Pascal Lamy: A Europa tem de ir buscar o crescimento lá fora

Pascal Lamy diz que os europeus não se devem contentar com uma previsão de crescimento de 1,5% na próxima década. Têm à sua disposição uma gigantesca nova classe média que nasceu da globalização, desde que consigam ser competitivos.

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Pascal Lamy DANIEL ROCHA

Veio fazer uma conferência a Lisboa, na Gulbenkian, cujo tema toca numa das questões fundamentais da União: como preparar uma estratégia europeia para a globalização. A crise não o tornou mais pessimista. E não hesita um minuto a explicar os enormes problemas do seu país, a França, e as repercussões que têm na Europa. O PÚBLICO entrevistou-o na terça-feira.

Mantém nas suas intervenções públicas uma preocupação muito grande com as mudanças enormes que a globalização trouxe à economia. Veio a Lisboa falar de uma estratégia europeia para a globalização. Está a decorrer uma cimeira dos BRICS no Brasil, que quer lançar uma espécie de “Banco Mundial”. Como vê esta iniciativa?
Creio que é mais simbólica do que outra coisa. Em primeiro lugar, porque os BRICS são um grupo muito heterógeno. Aliás, é paradoxal que a sua existência se deva a um homem do marketing do Goldman Sachs. Por outro lado, em matéria de desenvolvimento, não creio que haja uma grande necessidade de financiamento público, que não seja já garantido pelo Banco Mundial, mas também pelos bancos de desenvolvimento regionais, que têm ganho uma grande importância nos últimos tempos: o Banco Interamericano, o banco asiático para o desenvolvimento e outros. Além disso, a grande maioria dos países em desenvolvimento têm acesso ao mercado de obrigações em muito boas condições. Trata-se, pois, de um jogo mais simbólico do que real.

Mas é um sinal político.
É a vontade de dar um sinal não apenas aos países desenvolvidos mas também aos países em desenvolvimento. É um sinal geopolítico, mas não creio que seja de natureza geoeconómica.

Mas têm em comum a ideia de dizer às potências ocidentais: nós temos direito a uma representação mais equitativa nas instituições mundiais.
E é justo. Já houve algumas decisões no Banco Mundial e no FMI que vão nesse sentido, embora as alterações ao FMI ainda não tenham sido ratificadas pelo Congresso americano. Mas, como disse, há enormes contradições neste grupo de países. Que é, ele próprio, bastante parcial na medida em que exclui países como o México, Turquia, Indonésia, igualmente emergentes com economias fortes.

Quando diz que a globalização mudou radicalmente a economia mundial, aponta dois factores: metade da riqueza mundial já é produzida fora do mundo ocidental; e está a emergir uma nova classe média por toda a parte. A Europa tem alguma dificuldade em entender esta realidade?
Depende dos países. Há alguns que navegam tranquilamente na globalização: os nórdicos, a Alemanha, o Reino Unido, a Holanda e mesmo a Bélgica. E há outros que têm mais problemas, sobretudo os países do Sul, como a Espanha, Itália, Grécia e França.

Mas há elementos económicos comuns. Se olharmos para as previsões de crescimento a dez anos, a Europa cresce 1,5 por cento, os EUA 2,5 a 3 por cento, os países emergentes 6 por cento. Isto quer dizer que o motor do crescimento nos próximos 10 anos não está na Europa. Mas se a Europa quer estimular o crescimento e reduzir o desemprego, então tem de ir buscá-lo onde ele está. O aumento da procura que vai ser dirigido à economia europeia nos próximos anos virá de fora. E isso implica uma estratégia de acesso aos mercados e de melhoria da competitividade, porque não somos os únicos a ir à procura desse crescimento junto dos milhões e milhões de pessoas que entraram na classe média e que significam um aumento potencial enorme do consumo.

