Quando os homens-lixo se fizeram ao mar
Em dois ou três dias apenas quase 1300 imigrantes da África subsariana chegaram às praias da Tarifa andaluza. Número inusitado este que largou a costa marroquina para chegar a um “país de sonho” na Europa, que pode ser a Alemanha para uns, França, Holanda ou Portugal para outros.
A Costa da Luz está um inferno. Do Golfo de Cádis ao Estreito de Gibraltar, há filas a passo de caracol em todas as estradas, e multidões nas praias acotovelando-se por um metro de areia barrenta e dura. Se numas estâncias predominam os jovens de calções de ganga e sapatos de lona, outras são a paragem de famílias multigeração. Grupos de idosos tremelicam todas as manhãs pela areia de Puerto de Santa Maria, uma das praias nos arredores de Cádis, famosa pela licenciosa vida nocturna, enquanto em Barbate, a aldeia piscatória que o tráfico de droga pôs no mapa, as crianças ajudam os avós a transportar as cadeiras, guarda-sóis, pára-ventos e todas as traquitanas com que montam junto à água o cenário das suas tardes sem história.
Os menores jogam futebol e os “mayores” lêem, de costas para os barcos em ruínas que, ancorados no rio Barbate, rangem morbidamente ao vento que sopra do Levante, entre o mar e as montanhas. Tudo isto sem turistas estrangeiros, sem resorts de luxo que se vejam. Não estamos propriamente na região mais nobre do turismo espanhol, mas na zona balnear dos remediados da Andaluzia interior e da Estremadura.
Um pandemónio de filas para o banho, filas para o pequeno-almoço, filas para o elevador do hotel, um arraial contínuo com muito poucas excepções. Uma delas é esta, Tarifa. Tudo é diferente aqui, por causa da intensidade do vento.
A situação meteorológica sui generis da vila fortificada, que é o ponto mais meridional da Europa, transformou Tarifa num dos centros mundiais do windsurf e do kitesurf.
Há dezenas de lojas dedicadas aos desportos do vento, cafés e bares ao gosto dos viajantes especiais que vêm de todo o planeta passar umas semanas à capital da ventania. Veículos todo-o-terreno carregados de pranchas e velas, motos big trail touring pejadas de caríssimos acessórios de aventura enchem as vielas estreitas e brancas da cidade mourisca.
Visto de longe, da estrada marginal que serpeja entre as centrais eólicas, ou do morro de vivendas de luxo de Sahara de los Atunes, o mar está pontilhado de velas coloridas, às centenas, revoluteando na espuma. Um enorme veleiro branco paira ao largo da baía, e os bares da praia são uma festa de música, cocktails e moleza. Principalmente o Bien Star, com dois decks de madeira sobre as dunas e jovens de copo na mão enterrados nos pufes. Um belo antro para passar a tarde, ou a vida, de frente para a água transparente e verde e de costas para o grande e velho Pavilhão Polidesportivo Municipal, a escassos metros, do outro lado da rua.
"Não conseguimos atender a todos"
É no pavilhão polidesportivo que estão os “sin-papeles”. Cerca de 800 imigrantes subsarianos, dos quase 1300 que chegaram às praias de Tarifa nos primeiros dias da semana passada, em cerca de uma centena de barcos insufláveis. O fluxo de imigrantes ilegais vindos da África subsariana através de Marrocos é constante desde há duas décadas, mas nunca se tinha registado um desembarque desta dimensão, em tão pouco tempo. As “pateras” (nome que lhes é dado em Espanha baseado no das antigas embarcações de madeira, a remos, usadas pelos pescadores), ou os “zodiac” (como chamam os marroquinos aos semi-rígidos insufláveis, a motor ou a remos) chegaram a diferentes praias da zona de Tarifa e de Algeciras a um ritmo que a Polícia espanhola e a Cruz Vermelha nunca tinham visto. Os meios de salvamento geralmente disponibilizados pelas autoridades, e a coordenação entre a Cruz Vermelha, ONG e organizações da Igreja Católica que recebem os imigrantes, designadamente mulheres e crianças, entrou em completo descontrolo.
“Estamos ligados ao sistema de vigilância da Polícia, para acorrermos rapidamente aos locais onde desembarcam os imigrantes, que quase sempre chegam em hipotermia e com outros problemas de saúde que necessitam de resposta rápida”, diz à Revista 2 Juan Alonso, da Cruz Vermelha espanhola. “Mas desta vez não conseguimos atender a todos. Chegava um ‘zodiac’ num local, e ao mesmo tempo havia quatro ‘toys’ na praia seguinte. Não era possível chegar lá.”
