Papa Francisco abriu portas que “dificilmente se voltarão a fechar”
As propostas de acolhimento dos gays e do acesso à comunhão por parte de divorciados e recasados não foram aprovadas pelos bispos. Por outro lado, um dos mais ferozes críticos da abertura preconizada pelo Papa, o cardeal Raymond Burke, acaba de ser afastado do Supremo Tribunal Canónico. É a continuação das tensões no interior da Igreja
No documento final votado este sábado, o relatio synodi, apenas três pontos não conseguiram os dois terços dos votos (123) necessários para serem aprovados. A questão é que eram precisamente os pontos que mais directamente aludiam à questão do acesso à comunhão por parte dos divorciados e recasados e ao acolhimento dos casais homossexuais.
O parágrafo em que se defendia a possibilidade de os divorciados e recasados acederem à comunhão depois de percorrido “um caminho penitencial” registou 104 votos a favor e 74 contra. Apesar de uma maioria de votos a favor, não reuniu os dois terços necessários à aprovação e por isso foi rejeitado. O mesmo aconteceu com a proposta de acolhimento dos homossexuais “com respeito e delicadeza”: 118 votos a favor e 62 contra. Apesar de estes pontos terem sido removidos da versão final, o Papa decidiu que a versão integral do documento deveria ser publicada. No discurso que proferiu após a votação, Francisco disse que teria ficado “preocupado e triste” se as questões lançadas sobre a mesa não tivessem sido discutidas abertamente e tivessem ficado reféns de “um acordo taciturno e de uma falsa paz”.
Tal esteve longe de acontecer. Depois da divulgação do relatório inicial, que reconhecia que os homossexuais têm “dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã”, o sector mais conservador da Igreja Católica (em que se incluem pesos-pesados como o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, mas também o cardeal norte-americano Raymond Leo Burke) apressou-se a criticar o teor do documento, negando que este espelhasse o teor das discussões havidas entre os bispos na primeira semana de trabalhos. Houve troca de acusações e farpas dirigidas ao Papa, de uma forma até agora inédita na Igreja Católica.
Curiosamente, confirmou-se no sábado a notícia de que Raymond Leo Burke foi afastado da presidência do Supremo Tribunal Católico, o que foi lido como um sinal de que o Papa está a escolher “ministros” mais predispostos à mudança na doutrina oficial da Igreja. Seja como for, o relatório que foi votado este sábado será apenas uma base para os trabalhos que se prolongarão pelos próximos 12 meses, até os bispos se voltarem a reunir, na assembleia ordinária marcada para de 4 a 25 de Outubro de 2015. E a palavra final caberá sempre ao Papa Francisco, do qual se espera a publicação de uma exortação pós-sinodal em princípios de 2016. Mas, independentemente das mudanças que vierem ou não a ser determinadas na forma como a Igreja acolhe divorciados, recasados e homossexuais, o Papa Francisco “abriu portas que vai ser muito difícil voltar a fechar”, segundo a teóloga Teresa Toldy.
Mudanças já começaram
Dizendo não esperar “milagres saídos deste sínodo”, Toldy considera que as mudanças já começaram. Desde logo pelo tom do documento que procurava sintetizar a primeira semana de discussões e “que não se limitava a repetir perspectivas dogmáticas mas que manifestava a existência de várias tendências”. “O facto de termos ouvido um cardeal tão importante como o de Viena a dizer que ele próprio é filho de divorciados é um indício de que se começa a poder ouvir vozes que estavam caladas há mais de trinta anos”, aponta Toldy.
As próprias divergências que marcaram uma semana de conferências de imprensa a partir do Vaticano (houve mesmo quem, como o cardeal guineense Robert Sarah, dissesse que o sínodo foi tomado por uma “nova ideologia do mal”) trouxeram para a praça pública “um pluralismo” que Teresa Toldy qualifica como muito saudável e um indício de que o Papa Francisco saiu vitorioso do braço-de-ferro com os sectores mais conservadores da Igreja. “Há pessoas que se revêem nas tendências de João Paulo II ou Bento XVI e para quem o reconhecimento da existência de várias tendências é um drama e um embaraço, mas este Papa tem o pluralismo como uma coisa saudável”.
Quanto aos passos seguintes, a incógnita é maior. “A perspectiva pastoral é muito importante mas, se não houver agora um mínimo de regulamentação desta abertura, pode acontecer que conferências episcopais que são muito reacionárias travem isto”. Neste quadro, em que “haverá já no Vaticano quem tenha a esperança de que este Papa não chegue a 2016”, Francisco enfrenta meses de difícil equilibrismo. “Ele está na posição difícil de puxar para a frente mas de não querer simultaneamente provocar rupturas. Não por uma questão de cobardia, mas porque a misericórdia que ele defende aplica-se a todos, isto é, ele não quererá fechar portas a uns por causa de as querer abrir a outros”, antevê a teóloga. Para quem uma coisa é certa: “Se essas portas se voltarem a fechar, a Igreja Católica será responsável pelo abandono de pessoas que hoje em dia se revêm com alguma esperança nesta possibilidade de respirar que o Papa trouxe”.