E há também um aspecto mais político. O lado bom da globalização foi a redução da pobreza como nunca antes tinha acontecido, retirando milhões de pessoas da pobreza e reduzindo as desigualdades. Isso levanta questões sociais novas em relação às quais a Europa tem uma carta a jogar para civilizar essa globalização. Essa identidade europeia, que assenta na economia social de mercado e em sistemas de solidariedade muito significativos, é mais clara aos olhos dos não-europeus. Se queremos manter, como é o meu caso, este modelo menos tolerante às desigualdades, então é preciso preservá-lo e oferecê-lo como uma esperança para os outros.

Melhorar a competitividade é muito mais difícil porque já não somos os únicos donos do jogo.  
É mais difícil sim, mas com esta formidável reserva de crescimento que está disponível e que não estava nessa altura, também pode ser possível.

Nos países em maiores dificuldades, temos a ideia de que a Europa que vai emergir desta crise será muito diferente da que conhecíamos. Como será esta Europa?
Não partilho da sua opinião. Em primeiro lugar, porque penso que as dificuldades da integração europeia são anteriores à crise, mesmo que a crise as tenha acentuado. O desafecto da opinião pública em relação à Europa já existia antes. A dificuldade em construir este espaço político europeu já estava lá, porque é um desafio muito ambicioso, com a sobreposição de um sistema europeu aos sistemas políticos nacionais. As dificuldades de alguns países também começaram antes da crise. Por exemplo, os défices das finanças públicas francesas ou a dificuldade que a Alemanha teve em financiar a unificação não datam de ontem. Penso que é sobretudo uma mutação lenta, que não resultará de um big-bang. É verdade que a crise revelou as fraquezas da construção europeia e, sobretudo, da maquinaria do euro que foi preciso reparar. E consequentemente isso ainda afastou mais as opiniões públicas… 

Vimos isso nas eleições europeias.
Bom, não podemos interpretá-las como a confirmação de um distanciamento das opiniões públicas. 65% dos europeus que votaram fizeram-no em partidos pró-europeus, mesmo que se tenha verificado ao mesmo tempo um avanço dos movimentos populistas antieuropeus. O que acho que pesa mais nas expectativas dos europeus é o facto de a Europa estar condenada a manter um crescimento fraco durante um certo tempo, o tempo de gerir o endividamento acumulado antes da crise e que a crise amplificou. Isso quer dizer que a prioridade das prioridades nos próximos cinco anos é tentar encontrar um crescimento maior do que esses 1,5 por cento que nos são prometidos. Mas isso implica um grande esforço. Porque temos também uma condição demográfica que é negativa, sobretudo em relação ao resto do mundo, numa altura em que as opiniões públicas são bastante hostis à imigração. Temos hoje os custos da energia acentuados pelo facto de os Estados Unidos terem aproveitado o gás de xisto.

Falamos de crescimento quase desde o início da crise, mas até agora o que tivemos foi e continua a ser a receita alemã da austeridade.
Não sou dos que criticam sistematicamente a austeridade. Os países acumularam dívida e é preciso reduzi-la, porque se, um dia, as taxas de juro vieram a subir isso terá um efeito extremamente negativo sobre o crescimento. Estamos num período de juros extremamente baixos. Mas, ao mesmo tempo, é preciso tomar medidas estruturais, a maior parte delas a nível nacional, nomeadamente em tudo o que diz respeito ao sistema de educação, de formação, de qualificação. Há coisas a fazer ao nível europeu em matéria de infra-estruturas e aí há recursos financeiros que a Europa pode mobilizar. É preciso fazer a reforma do Mercado Interno, nomeadamente no sector dos serviços. Quando comparamos a produtividade da economia europeia com a americana, a grande diferença não está na indústria, está nos serviços. Não é fácil politicamente, mas creio que há aí uma reserva de crescimento importante. É preciso investir colectivamente em coisas como a economia digital, uma política energética um pouco mais coordenada do que a que temos actualmente, completamente fragmentada. Há imensas coisas a melhorar.