“Toys” são os barcos pequenos, insufláveis, que podem ser comprados em qualquer supermercado de Tânger ou outra cidade marroquina. São frágeis barcos de recreio, concebidos para as crianças se divertirem junto à praia e não têm condições para a travessia do tumultuoso Estreito de Gibraltar. Não obstante, a maioria dos ilegais que chegaram agora usaram estes “brinquedos”, onde a probabilidade de sobrevivência é muito baixa.
Outros vieram de moto aquática, cujo condutor regressa a Marrocos depois de ter deixado o passageiro na água, a umas centenas de metros da praia, apesar de ter pago pelo menos 4 mil euros pela viagem. Também muitos dos que chegam nos “toys” (dez ou 15 em cada embarcação) ou nos “zodiacs” (70 ou 80) terminam a nado a aventura.
Durante os dias de terça e quarta-feira da semana passada, mais de mil “sin-papeles” da África negra misturaram-se com os banhistas e os praticantes de windsurf e kitesurf, como se fossem as suas sombras. Alguns conseguiram confundir-se entre os turistas, outros apanharam boleia de carros de compatriotas imigrantes já instalados, ou de elementos das mafias que os esperavam. A maioria, porém, deixou-se apanhar. Não vêem a polícia espanhola como hostil, ao contrário da marroquina.
Acreditam que o processo que irão atravessar os levará à liberdade e à cidadania europeia. Deixaram-se levar para o pavilhão polidesportivo, submetem-se, com visível espírito de cooperação, a todos os procedimentos burocráticos, que incluem um exame médico e um interrogatório pela polícia. A seguir, serão levados para algum dos centros de internamento de estrangeiros que o Governo espanhol tem instalados aqui em Tarifa ou em Algeciras, Madrid, Barcelona, Valência, Múrcia, Tenerife, Las Palmas, etc. De acordo com a lei, 45 dias depois, ou terão sido deportados, ou ficarão em liberdade. Ser-lhes-á entregue um documento que diz “Estatuto: liberdade, sob proposta de expulsão”. Se são provenientes de um país com o qual Madrid tem acordo de extradição, são recambiados para lá. Para isso é preciso que se determine e prove a proveniência e nacionalidade do “sin-papeles”. Mas é precisamente por isso que eles são “sem-papéis”. Mal saem do seu país, para a travessia de África até à costa marroquina, desfazem-se dos passaportes e outros documentos de identificação.
É verdade que as autoridades espanholas destacaram para os centros de internamento especialistas em línguas africanas capazes de identificar os idiomas e os sotaques. Mas também é verdade que nas florestas marroquinas dos arredores de Tânger ou Ceuta os imigrantes têm os seus próprios especialistas. Em Ben Yunes (perto de Ceuta), Missnana ou Boukhalef (nos arredores de Tânger), há verdadeiras aulas onde se ensina a disfarçar o sotaque ou os rudimentos de línguas de países com os quais Espanha não tem acordos de extradição. Se se determinar que provém de um destes países, ou se não se determinar de todo a sua proveniência, o imigrante é deixado em liberdade, com um documento provisório que em breve o colocará na situação de ilegal, sujeito a toda a espécie de exploração, em Espanha ou noutro país europeu. No caso das mulheres, terão oportunidade de obter um documento de residência, se tiverem filhos menores a cargo. Por esse motivo, muitas atravessam o Estreito nos últimos meses da gravidez, ou com bebés ou crianças pequenas. As próprias mafias as encorajam a proceder assim, de forma a permanecerem na Europa o tempo suficiente para serem exploradas através da prostituição.
"A maioria não evitará a deportação"
Dos quase 1300 imigrantes que chegaram agora a Tarifa, 30 eram crianças. Uma delas chegou mesmo sozinha, sem os pais, que, segundo os relatos de imigrantes que vieram no mesmo barco, não conseguiram embarcar, no meio dos confrontos com a Polícia marroquina. É uma menina, tem 11 meses, chama-se Fátima e rapidamente se tornou na estrela dos media espanhóis, com o consequente alastramento pelo Facebook. Mas não é certo se a “Princesa”, como a baptizaram os socorristas, é realmente querida da família, ou deve a existência a um estratagema sugerido pelas mafias, e será de facto abandonada, depois de entregue aos pais.