Acabou-se o “tempo das toupeiras”
Vários analistas internacionais equipararam este Sínodo a um “tremor de terra” dentro da Igreja Católica. “A vinda deste Papa tem sido um terramoto desde o início”, concorda Joaquim Carreira das Neves. Ele sabe do que fala. Com 80 anos, já viu passar seis Papas pela hierarquia da Igreja. “E nunca vi uma revolução como a que este Papa está a fazer”, diz. Identificando três diferentes correntes no Sínodo (a dos que não querem abertura aos homossexuais e à comunhão de recasados, a dos que querem uma abertura a meio-termo e a dos que a querem a termo inteiro), o teólogo antecipa uma vitória da corrente que defende a mudança. “E o Papa está nesta linha mais avançada, mais liberta do vírus do passado”, situa.
Quanto às mudanças concretas, Joaquim Carreira das Neves considera ser mais do que tempo de a Igreja deixar de estar refém do dogma da indissolubilidade do casamento. “A frase que nos tem complicado a vida é aquela em que Jesus diz ‘Aquilo que Deus uniu, o homem não pode separar’. Mas esta frase tem que ser redita e posta no seu contexto que é aquele em que Jesus estava a dizer aos fariseus que entre homem e mulher há dignidade igual, não podendo assim o homem repudiar a mulher. O erro da Igreja foi ter feito daquele axioma final um dogma. E tudo isto tem de ser repensado à luz do sentir moderno”.
Celibatário, Joaquim Carreira das Neves assume que gostaria de ter sido pai. E assume também que, na sua prática, “estudados os casos e ponderadas as circunstâncias”, tem dado a comunhão a pessoas recasadas. De resto, entre os seus amigos contam-se vários homossexuais. “Pessoalmente, custa-me a linguagem clássica do casamento aplicada aos homossexuais ou às lésbicas, mas eu sou um produto da minha cultura, o que não me impede de ver que há uma dignidade no amor entre pessoas do mesmo sexo”, assume, para, em síntese, concordar com Teresa Toldy: “Acabou-se o tempo das toupeiras, em que andava tudo muito tapado”.
Mudança sim, “mas não a preço de outlet”
Num registo mais contido, e também mais cifrado, o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Manuel Barbosa, prefere sublinhar que “acolhimento não significa aprovação, mas que há todo um caminho penitencial que tem de ser feito para um acolhimento pleno”. A “atitude de abertura”, avisa o porta-voz da CEP, “não poderá ser a baixo preço”, assim como se a Igreja se tivesse transformado “numa espécie de outlet”. Dito de outro modo, “há que esperar porque o discernimento ainda não está todo feito”.
Já para o dominicano frei Bento Domingues, que diz sentir vontade de rir sempre que lhe vão falar da doutrina da Igreja e da sua imutabilidade, o que este Sínodo demonstrou foi que a mudança essencial já foi feita. “Este Papa não quer ser como João Paulo II, que actuava, muito secundado pelo cardeal Ratzinger que depois também foi Papa, no sentido de tornar as proibições irreversíveis e a doutrina irreformável. Pelo contrário, Francisco diz que todas as coisas estão em discussão e que todas as coisas podem ser revistas”, sublinha. “Em relação à família, havia muita coisa encalhada: na ética familiar, na ética sexual, nos métodos anticonceptivos. E o que este Papa fez foi acabar com a ideia de que nisto não se toca, que é irreformável. Ele descongelou estes tópicos”. E, só com isto, Francisco granjeou outra vitória. “Conseguiu chegar ao grande grupo de cristão católicos que não eram praticantes, porque reconheciam-se em Jesus Cristo mas não se reconheciam nas práticas da Igreja. Foi um passo de gigante este de dizer ‘esta gente toda está em movimento e também é Igreja e a Igreja também se pode ir modificando porque a Igreja é acolhimento’”.
Em sintonia, o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges considera que a mediatização deste Sínodo responde ao interesse do mundo por estas questões. E é para ele evidente que a enunciação dos princípios da misericórdia e da não exclusão significa que “os divorciados mais tarde ou mais cedo vão poder aceder à comunhão”. Ao mesmo tempo irão ser dados passos no sentido da “valorização dos casamentos civis e das uniões estáveis, mesmo que não sejam pela Igreja”. De resto, e para reforçar esta tese, Anselmo Borges recua centenas de anos para lembrar que “o núcleo da mensagem de Jesus não incidiu sobre a família”. “A primeira vez que no casamento é obrigatória a presença de um padre é no século IX e isso por motivos fundamentalmente civis. E só no século XII é que se pôs o problema da sacramentalidade do casamento”. Traduzindo, “isto quer dizer que há aqui muito mais margem para a compreensão da situação contemporânea do que muitos imaginam”. Considerando que a imagem da sagrada família composta por Jesus, Maria e José está longe de constituir a ajuda de que precisam as famílias modernas, Anselmo também vaticina que "os homossexuais poderão não ver reconhecido o casamento pela Igreja mas não serão excluídos, até em atenção às crianças que vivem em casais homossexuais”.