Mas o que vemos é que a Comissão que devia ser o motor dessa agenda se encontra muito enfraquecida.
É verdade. Isso depende das instituições mas também dos homens e mulheres. É uma questão de instituições porque é preciso que os outros – a Câmara dos Estados e a Câmara dos Povos – deixem espaço necessário à Comissão para agir. Sobretudo o Conselho Europeu, que sempre interpretei como o Senado dos Estados-membros, e não como o executivo da União.

Mas hoje é o que ele é.
Houve uma certa inclinação para esse lado mas isso também resultou da necessidade de inventar novos instrumentos para gerir a crise, que foram criados de maneira intergovernamental porque há uma enorme inércia para reformar os tratados. Mas há também as pessoas. É muito difícil, e isso ficou provado nos mandatos de Barroso, gerir uma comissão com 28 comissários e vinte e oito pastas. É preciso restruturar a Comissão e há muitas ideias para conseguir retomar o controlo político das iniciativas e da sua execução.

Defende também que é preciso ir mais longe na integração política e económica europeia.
Sim. Podemos manter este modelo europeu com as suas especificidades, se o fizermos em conjunto. Não é a Alemanha que, dentro de algumas décadas, poderá contrabalançar a influência chinesa, indiana, indonésia ou americana. É esta a justificação.

E a opinião pública está preparada para aceitar isso?
A opinião pública começou a esquecer, o que é normal, as razões pelas quais enveredámos por este empreendimento depois da Guerra. Agora, é preciso que os europeus olhem para o resto do mundo tal como é, para poderem perceber a sua sorte. Há muita gente na Europa que vive com grande dificuldade, porque está no desemprego e as prestações sociais estão a ser reduzidas. Mas, comparando com o resto do mundo, o sistema europeu continua a ser um sistema de solidariedade muito mais forte do que qualquer outro. Merkel tem razão quando diz que a Europa corresponde a 5 por cento da população, 20 por cento da riqueza e 50 por cento das ajudas sociais.

Esta crise veio pôr em causa o equilíbrio entre a França e a Alemanha, e isso é algo de novo na Europa. Este desequilíbrio deu à Alemanha um poder de uma dimensão que é difícil de aceitar pelos outros.
É verdade. A construção europeia é uma construção não-hegemónica e é essa a sua particularidade histórica: é a primeira vez que se tenta construir um império não hegemónico. Mas o desequilíbrio entre a França e a Alemanha não é culpa da Alemanha. Resulta da performance económica e social da França, que se degradou há já algumas décadas. Seja nas finanças públicas, no desemprego e na competitividade da economia. Não podemos pôr isto às costas da Alemanha.

O seu último livro chama-se Quando a França Regressar. O que se passa com ela?
Foi a questão que eu me coloquei. É um mistério. A França é um país parecido com muitos outros. E, no entanto, se olharmos para o que se passou nos últimos 40 anos, não conseguiu ultrapassar as suas principais dificuldades, de resto análogas à de outros países. Porquê? Por que é que a França não fez o mesmo que o Canadá, a Alemanha, Portugal, Itália, Austrália?…

Porque é a França…
O que há de específico é justamente este olhar com que ela olha para o resto do mundo. Sente-se ameaçada pelo mundo e pelas suas transformações e mantém uma tendência profunda para atribuir as suas dificuldades aos outros, o que é, na minha opinião, uma atitude improdutiva. Foi por isso que escrevi este livro, para tentar compreender o problema e explicar aos meus concidadãos que a globalização tem dois lados: um bom e outro mau. Mas que não há nenhuma razão para diabolizá-la sistematicamente. E explicar que a Europa não é o instrumento de transmissão do vírus da globalização. E que a França tem imensos trunfos para uma mudança. Se o estado de espírito público consiste em atribuir aos outros os nossos problemas, é muito difícil aceitar que é preciso fazer reformas.