Quando chegam, as crianças ficam geralmente à guarda de instituições católicas espanholas, que lhes encontram famílias de adopção. Algumas crianças desaparecem com as mães e nunca mais se sabe delas, admite o padre franciscano Isidoro Macías, conhecido como “Padre Pateras”, porque há décadas se dedica, em Algeciras, a tomar conta dos imigrantes ilegais que chegam de África, principalmente as mulheres grávidas e crianças.
Na Comunidade de S. Pedro, na Paróquia dos Pescadores, de Algeciras, o padre Andres Abelino recolhe também os imigrantes quando são libertados pelas autoridades policiais. Algumas dezenas, desta última vaga, vieram parar ao seu centro de acolhimento, mas ele não está certo de os poder ajudar. “Estes homens e mulheres vão ter muitos problemas. Desta vez, a maioria não evitará a deportação”, diz o padre.
Enquanto estão à sua guarda, os imigrantes não estão submetidos a qualquer vigilância. São livres de partir a qualquer momento — mas não o fazem. Depois de anos a perseguir um objectivo, que é chegar à Europa, experimentam uma estranha e perigosa sensação de confiança. Não querem continuar a fugir. Chegaram ao seu destino, acreditam que as coisas se vão resolver. Na Europa, tudo é diferente, tudo é razoável e justo, pensam eles. E tornam-se dóceis, vulneráveis.
“Quando vimos que os barcos que se dirigiam a nós pertenciam à Polícia Marítima espanhola, e não marroquina, ficámos aliviados. Já não fugimos. Remámos, com as forças que nos restavam, em direcção a eles”, relatou J., um senegalês de 28 anos que está retido no Pavilhão Polidesportivo de Tarifa. “Até agora, foram muito afectuosos comigo. Vou colaborar em todos os procedimentos que eles julgarem necessários até ter os meus papéis e poder começar a trabalhar como mecânico de automóveis, que é a minha especialidade.”
Numa das alas do pavilhão, os imigrantes jogam futebol, em notória euforia. Noutra, grupos conversam, lêem ou dormem, nas mantas vermelhas que lhes foram distribuídas. Nos corredores, entre agentes da Guarda Civil, agentes femininos da Polícia Aduaneira, com máscaras protegendo o nariz e a boca, procedem à primeira fase dos interrogatórios. A segunda decorre já nas esquadras de Algeciras e outras cidades, para onde os imigrantes são transportados em carrinhas celulares.“Éramos muitos na praia, em Tânger. Nós tivemos muita sorte, mas nem todos conseguiram”, contou J., o mecânico senegalês. Toda a gente queria vir. O risco foi enorme. Nós tivemos muita sorte, que apenas devemos a Deus.”
Nunca tantos imigrantes se tinham feito assim ao mar ao mesmo tempo. Sabe-se quantos foram bem-sucedidos, mas não quantos falharam. O tempo esteve ameno naqueles dois dias. Logo a seguir, o vento voltou a fustigar o Estreito. Essa é uma explicação para que uma multidão se tivesse metido em barcos naquela altura. Outra é que a Polícia marroquina foi mais permissiva do que o costume. O próprio Rei Mohamed IV o admitiu, ao quase pedir desculpa pela inexplicável falha nos sistemas de segurança. Poder-se-á pensar que não foi assim tão inexplicável e que Rabat, mostrando os problemas que pode causar com dois dias de “falha na segurança”, quis pressionar a União Europeia na prometida ajuda a gerir a crise dos subsarianos em território marroquino.
Outro motivo para a chegada de tantos imigrantes por mar será o facto de ter sido recentemente reforçada a segurança em Ceuta e Melilla, onde todos os dias muitos africanos tentam galgar a cerca de muros e arame farpado que protege a fronteira.
Mas estas explicações não chegam. As dificuldades em Ceuta não são de agora e dificilmente os imigrantes teriam sido informados das manigâncias diplomáticas do Rei de Marrocos. A pergunta permanece sem uma resposta satisfatória — por que razão chegaram em dois dias mais de mil africanos a Tarifa?
Casa e comida na grande lixeira de Boukhalef
Em Tânger, quando eles entram no autocarro, as mulheres tapam o nariz. As crianças choram, fogem e escondem-se com medo. Para os marroquinos, “les noirs” são os demónios que vieram do Sul do deserto para lhes causar problemas. É isto que corre de boca em boca, de pais para filhos, com o encorajamento das autoridades.
O ódio é tão grande, que já não é possível sequer pedir esmola. Só mulheres se atrevem a fazê-lo na medina de Tânger, de preferência se têm bebés. Se se perguntar a uma delas onde estão os negros, responde imediatamente: Boukhalef. É nesse bairro residencial dos arredores, perto do aeroporto de Ibn Batuta, entre uma floresta e a praia, que vivem milhares de subsarianos à espera de uma oportunidade para atravessar o Estreito.
