Sudão: Divórcio de risco no Sul e no Norte

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Desde a independência, em 1956 morreram mais de quatro milhões de pessoas em guerras civis no país Foto: Zohra Bensemra/Reuters

Dois novos Estados vão nascer em África. No Sudão do Sul começa amanhã (até 15) um referendo sobre a independência. O resultado é certo: secessão. O problema não é o previsível caos da votação: é “o dia seguinte”. Uns falam em “divórcio à checa”, outros em risco de guerra e desintegração. A independência terá de esperar por Julho, que é também a data limite para o decisivo acordo sobre o petróleo.

Os pessimistas falam em abertura da Caixa de Pandora e em “suicídio colectivo”. O Sul tem grandes recursos – minerais e petróleo –, mas será difícil construir um Estado e uma administração pública em tempo útil. Apenas há um exército e tribalizado. Faltam elites e funcionários. O Sul não tem identidade própria, é um mosaico de 100 tribos, apenas unidas contra a opressão do Norte. Em 2009, confrontos tribais e de senhores da guerra fi zeram 2500 mortos.

Por sua vez, o Norte, que sempre comandou, tornar-se-á num Estado pobre e instável se perder o Sul. A secessão é descrita em Cartum como uma “conspiração sionista” patrocinada pelos americanos. O Presidente Omar al-Bashir, que nos últimos tempos tem tentado seduzir o Sul, teme um golpe de Estado que levaria ao poder o partido islamista. Os outros focos de guerra permanecem activos ou prontos a reacender-se: do Darfur às montanhas Nuba.

Os optimistas dizem que a longa tragédia do Sudão – mais de quatro milhões de mortos em guerras civis desde a independência, em 1956 – torna difícil imaginar um futuro pior. E há o argumento da razão: se os actores forem racionais, uma nova guerra é impensável, pois o petróleo representa 95 por cento das receitas do Sul e 60 por cento das do Norte e só o podem explorar em conjunto. Oitenta por cento da produção está no Sul, mas é exportada pelo Norte, já que o Sul não tem acesso ao mar. Estão condenados a chegar a acordo, sob pena de suicídio.

As águas do Nilo

Os americanos tendem a olhar o conflito em termos de “choque das civilizações”. Para as igrejas pentecostalistas americanas, o Sudão é um palco da guerra entre o islão e a cristandade. Para os negros americanos, é a emancipação dos antigos escravos contra os esclavagistas árabes. Não é o petróleo que faz mover Washington: é a localização geopolítica do país e, sobretudo, a opinião pública americana.

As coisas são mais complicadas. O conflito remonta a dois momentos distintos. O primeiro é a constituição do Sudão moderno. O segundo é a longa guerra Sul-Norte.

O Sudão sempre foi uma área de interesse do Egipto: é vital para o controlo da água do Nilo. Foram os egípcios que o unifi caram e colonizaram a partir de 1821. Suplementarmente recrutavam no Sul escravos e soldados. Foram varridos por uma revolta políticoreligiosa, a do Mahdi, em 1883, que se estendeu a todo o país. Os britânicos, que tinham o desígnio de unir o Sudão à Cidade do Cabo por um caminho-de-ferro, socorreram o Egipto e, à segunda tentativa, em 1899, esmagaram o exército do Mahdi e estabeleceram um condomínio anglo-egípcio sobre o Sudão. Durará até à independência. O Cairo foi determinante na manutenção da unidade sudanesa: sempre o Nilo, que determina a sua economia.

Dois milhões de mortos

Em 1955, eclode a primeira revolta anti-Norte, devido à marginalização dos partidos do Sul. O poder era detido – e ainda hoje é – pelas elites do extremo Norte e do vale do Nilo. A rebelião durou 17 anos. Só em 1972 foi assinado um tratado de paz pelo novo Presidente sudanês, Gaafar Nimeiry.

Em 1983, um projecto de divisão administrativa do Sul e o anúncio da aplicação da sharia (lei islâmica) provocam nova revolta sulista, chefi ada pelo coronel John Garang, que funda o Exército de Libertação dos Povos do Sudão (SPLA). Garang não exigia a independência, mas um Estado federal, laico e democrático, o que lhe permitiu fazer alianças com os rebeldes de outras zonas e mesmo no Norte, onde tinha prestígio.

