Reaberta a ferida racial, Obama apela à calma
Absolvição do homem que matou adolescente negro gerou onda de indignação. Associações civis querem reabrir o processo.
Depois de deliberar mais de 16 horas durante dois dias, o júri considerou Zimmerman, de 29 anos e vigilante voluntário, não culpado das duas acusações que pendiam sobre ele: homicídio em segundo grau (não premeditado), bem como “manslaughter” (um crime de homicídio de menor grau). O veredicto conhecido no sábado à noite foi unânime e indica que as seis mulheres do júri (cinco brancas e uma negra ou hispânica, segundo o jornal Miami Herald) aceitaram o argumento de Zimmerman de que terá agido em autodefesa.
George Zimmerman nunca negou ter disparado contra Trayvon Martin na noite de 26 de Fevereiro de 2012 num condomínio de Sanford, na Florida, causando a morte do jovem negro de 17 anos, que se encontrava desarmado. O julgamento de Zimmerman pretendia determinar as circunstâncias em que a morte ocorreu, em particular quem confrontou quem, sendo que não há testemunhas oculares.
“Uma nação de leis”
Em reacção à decisão e aos protestos, Barack Obama, citado pela BBC, afirmou que a morte do jovem era uma “tragédia” tanto para a família da vítima como para o país, mas contrapôs que os Estados Unidos “são uma nação de leis e o júri pronunciou-se”. O Presidente insistiu que os próprios familiares de Martin apelaram à tranquilidade e pediu que as pessoas se concentrem antes em formas de evitar situações como esta no futuro.
Trayvon Martin, um estudante de liceu que vivia nos subúrbios de Miami, estava a visitar o pai em Sanford na noite em que foi morto. O adolescente voltava de uma loja de conveniência com uma lata de chá gelado e um saco de rebuçados quando foi visto por Zimmerman, que suspeitou que poderia ser um criminoso. O vigilante alertou a polícia, mas continuou a seguir Martin até ao momento em que os dois se terão envolvido numa disputa. Zimmerman alega que foi Martin que o atacou, deitando-o ao chão e batendo repetidamente a sua cabeça contra o passeio. Zimmerman, que se encontrava armado, diz ter disparado em auto-defesa.
“Devemos perguntar-nos a nós mesmos se estamos a fazer tudo o que podemos para terminar com a maré da violência de armas que leva demasiadas vidas neste país diariamente”, acrescentou Obama, frisando que essa é a melhor homenagem que se pode fazer à vítima.
No domingo, Trayvon Martin foi recordado em missas um pouco por todo o país. Do lado da igreja, o pastor da Ebenezer Baptist Church, a principal em Atlanta, o reverendo Raphael G. Warnock, disse ao New York Times que “Trayvon Benjamin Martin foi morto porque ele e outros jovens e homens negros como ele são vistos não como pessoas mas como problemas” e que a cor continua a ser motivo de “estigmatização”.
Processo civil
Várias associações fizeram saber que pretendem abrir um processo civil que permita que o veredicto seja reavaliado e o Departamento de Justiça do país, equivalente à Procuradoria-Geral da República, já está a avaliar se tal é possível, adianta o Guardian. Foi ainda lançada uma petição pela National Association for the Advancement of Colored People com o objectivo de reabrir o processo. Conta nesta altura com mais de 350 mil assinaturas.
Jesse Jackson, um dos activistas que mais tem dado a cara neste caso, apelou também à calma em declarações ao canal CNN, apesar de dizer-se “chocado” com a decisão do júri e de esperar que a procuradoria consiga “intervir para levar o caso para outro nível”. “O sistema legal americano falhou uma vez mais a justiça”, lamentou, reiterando que ainda assim é preciso aguardar e evitar “derramar sangue inocente” em nome de Trayvon Martin. Também o activista Al Sharpton, citado pela BBC, disse que a decisão era uma “bofetada” para os norte-americanos e comparou o caso ao de Rodney King, um afro-americano espancado pela polícia em 1991, em Los Angeles. A absolvição dos agentes gerou grandes tumultos.
Além disso, durante o julgamento, os procuradores do Ministério Público da Florida procuraram descrever Zimmerman como o agressor – um aspirante a polícia que decidira fazer justiça por conta própria depois de supor erradamente que Trayvon Martin era um criminoso. “O réu não disparou contra Trayvon Martin porque tinha de fazê-lo. Ele atirou porque quis”, disse um dos procuradores, John Guy, na sexta-feira de manhã, antes de o júri se reunir para deliberar.
Ferida racial reaberta
A morte de Trayvon Martin e a indiferença inicial com que o caso foi tratado pelas autoridades locais – a polícia de Sanford interrogou George Zimmerman e deixou-o ir em liberdade sem acusá-lo – foram denunciadas pela comunidade negra como um exemplo dos problemas raciais que persistem na sociedade americana. O caso tornou-se nacional, levando mesmo o Presidente Barack Obama a dizer que “se tivesse um filho, ele seria igual a Trayvon Martin”.
De acordo com o código penal da Florida, para provar que o réu cometeu homicídio em segundo grau a acusação tem de demonstrar que ele agiu com má-fé, ódio ou malevolência. “Manslaughter”, a outra acusação que o júri considerou, exigia que os procuradores demonstrassem, sem margem para dúvidas, que Zimmerman não agiu em auto-defesa.
Mas o julgamento não conseguiu clarificar quem é que confrontou quem, quem é que gritou por ajuda naquela noite (um apelo que foi registado numa chamada de um residente local para o número de emergência) ou em que circunstâncias é que Zimmerman usou a sua arma. As testemunhas chamadas a depor ofereceram narrativas ou opiniões contraditórias.
Notícia corrigida às 12h16: dizia-se erradamente que Rodney King foi morto pela polícia em 1991 quando na verdade foi espancado.