Nos últimos cinco anos, foram-se mudando da floresta de Missnana, junto à aldeia com o mesmo nome, para Boukhalef, onde se julgaram menos vulneráveis aos ataques da Polícia e dos grupos de marroquinos que pretendem fazer “justiça” pelas próprias mãos. Há dez anos, havia cerca de 5 mil subsarianos em Missnana. Hoje, alguns ficaram, mas a maioria transferiu-se para as ruas de Boukhalef, onde vão também parar os que chegam de novo.
É um bairro enorme, de prédios brancos de cinco ou seis andares, relativamente pobre. Mal se chega, percebe-se que a maioria da população não é marroquina, mas negra, embora quase nenhum dos subsarianos habite os apartamentos.
“Eles estão ali, porque têm muito dinheiro”, diz Abdul, um marroquino de 45 anos. “As rendas custam o dobro das do centro da cidade. Os negros têm muito dinheiro.”
Segundo Jonathan, um camaronês que vive em Boukhalef, os subsarianos que ocupam apartamentos partilham-no com outros dez ou 20. “E estão sempre a ser assaltados por grupos de marroquinos armados, que os querem expulsar. Na semana passada, houve um ataque naquele edifício. Eles tinham armas brancas, feriram alguns dos homens e violaram as mulheres. Foi preciso fugir para a floresta. Não voltaram mais ao apartamento. Lá é mais perigoso.”
Jonathan e um amigo estão numa esquina de Boukhalef, conversando e olhando em redor, disfarçadamente. Na realidade foram para ali para vigiar a entrada da rua que leva ao local onde dormem, juntamente com alguns milhares de imigrantes provenientes dos Camarões, Senegal, Nigéria, Congo, Mali, Burkina Faso, Gana, Gâmbia, Guiné Conacri, Costa do Marfim.
“Temos de estar atentos 24 horas por dia. Dantes, os ataques ocorriam apenas à noite, mas agora é a qualquer momento. Vêm em plena luz do dia, com machetes. Nós costumávamos chamar a Polícia, mas não adianta. A Polícia não vem. Quando vem, fica a observar, sem fazer nada, enquanto eles esfaqueiam, violam, destroem as nossas coisas. Hoje em dia, a única coisa que podemos fazer é fugir.”
Esse é um dos motivos por que este bairro foi escolhido: fica perto de uma floresta, onde se pode encontrar refúgio. “Nos arbustos”, diz Jonathan. “Não há semana em que não tenhamos de nos esconder nos arbustos.”
Jonathan e o amigo caminham por uma rua estreita, sob os olhares claramente hostis dos marroquinos, atravessam um descampado, um gradeamento por trás do qual há uma bomba de água, até chegarem à grande lixeira do bairro.
O monte de detritos estende-se a perder de vista, brilha de gordura e podridão ao inclemente sol da tarde, tresanda e repugna de morte. Para o imenso grupo de imigrantes, é fonte de vida. É ali, junto à lixeira, que dormem e montaram as suas “casas”.
Aproveitam o que os marroquinos rejeitaram, restos de comida, vasilhas, roupa, plásticos, mantas. Alimentam-se e sobrevivem do lixo dos que os odeiam. “Para eles, nós somos lixo”, comenta Jonathan. “Por isso acham normal que vivamos aqui.”
Vivem aqui alguns milhares de imigrantes, entre os quais mulheres, crianças com poucos anos. A mais nova tem três meses. Todos atravessaram a África, por vários meios, durante meses, e estão aqui dois ou três anos, em média. Os mais antigos chegaram a Tânger em 2006, fizeram muitas tentativas no Estreito, outras nas grades de Ceuta, sofreram outras tantas deportações, tentaram de novo, e ainda aqui estão.
As suas “casas” consistem em cobertores rotos e imundos, pequenos montes de roupa esfarrapada, garrafões de plástico vazios. “Veja, já não temos água”, diz Sangare, que é líder da comunidade da Costa do Marfim. A zona está organizada por grupos nacionais, cada um com um chefe, que geralmente é o mais velho. Sangare, que tem 34 anos e vive aqui desde 2011, explica que, até há duas semanas, tinham acesso à bomba de água dos prédios, por compaixão de alguns dos marroquinos do bairro. “Agora fecharam aqueles portões à chave. Não temos mais acesso à água, vamos morrer de sede. Neste momento, as condições aqui são de miséria e desespero.”