A guerra durará 19 anos e o balanço é eloquente. Mais de dois milhões de mortos. Quatro milhões de refugiados. Fome maciça. A ajuda alimentar confi scada pelos grupos armados. Bombardeamento de aldeias. Massacres indiscriminados, muitos deles para fazer deslocar populações. Guerra sem prisioneiros, de parte a parte. Escravatura praticada por algumas milícias governamentais. A descoberta do petróleo intensifi ca a violência, pois os nortistas tentam ocupar as áreas das jazidas e expulsar as populações. Foi uma “guerra esquecida” e sem imagens. Subitamente, em 1998, os ecrãs das televisões foram inundados com imagens das crianças esqueléticas do Sudão. O filme, patrocinado pelo British Disaster Emergency Commitee, mostrava uma multidão a lutar por sacos de farinha lançados de aviões Hércules-130. “Seguia-se o espectáculo incómodo de crianças a morrer à fome, cobertas de moscas, com o inevitável representante das ONG passando um lenço no rosto perturbado e coberto de poeira.”

A Lifeline Sudan, lançada em 1987 pelas Nações Unidas, foi a maior operação humanitária de sempre mas deixou um rasto de frustração: a ajuda alimentou antes de mais os bandos armados.

Trégua e separação

Em 2002, após êxitos militares da guerrilha, Garang assina com o governo de Cartum o acordo de Machakos (Quénia), que estabelece o cessar-fogo, anula a sharia no Sul e reconhece o direito à autodeterminação. Em 2005, é concluído o Acordo de Paz Global, que consagra um esquema provisório de partilha da renda do petróleo, a retirada das tropas governamentais (consumada em 2007), a criação de governo semiautónomo no Sul e, sobretudo, o referendo de 2011.

Era um acordo incompleto, visando uma confederação, com muita desconfiança de parte a parte. A morte de John Garang, semanas depois num acidente de helicóptero, esvaziará o projecto. O Norte nada fez para a concretizar. E a crise do Darfur concentrou a atenção internacional.

Lentamente, estabeleceu-se uma separação de facto entre Norte e Sul. Juba, a capital do Sul, que era uma aldeia no mato, beneficiou do boom da receita do petróleo e da ajuda internacional. O sentimento independentista tornou-se irreversível.

O Egipto, sempre preocupado com o acordo de distribuição da água do Nilo, continua a exigir a unidade sudanesa. A União Africana reafirma a intangibilidade das fronteiras e teme um efeito “bola de neve” sobre outros focos secessionistas. Mas os países da África Oriental apoiam a independência – vêem no novo Estado a fronteira geopolítica entre a esfera africana e a esfera árabe do continente, uma “segunda descolonização”.

O destino de Bashir

Omar al-Bashir tomou o poder em Cartum em 1989, tendo como mentor o teórico islamista Hassan al- Tourabi. Este terá tentado destituir Bashir em 1999. Foi ostracizado e depois preso. Libertado em 2005, é o pesadelo do poder. Ele e os nacionalistas, de inspiração nasserista, acusam agora Bashir de vender o país e anunciam antecipadamente uma revolta contra a independência do Sul. O mesmo fazem, em tom agressivo, outros países árabes e todos os islamistas. Bashir responde que, em caso de secessão, a lei islâmica será radicalizada no Norte.

Os islamistas temem perder uma base. Os EUA fazem promessas a Bashir se ele se “portar bem”. É uma incógnita. Se o Sul se arrisca a ser um “Estado falhado”, a separação fará do Norte um “país pobre”. Bashir não tem condições para recomeçar a guerra no Sul. Mas que acontecerá se for derrubado?

A porta de saída seria um rápido acordo entre Cartum e Juba sobre o petróleo, o que não é simples, pois entram em choque as ambições. O Quénia gostaria de ver o petróleo sudanês escoado por um porto seu, o que incentiva o Sul a subir a parada. A China, principal explorador do petróleo sudanês, pode ser a chave. Não quer guerra. Será o mediador mais efi caz.

Como quase sempre, a sorte ou a tragédia de um país são desenhadas pela sua riqueza: neste caso, as águas do Nilo e o petróleo.

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