Para onde vai a política externa brasileira?
No âmbito da série especial do Ano Grande do Brasil, o PÚBLICO pediu a analistas brasileiros que respondam, dentro das suas áreas, à pergunta: Para onde vai o Brasil?
O Brasil é ou não “ocidental”? A pergunta em si não parece particularmente útil, pois pressupõe a existência de dois campos antagônicos no plano internacional. Seja a resposta “sim” ou “não", essa visão representa ums simplificação grotesca da ordem internacional atual: um contexto fluido, marcado por alto grau de incerteza.
Sugiro, portanto, uma resposta que reflete a ambiguidade valiosa do Brasil como ator internacional: o Brasil é, e ao mesmo tempo não é, ocidental. O diferencial do Brasil no cenário internacional sempre foi o de interligar diversos campos. A política externa brasileira colheu suas safras mais ricas justamente quando soube traduzir em resultados concretos o princípio do universalismo – a ideia de que a diversificação dos laços, quando transcende ideologias e agrupamentos, confere à diplomacia brasileira uma agilidade única. Embora não seja panaceia, o universalismo permite que o Brasil beneficie da enorme diversidade de arranjos e alinhamentos que se constituem no pós-Guerra Fria.
Ao longo da última década, o discurso da política externa brasileira afirmou resgatar o viés universalista de eras passadas. A intensificação de laços econômicos, políticos, e sócio-culturais com outros países em desenvolvimento – a chamada cooperação Sul-Sul – permitiu a retomada ou o adensamento das relações com parceiros latino-americanos, africanos, e asiáticos. Quando a crise financeira global eclodiu em 2008, essa opção tornou-se uma verdadeira necessidade, na medida em que a cooperação Sul-Sul ajudava o Brasil a contornar algumas das dificuldades criadas pela escassez de capital e de comércio com os países desenvolvidos.
Ao mesmo tempo, o alinhamento do Brasil com outras ditas “potências emergentes” serviu para amplificar as reivindicações históricas que o Brasil já compartilhava com outros países em desenvolvimento em relação às estruturas anacrônicas e injustas da governança global. De certa forma, a conjuntura apresentava uma série de oportunidades inéditas para que o Brasil, em colaboração com outras potências emergentes, pressionasse as organizações tradicionais por processos decisórios que refletissem a atual distribuição de poder, já não tão densamente concentrada nos Estados Unidos e na Europa.
Em certais questões-chave, tais como o pleito histórico do Brasil por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a política externa brasileira – embora tivesse extraído palavras de apoio à reforma da maioria dos membros do P-5 – se deparou com os interesses fundamentalmente conservadores que a China e a Rússia compartilham em relação à possibilidade de ampliação do organismo. As resistências se mantiveram, a falta de consenso sobre a receita da reforma persistiu, e a janela de oportunidade – que parecera tão promissora para a diplomacia brasileira – fica agora, no máximo, entreaberta.
Em outras áreas, a cooperação Sul-Sul começa a render frutos. Dentre as alianças informais que surgiram nessa época, o BRICS tornou-se o mais visível, assim como o mais controverso, das iniciativas interregionais. Embora o agrupamento seja tratado pela mídia, sobretudo aquela baseada nos países avançados, como uma espécie de quimera, a agenda do BRICS se expandiu e diversificou. Iniciativas concretas, tais como o banco de desenvolvimento do BRICS, servirão não apenas para suprir capital em áreas negligenciadas pela assistência tradicional – infraestrutura e políticas industriais – mas também para dar novo fôlego ao apelo por reforma da arquitetura global. No caso do banco, se sair do papel, as instituições de Bretton Woods serão submetidas a novas pressões para avançar as reformas que até agora não se concretizaram por resistência dos países avançados.
Ao mesmo tempo, um banco de desenvolvimento controlado exclusivamente por potências emergentes pode servir como plataforma para formulação de normas da cooperação Sul-Sul. Tal esforço permitiria aos países BRICS não apenas reforçar a contestação aos esforços da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) de “harmonizar” a assistência ao desenvolvimento de acordo com as práticas e preferências dos doadores tradicionais, mas também propor um novo arcabouço normativo.
Na área da segurança internacional, o Brasil vem se alinhando com outros BRICS no Conselho de Segurança da ONU em questões de intervenção militar, questionando propostas de intervenção na Líbia e na Síria. Em relação à crise na Ucrânia, o Brasil – assim como a China – inicialmente manteve uma postura neutra, para logo em seguida se juntar aos demais BRICS, condenando as sanções impostas contra a Rússia após a anexação da Criméia.
Em essas como em outras áreas, a política externa do Brasil vem, mesmo que de forma tácita, se definindo cada vez mais como “não-ocidental,” embora o rótulo não reflita de forma adequada a história do país, nem a sua composição sócio-cultural. Ao tomar partido e se contrapor a um “ocidente,” a política externa enfraquece a sua própria identidade universalista, passando então a reforçar a percepção de uma divisão Norte-Sul que nem sempre convem aos interesses brasileiros. Se outrora essa política pecou pelo alinhamento excessivo com o “Norte,” ela agora corre o risco de repetir o erro, só que restringindo os seus alinhamentos a um fictício Sul global.
A trajetória da política externa brasileira nos próximos anos vai depender não apenas das mudanças (altamente imprevisíveis, como demonstra a Ucrânia) da conjuntura, mas também da capacidade que o próximo governo terá de preservar os ganhos da cooperação sul-sul, sem aderir a uma visão reducionista da ordem internacional. Para onde vai o Brasil? Ele vai rumo a o que (acha que) é.
Professora do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)