"Já não aguentamos mais"
Nenhum dos imigrantes que aqui chegaram alguma vez trabalhou em Marrocos. “Não há empregos para nós. Dantes, pedíamos esmola, agora ninguém dá nada. Insultam-nos e agridem-nos”, diz outro imigrante, no grupo que entretanto se juntou para apresentar as suas queixas ao repórter.
“Eles atacam-nos quase todos os dias, com facas e machetes”, conta outro. “Nunca podemos estar sossegados num sítio, andamos sempre a fugir”, diz outro. “Um dia, vamos reunir um grupo, conseguir armas e atacar uma rua de marroquinos, destruir tudo, matar todos”, é o projecto de outro. “A Polícia também vem cá com regularidade”, diz um guineense. “Agridem-nos, enchem as carrinhas e levam centenas de pessoas para Oujda, na fronteira com a Argélia.”
Segundo os depoimentos recolhidos, nunca aqui veio nenhuma organização humanitária, nenhum médico, nenhum representante da ONU ou de qualquer ONG. Apenas a Polícia e os grupos de “justiceiros”, que cada vez têm mais rédea solta.
A pressão sempre existiu, mas agora tornou-se insuportável. “Não temos água, nem comida, nem segurança. Somos obrigados a tentar a travessia, mesmo com todos os riscos”, explica Sangare. “Eu já tentei sete vezes, nunca consegui. Mas tenho esperança, com a ajuda de Deus.”
No meio da lixeira, os imigrantes construíram uma pequena clareira com lajes no chão: “É a nossa mesquita.” Sangare conta que os imigrantes professam diferentes religiões, mas rezam em conjunto antes de tentarem a travessia. “Fazemo-lo muitas vezes. Já não contamos com os marroquinos donos dos ‘zodiacs’. Quando conseguimos juntar 100 ou 200 euros, compramos um barco insuflável no supermercado. Reunimos um grupo, variado, que inclua alguém que saiba nadar, alguém com força para remar, mulheres e crianças quando possível, e fazemo-nos ao mar. Quase sempre é um fracasso.”
Mesmo na semana passada, foi um fracasso para muitos. Uma quantidade inusitada de imigrantes resolveu tentar ao mesmo tempo. Estava bom tempo, talvez alguém tenha recebido a informação de que a Polícia seria mais permissiva do que o costume. Não se sabe. O certo é que uma multidão se fez ao mar. “Muitos morreram. Pelo menos 40 corpos deram à costa aqui”, diz um imigrante. Outro aproxima-se, rosto magro, amassado de sofrimento, para perguntar: “Gostaria de saber se tem a informação dos nomes dos que morreram antes de chegar.” Afasta-se sem a resposta e sem uma palavra.
“Foi uma confusão enorme, muitos barcos, muita gente, confrontos com a Polícia, no mar e em terra”, conta Jonathan. “Agora há vento outra vez, mas, mal acalme, muitos tentarão de novo.”
Sangare, o líder da comunidade da Costa do Marfim em Boukhalef, explica a razão para isto: “Já não aguentamos mais. A situação aqui chegou ao limite. Podemos morrer ao tentar, mas aqui vamos morrer também.” Muitos estão a regressar aos seus países, mas mesmo esses acabam por voltar aqui. “Nos Camarões eu nunca terei uma oportunidade. Não é por o país ser pobre. É porque só os filhos das famílias privilegiadas têm acesso aos empregos. Eu não pertenço a esse grupo. Por isso tentarei sempre chegar à Europa. Sei que lá as coisas também não estão fáceis, mas pelo menos terei uma oportunidade.”
Cada um dos imigrantes tem, na Europa, “um país de sonho”. Para um é a Alemanha, outro a França, outro a Holanda. Um diz que para ele é Portugal, não se sabe se num sonho antigo ou muito recente. Um jovem magro, de óculos Ray-Ban, que diz ter 14 anos e ser oriundo do Senegal, declara: “O meu sonho é o Mónaco.”
Na costa de Algeciras o vento não amaina, o que é óptimo para o kitesurf. Ao fim da tarde o bar Bien Star está cheio e animado, exactamente como o pavilhão polidesportivo mesmo em frente. Havia euforia de ambos os lados da praia, mas nem com uma tão grande afinidade de estados de espírito a beautiful people de Tarifa perdeu tempo a visitar o pavilhão. Ninguém foi sequer dar uma espreitadela. Era tão imperturbável o seu êxtase face àquele mar verde e selvagem e as montanhas magníficas, como o dos “sin-papeles” finalmente chegados ao cenário perfeito da sua grande aventura.