Três anos depois, o Egipto tem um novo faraó no poder
A Praça Tahrir não deverá voltar a encher-se de gente este sábado. Os egípcios já derrubaram dois presidentes e votaram sete vezes mas a revolução está longe de terminar
É pouco provável que volte a haver um mar de gente este sábado na Tahrir. O Movimento 6 de Abril, jovens revolucionários laicos responsáveis por algumas das primeiras manifestações contra Mubarak, ainda pré-revolta, que tem vários dos seus líderes detidos (um já condenado por ter protestado contra uma lei que limita o direito às manifestações), chegou a marcar uma manifestação mas tem-se mantido em silêncio.
Os apoiantes da Irmandade Muçulmana, entretanto considerada uma organização terrorista, apelaram a 18 dias de protesto, tantos dias quantos os das manifestações que em 2011 levaram os militares a deixarem cair Mubarak. Mas a Irmandade dificilmente mantém capacidade para organizar uma demonstração de força. A maior parte da liderança está na prisão e centenas de membros do movimento foram mortos, a maioria quando as forças de segurança dispersaram à força uma concentração, em Julho. Os militares estão preparados. Não só deram às forças de segurança poderes renovados como marcaram eles próprios a sua manifestação, para contrariar “o plano da Irmandade para semear o caos”.
Os egípcios já votaram sete vezes desde Fevereiro de 2011. E, no entanto, nem um só político eleito está em funções. O Presidente foi deposto, o Parlamento dissolvido. Os militares, que asseguraram o poder entre a queda de Mubarak e as presidenciais do Verão de 2012, estão de volta ao leme no maior dos países árabes. Na prática, foi sempre assim: desde a independência que todos os líderes egípcios saem da hierarquia militar.
É cedo para declarar falhada a revolução egípcia, mas os que ousaram gritar contra Mubarak não o fizeram para ter militares não eleitos a mandar. A Irmandade Muçulmana teve a sua oportunidade e falhou. Cometeu erros, foi pouco inclusiva e não muito competente. Mas também pagou o preço da instabilidade e um ano no poder num período de transição não é quase nada. Agora, está de regresso à clandestinidade. Assim viveu durante Mubarak e não foi por isso que desapareceu.
“Um amigo meu tem a foto do general Abdel Fattah al-Sissi no fundo de ecrã do seu telemóvel, para se algum polícia o tentar confiscar”, contou a AFP Shaimaa Awad, islamista de uma família de membros da Irmandade. Sissi é chefe do Exército, vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa. É quem manda hoje no Egipto.
Shaimaa, que já passou alguns dias na prisão durante o Verão, instalou uma aplicação no seu smartphone para passar a mensagem se voltar a ser detida. “Para além disso, dei a pessoas diferentes as minhas palavras passe no Twitter, Facebook e Gmail: se for apanhada, eles fecham as contas todas.”
Instinto de purga
Quando os militares anunciaram a demissão de Mubarak, os egípcios nas ruas e nas praças festejaram e gritaram “uma só mão”, um “todos juntos” que se tornou numa das palavras de ordem desta revolta. Passado uns meses, jovens revolucionários e islamistas gritavam o mesmo contra os militares. Este ano, voltaram a fazê-lo, desta vez contra os islamistas. Há sempre um inimigo do povo e esse inimigo tem sido quem está no poder.
“O medo de um conflito generalizado ou de um derrube do sistema parece estar na origem de um instinto colectivo de purga: a sociedade partilha a necessidade de se desembraçar de um ou de outro dos seus componentes, percepcionado como ameaçando o todo”, interpretam num artigo recente Peter Harling, e Yasser El Shimy, do think tank International Crisis Group. Este “inimigo” é sempre visto como estrangeiro: a Irmandade foi acusada de conspirar com grupos como o Hamas palestiniano e o Hezbollah libanês e ao seu derrube seguiu-se a diabolização dos refugiados palestinianos e sírios.
É um ciclo vicioso, concluem, alimentado por “campanhas de ódio orquestradas pelos media”, que impede os egípcios de dar um sentido aos acontecimentos e os leva a saltar de angústia em angústia, de mito em mito. Ao da Irmandade, “o islão é a solução”, segue-se agora um “estranho discurso pseudo-nasserista, que pretende ressuscitar o espírito original da República fundada pelo Exército”. Como o anterior, antecipam, “não resistirá aos testes da realidade”.
A romancista egípcia Ahdaf Soueif tem outra leitura. Num artigo de opinião publicado no Guardian, concorda que o país está polarizado entre “generais, governo interino, burocracia, agentes de poder e da economia do regime de Mubarak”, por um lado, e, por outro, a Irmandade e a Aliança de Defesa da Legitimidade, grupo criado para contestar o golpe. Mas diz que “os outros” são os revolucionários que rejeitam essa polarização. “São as pessoas que os dois lados gostariam de ganhar – ou destruir. São a ‘quinta coluna’, as ‘células adormecidas’, os ‘agentes pagos por poderosos inimigos’, os ‘activistas mercenários’”.
Sissi, Mubarak, Mentuhotep II
Na narrativa dos militares, agora, sim, começou a transição. Ao referendo constitucional vão seguir-se, este ano, eleições presidenciais e legislativas e tudo vai correr bem. O país espera pelo anúncio da candidatura à presidência do general Sissi, já por várias vezes antecipada pelos media estatais.
É pouco credível que outras candidaturas fortes possam surgir. Até agora, nenhum dos muitos candidatos às presidenciais de 2012 disse o que pretende fazer; só o partido salafista (islamistas ultra-ortodoxos) anunciou que não vai apresentar candidato. Afinal, quem se opõe aos militares pode acabar preso.
Sissi tem sido comparado a Mubarak. Isso é pouco, pelo menos para Zahi Hawass, que foi ministro das Antiguidades do ditador. “Na minha opinião, Sissi é realmente Mentuhotep II”, disse ao Guardian, referindo-se ao faraó que restaurou a ordem em 2046 a.C., depois de um século de caos. “Precisamos de um responsável eleito, um homem forte, para controlar o país. E na minha opinião, esse homem é Sissi”, diz Hawass, que já foi acusado de corrupção, hoje trabalha para o Ministério do Turismo e admite voltar a ser ministro quando o governo deixar de ser temporário.
“Notícia do ano 2022: Presidente Sissi decide concorrer por uma terceira vez para estabelecer a paz e a segurança. O ex-general anuncia sucessos extraordinários na luta contra o terrorismo, depois dos militares e polícias terem capturado os netos do derrubado Presidente Mohamed Morsi.” O exercício de ficção é de Abdel Halim Abdallah, um jovem egípcio que esteve na Tahrir desde o primeiro dia e apoiou durante muito tempo o ex-chefe da Liga Árabe, Mohammed ElBaradei, que regressou ao Egipto para se opor a Mubarak e que no Verão passado defendeu a necessidade de retirar Morsi do poder.
Os analistas do International Crisis Group avisam: “A ideia de que a multiplicação de detenções de dissidentes e a organização de algumas eleições vai permitir virar a página, realizar a transição e avançar é perigosa e ilusória”. Para isso é preciso juntar “competência económica” ao “bom senso político”, algo que ainda ninguém demonstrou ter nos últimos três anos.
Comentários
Últimas publicações
Tópicos disponíveis
Escolha um dos seguintes tópicos para criar um grupo no Fórum Público.
Tópicos