga, que apenas lutam pela democracia, cedem a visões esotéricas (ou simplesmente lúcidas?): “A Europa só está a defender a Ucrânia porque quer roubar-nos à influência da Rússia. Mas nunca nos permitirá pertencer à União Europeia, porque nós somos bárbaros”.
Interrogada sobre o eventual perigo da infiltração dos grupos de extrema-direita no movimento pró-democracia, Olga desdramatiza: “Eu não concordo com eles, mas compreendo que queiram defender a Ucrânia. Que significa, afinal, ser nacionalista? Amar o seu país”.
As várias sensibilidades podem ser antagónicas, mas não deixam de ser também transversais. A outra, estranhamente ubíqua pela geografia de Maidan, é a religião. No palco onde os activistas proferem os seus discursos, num ciclo ininterrupto que inclui também poemas patrióticos e canções de cossacos, há uma estátua da Virgem com um manto branco, velas e pinturas do rosto de Jesus Cristo.
Além disso, depois de cada discurso, padres ortodoxos e católicos irrompem em cânticos intermináveis. A certas horas, constituem completos ofícios religiosos que ocupam o tempo do palco da revolução.
Os muitos milhares de pessoas ouvem os cânticos polifónicos em silêncio, algumas com lágrimas nos olhos, outras sem disfarçar algum enfado. Por toda a Praça da Independência e territórios adjacentes os sacerdotes passeiam-se nas suas vestes rigorosas, pregam sermões a grupos restritos, cantam em palcos dispersos. Ninguém os ignora, a sua autoridade é indiscutível e unânime, ao contrário do que sucedia com os controversos imãs na Praça Tahrir, durante a revolução egípcia. Em comparação com essa, ou com a de Taksim, em Istambul, esta Primavera é mais confusa, mais violenta, mais silenciosa e mais sombria.
Aqui, os guerreiros parecem mais velhos, mais pobres, mais tristes. Enquanto ouviam os trinados límpidos e comoventes dos padres, uma forte explosão fazia-se sentir ao longe, de vez em quando. Todos sabiam tratar-se apenas da rebentação, pelos rebeldes, das bombas que sobraram, como brinquedos de triunfo e bazófia. Mas mesmo assim estremeciam, entreolhavam-se cheios de medo. Como se soubessem, ou esperassem, que a festa que viviam não fosse o fim de alguma coisa, mas o princípio.