Entre uma lei polémica e um Presidente ausente, a Ucrânia afunda-se
Manifestantes recusam-se a abandonar as ruas e os edifícios, prometendo dificultar a aplicação da lei da amnistia.
Depois da queda do Governo, no início da semana, a retirada de cena de Ianukovitch vem agudizar o vácuo de poder no país e deixa várias questões sem resposta. A primeira está desde logo relacionada com a lei da amnistia aprovada na quarta-feira pelo Parlamento. Para que os manifestantes presos durante os protestos dos últimos dois meses sejam libertados, os edifícios governamentais ocupados terão de ser abandonados e as barricadas no centro de Kiev desmontadas em 15 dias.
A oposição já condenou a condição imposta pelo diploma, que teve a aprovação apenas das bancadas do Partido das Regiões e do Partido Comunista. Vitali Klitschko, líder do Udar, comparou a decisão a uma "lei dos piratas da Somália, em que as pessoas são feitas reféns e depois são libertadas em troca de alguma coisa". O deputado do partido Batkivshchina (Pátria) Andrei Parubi afirmou que "as condições impostas são inaceitáveis e ninguém as vai cumprir".
Se as declarações da oposição não são suficientes, o ambiente nas ruas de Kiev desfaz qualquer dúvida. O aparato montado pelos manifestantes – tanto na Praça da Independência como nas ruas circundantes – não sofreu qualquer alteração no sentido de uma desmobilização. Apesar de um grupo de activistas ter sido retirado do Ministério da Agricultura, vários edifícios governamentais da capital continuam ocupados pelos manifestantes.
São três os edifícios dominados pelos manifestantes no centro de Kiev. A desocupação dos edifícios camarários e da rua Hrushevski só acontecerá se três reivindicações forem cumpridas, segundo Iuri Lutsenko, um dos líderes dos protestos, em declarações à rádio Free Europe: a aprovação de uma nova lei da amnistia; uma revisão constitucional que reponha o texto de 2004; e a formação de um Governo interino ou da oposição. O fim das barricadas na rua Kreshchatik e a desocupação da Casa dos Sindicatos da Ucrânia estão dependentes da marcação de eleições presidenciais antecipadas.
Perante a persistência, parece improvável que a lei venha a ser cumprida. Segundo um esclarecimento à AFP prestado pelo adjunto do chefe da administração presidencial, Andrei Portnov, "se as disposições que figuram no texto não forem cumpridas, este perderá automaticamente a sua força de lei". Ao cenário de Kiev acresce ainda a situação noutras regiões do país, especialmente na parte ocidental, onde várias sedes do governo regional foram tomadas pelos manifestantes.
Desde a semana passada que os protestos se espalharam por todo o país, com milhares de manifestantes a ocuparem com sucesso as sedes do governo em regiões como Lviv, Ternopil, Rivnenska, Khmelnitski, Ivano-Frankivsk e Volinska, entre outras. Nestas regiões, onde os sentimentos anti-Ianukovitch são elevados, houve pouca resistência policial e estabeleceram-se conselhos populares. Alguns chegaram mesmo a ilegalizar as actividades e os símbolos do Partido das Regiões e do Partido Comunista. Mas também no Leste (região com grandes comunidades de etnia russa) foram tomadas as sedes dos governos de Poltava e Chernivtsi.
Se as condições previstas pela amnistia terão grandes dificuldades em ser cumpridas em Kiev, nas regiões mais ocidentais prevêem-se ainda maiores entraves. Apesar disso, o edifício do governo regional de Lviv – uma das cidades em que os manifestantes exercem maior controlo – foi desocupado nesta quinta-feira, segundo a agência Interfax-Ucrânia.
A lei da amnistia não reuniu consensos, nem mesmo no seio do Partido das Regiões de Ianukovitch. Ao fim da noite, quando o debate ainda era intenso, o Presidente deslocou-se ao Parlamento, algo fora de comum, de acordo com a maioria dos observadores. "A palavra do Presidente é, foi e será decisiva para nós." As palavras de uma das deputadas do partido do poder, Anna German, citada pela Time, são demonstrativas da acção que a sua presença teve para que o diploma fosse aprovado.
Durante a tarde desta quinta-feira, os três líderes da oposição assinaram um comunicado em que acusam Ianukovitch de ter chantageado a própria bancada parlamentar para que aprovasse a lei polémica.
O anúncio de que Ianukovitch vai ausentar-se das suas funções, em virtude de uma baixa médica, veio agravar ainda mais a tensão no país. Por um lado, a nomeação de um novo Governo – que tem de acontecer dentro de 60 dias – fica suspensa; e, por outro, desconhece-se se o Presidente promulgou a lei da amnistia.
Quando já era conhecida a sua ausência nos próximos tempos, Ianukovitch ainda se dirigiu ao país para desferir críticas à oposição. Depois de afirmar que fez tudo para que a crise fosse ultrapassada, o Presidente acusou a oposição de "agravar a situação, apelando às pessoas para continuarem ao frio por causa das ambições políticas de alguns líderes".