"Que haja consenso entre o Governo e a Renamo, é isso que nos preocupa"

Mais do que a previsível vitória da Frelimo, o que ressalta das autárquicas em Moçambique é a emergência do MDM. O povo espera agora gestos de paz entre o Governo e a Renamo, a antiga guerrilha, que boicotou a consulta eleitoral. Ambos podem encontrar nos resultados eleitorais motivos para negociar.

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O MDM de Davis Simango mostrou capacidade para atrair elites e "capitalizar" o descontentamento MARIA CELESTE MAC'ARTHUR/AFP

As eleições autárquicas, cuja divulgação de dados provisórios foi interrompida nesta sexta-feira, para que se iniciasse a contagem oficial, sem que houvesse ainda informação completa sobre cerca de uma dezena de municípios, "correram bem graças a Deus", diz Tovela, 33. Desde que se começou a falar de raptos, da ameaça de guerra, do receio de confusão nas eleições, passou a ter dificuldade em encontrar estrangeiros que lhe queiram comprar os batiques, pinturas sobre tecido, que ele próprio faz. "Começaram a desaparecer e isso é preocupante para nós."

Não é que os raptos tenham deixado de preocupar ou saído da ordem do dia – na quinta-feira foram condenados quatro arguidos, a penas entre 13 e 17 anos de cadeia, pelo sequestro de duas pessoas, em 2012; três tinham já sido sentenciados a 15 anos de cadeia. Ainda que nos últimos dias não tenham sido divulgados novos casos, os raptos continuam a ser motivo de conversa. Como motivo de conversa é o receio da guerra, que se adensou nos últimos meses, devido às divergências políticas e a acções de força: ofensivas e contra-ataques protagonizados por forças governamentais e antiga guerrilha.

Passadas as eleições, chegará a hora da paz? O jornal independente Savana escrevia nesta sexta-feira que "agora que o nervosismo eleitoral se encontra ultrapassado, parecem estar criadas as condições para que as delegações do governo e da Renamo se sentem de novo à mesa das negociações, e que desta vez o diálogo seja mais sincero, construtivo e produtivo". Para segunda-feira continua marcado um encontro entre delegações – um dos muitos que se sucederam nos últimos meses, sem resultados. Os contactos feitos pelo PÚBLICO permitiram apenas saber que as partes têm estado em contacto "por carta". Não há garantia de que a reunião se realize, ou que dela saia algo de concreto. Mas as autárquicas parecem ter dado, quer à Frelimo quer à Renamo, motivos para o diálogo.

Os resultados eleitorais, ainda incompletos, confirmaram em larga medida a história política e eleitoral do país: vitórias folgadas da Frelimo no Sul e Norte; dificuldades no Centro, designadamente nas províncias de Sofala e Zambézia. A novidade que sai do escrutínio de quarta-feira, boicotado pela Renamo, chama-se MDM. O partido dirigido por Davis Simango não deverá conseguir mais do que as duas presidências de câmara que já detinha – Beira e Quelimane, onde ocorreram os incidente mais graves das eleições. Na primeira cidade ainda durante a campanha, na segunda já depois da ida às urnas, com consequências fatais: na noite eleitoral, segundo jornalistas locais, morreu um jovem por inalação de gás lacrimogéneo lançado pela polícia; no dia seguinte, um elemento da guarda do governador da Zambézia baleou mortalmente um jovem músico integrado num grupo que festejava a anunciada vitória do MDM.

"Sem a Renamo Frelimo fica mais exposta"

Na primeira vez que se apresentou aos eleitores em todo o país, o partido de Simango, a "terceira via" moçambicana, criada em 2009, conseguiu importantes resultados não apenas em municípios com tradição de oposição como em zonas em que a contestação à Frelimo nunca antes tivera expressão eleitoral significativa. O MDM deverá ficar representado na generalidade das assembleias municipais do país. Os casos mais representativos do seu crescimento são Maputo e a sua cidade-satélite, Matola, importante centro industrial, onde os dados conhecidos lhe dão, em ambos os casos, votações da ordem dos 40%.

A Renamo considera que a forma como as autárquicas decorreram veio dar-lhe "razão". "Os concorrentes estão a queixar-se de várias manobras para desvirtuar a verdade", disse o porta-voz, Fernando Mazanga, que acusa os órgãos eleitorais de parcialidade e a polícia de estar "ao serviço do partido Frelimo". Mas para além da discussão com o partido do Governo, que acusa de partidarização do Estado, a antiga guerrilha, que desaparece do plano autárquico, terá de encarar o fenómeno MDM, que pode ser uma ameaça nas eleições gerais de 2014. Tal como a Frelimo, que viu o novo rival autárquico marcar pontos em importantes centros urbanos, outrora "feudos" seus.

Para o partido de Afonso Dhlakama, desaparecido desde que forças governamentais ocuparam a sua base na zona da Gorongosa, o MDM representa um desafio por ter mostrado capacidade para atrair elites e "capitalizar" o descontentamento muito para além das zonas do centro consideradas "fiéis" à Renamo, onde beneficiou da falta de comparência do que é actualmente o segundo partido parlamentar. Mas, considera Jeremias Langa, da televisão STV, também a Frelimo quererá agora que a antiga guerrilha "faça parte do jogo político, para não permitir que [do lado da oposição] o MDM se apresente sozinho às eleições" porque as autárquicas, por paradoxal que pareça, mostraram que "sem a Renamo a Frelimo fica mais exposta". Se assim for, tudo somado, o voto popular nas autárquicas terá contribuído para aquilo que Tovela e Guidion mais desejam: "Voltar ao clima anterior de paz, porque com paz tudo o resto há-de acontecer."
 

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