Olha para a vitória de Marine Le Pen nas europeias como uma ameaça ou como uma situação conjuntural?
Não estamos numa situação que represente um combate entre a democracia e o fascismo. O sentido do voto foi mudando pouco a pouco, como o que se passa, por exemplo, na Suíça. E a verdade é que eles conseguem captar um descontentamento que existe. Mas não creio que se deva diabolizar Marine Le Pen. Foi por isso que aceitei um debate com ela sobre o euro. É preciso levá-la a sério e desmontar os seus argumentos. A realidade política é que as forças dominantes na Europa são os partidos de centro-direita e de centro-esquerda. Vinte e cinco por cento dos jovens votaram no centro-direita e outros 25 no centro-esquerda. É muito. Vemos, por exemplo, como Matteo Renzi conseguiu encontrar uma narrativa que anulou Berlusconi. A França manteve sempre uma franja extremista à direita e outra à esquerda desde a Revolução Francesa…

Por causa da Revolução Francesa….
Por causa da Revolução Francesa. Ainda hoje há gente que acha que não cortámos as cabeças suficientes, e outra que acha que cortámos demasiadas cabeças. Também é preciso levar em conta as instituições políticas que são muito diferentes, com um Presidente cujos poderes não têm paralelo na Europa e uma Constituição que foi feita para dividir e para impedir as coligações. O centro foi completamento esvaziado. É um dos problemas da França. Os regimes parlamentares são mais propícios a coligações e a compromissos. Mas infelizmente isso não irá mudar.

O PSF, com as suas divisões, vai impedir o Presidente de levar a cabo uma agenda reformista?
Isso depende muito do Presidente. Se este sistema constitucional tem muitos inconvenientes, tem uma grande vantagem: garante a estabilidade. Se o Presidente quer ir numa direcção vai mesmo. Creio que, desde que foi eleito, foi na boa direcção em algumas coisas, mas ainda não suficientemente depressa e com a força necessária.

Insiste muito em que são necessárias regras para governar a economia mundial. O G20 lá vai funcionando. Mas as negociações de Doha falharam.
Por agora…

Hoje, a Europa e os Estados Unidos lançaram uma grande negociação transatlântica de natureza bilateral. Como olha para essa parceria?
Em primeiro lugar, sempre houve níveis de negociação multilaterais, bilaterais e regionais, que coexistiram e convergiram. O Mercado Único não fechou a Europa. Quando os EUA fizeram o NAFTA também não. Além disso, quando se começa uma negociação ninguém sabe se vai até ao fim. A questão é de saber se vamos abrir os mercados para benefício de todos ou não. E esta é uma questão que continua em aberto porque, como já disse várias vezes, a natureza dos obstáculos ao comércio mudou. Hoje, já não são medidas destinadas a proteger o produtor como foi durante muito tempo. Agora, as medidas são para proteger o consumidor. Não é a protecção, é a precaução. Esta mudança está em vias de acontecer e a questão é saber se estamos em condições de gerir a precaução de uma forma multilateral.

Mas estamos a falar de um mercado de 800 milhões de habitantes que são os mais ricos do mundo. Podemos imaginar que seria uma boa coisa para as duas economias.
A ideia de abrir as trocas é boa. A questão é ser capaz de ultrapassar as diferenças na administração da precaução.

As diferenças são culturais.
Há uma parte que é cultural e outra não é. A cultura é a questão da administração do risco e por isso é uma questão de valores. Mas os dois negociadores devem explicar em que é que esta negociação é diferente das precedentes. Foi um erro deixar que se pensasse que era como as outras. A questão está em saber qual será a reacção dos outros países.

Os americanos estão a fazer outro acordo de livre comércio no Pacífico.
Mas esse é clássico. O TTIP não. É a ultima das negociações clássicas, enquanto o TTIP é a primeira das negociações novas.

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