Onde está a crise humanitária na Grécia?
O Syriza quer medidas de alívio da crise humanitária. Enquanto decorrem negociações com o Eurogrupo em que o partido promete que não sobrecarregará os cofres do Estado, é no modo como está a vida dos gregos que se joga o seu apoio interno.
Uma mãe e um filho morreram ao cair de um quinto andar na semana passada. A mãe, de 63 anos e doente com Alzheimer, e o filho, de 27, não tinham qualquer rendimento depois de deixarem de receber uma pequena pensão de deficiência. Há três anos e meio que não conseguiam pagar a renda da casa. O senhorio sabia dos problemas da família e ajudava, tinham também um pequeno apoio de um fundo de ajuda do município de Chakida, na ilha de Eboia, onde viviam.
A morte foi tratada como mais um suicídio de pessoas que desistiram de viver por não conseguirem o mínimo. O blogue Keep Talking Greece, feito para divulgar a realidade da Grécia por quem lá vive, dava alguns pormenores. O blogger que escreveu a notícia conta que ficou tão sensibilizado que interrompeu um silêncio: há alguns meses tinha decidido não escrever mais sobre suicídios. “A dada altura deixei de escrever sobre eles. Não aguentava”, conta o blogger, que nunca se quer identificar, numa troca de mensagens pelo Twitter. Até este caso. “Tive de escrever. Fez-me trabalhar até à meia-noite. Ainda fico com pele de galinha ao pensar nisto.”
“Procurando pelos casos antigos fiquei chocado com o número e os meus próprios artigos que já esqueci”, diz. “Os suicídios aumentaram em cerca de 43% quando comparado com os anos antes da crise”, sublinha.
Esta é uma das faces mais visíveis da crise. Outras estão mais escondidas, em pessoas que parecem fazer a sua vida normal, encontrando-se nos cafés de Atenas, ouvindo música, fumando e rindo. Mas nestes grupos animados raras vezes não há alguém atingido pela crise.
Fillo Louvari, 40 anos, está num café-cooperativa (que surgiram como alternativa para muitos desempregados) perto de um parque arqueológico do norte de Atenas, com amigos, em conversa animada por um bem-disposto ouzo. Olhando para eles, não se diria que apenas um tem emprego.
E não é Fillo. Ela, que viveu Paris e em Lisboa, dançando em várias companhias, voltou para Atenas justamente quando rebentou a crise. Actriz e bailarina, não conseguiu encontrar trabalho, e voltou para casa da mãe. Aos 38 anos. É aqui que sua aparente boa disposição se desmorona, começa a torcer as mãos, baixa os olhos. “É um pouco humilhante… voltares para casa da tua mãe aos 40 anos. Perderes a tua independência, que sempre prezaste... Não conseguires tratar de ti, não ganhares dinheiro para sobreviver sozinha”.
Está longe de ser a única. De vários casos que encontrámos em Atenas, um exemplo: Katerina, 62 anos, à espera da reforma (pediu há dois anos, parou de trabalhar, e ainda não recebeu nada), vive com a mãe de 81 e a filha de 37, professora desempregada. A reforma da mãe de Katerina é que mantém toda a família.
Cuidados de saúde
Os números mostram uma situação sem paralelo na zona euro: 35,7% dos gregos está em risco de pobreza. A taxa de desemprego é de 25,8% (e chega a cerca de 50% entre os jovens). O desemprego acarreta vários problemas: o primeiro é que o subsídio de desemprego dura apenas um ano, o segundo é que passado pouco tempo acaba a cobertura de saúde e o acesso a cuidados nos estabelecimentos públicos. Muitos jovens que nunca tiveram emprego também nunca tiveram acesso a cuidados de saúde.
Há médicos a ver cancros como nunca tinham visto: estes não são removidos e os tumores crescem até não ser possível fazer nada. Não são considerados os casos urgentes para os quais há tratamento para quem não tem seguro. Mesmo nestes, o responsável pelas contas do hospital irá rapidamente tentar perguntar ao doente ou à família se não há algo que possa ser vendido ou penhorado para pagar a conta.
Os cortes na saúde afectam os mais velhos e os mais novos: há doenças que estavam erradicadas a voltar a aparecer porque muitas crianças não são vacinadas.
A Grécia é o país dos paradoxos. Na tentativa de conseguir dinheiro onde quer que ele possa aparecer, surgem taxas e impostos. Um exemplo: os hospitais cobram uma taxa de parto. Depois de histórias de grávidas a correr de hospital em hospital tentando encontrar um em que não tivessem de pagar antes do parto, surgem relatos de exigência do pagamento dos cerca de 300 euros antes que seja dada alta ao bebé. Mas ao mesmo tempo, muitas mães abandonam os recém-nascidos nos hospitais por não terem como os sustentar (o aumento de recém-nascidos abandonados de 2011 a 2014 foi de 300%).
Instituições como as Aldeias SOS começaram a receber pedidos para ficarem com crianças de pais que não sentiam conseguir dar-lhes o suficiente. Aceitaram os primeiros, mas rapidamente perceberam que não podiam receber todos e criaram antes apoios para que estas crianças pudessem ficar com as famílias.
O país vive muito de várias iniciativas sociais de organizações como as Aldeias SOS que já existiam e alargam a sua acção, ou de pessoas que se juntam para ajudar. Muitos desempregados acabaram a desenvolver projectos destes, como Constantinos Polychronopoulos, que depois de perder o emprego criou a organização “o outro humano” que faz comida para quem não tem. Em 2011 conseguiam distribuir pelas ruas 50 a 60 refeições por dia, agora são 450.
A Igreja também tem tido um papel importante na distribuição de comida e comités de vizinhos identificam casos problemáticos e dão apoio – muitas pessoas são demasiado orgulhosas para pedir ajuda, ou não sabem como fazê-lo. Há pequenas acções menos organizadas: em muitos bairros vêem-se sacos de plástico pendurados nos contentores do lixo com pão ou comida para quem anda à procura.
Às escuras
Estas ajudas são dadas num quadro mais organizado ou informal, mas legal. Depois, há ajuda ilegal, mas tolerada, como a que permite restabelecer electricidade cortada. Muitos casos são consequência de contas especialmente altas depois de o Estado, ao não conseguir mais receita de outro modo, impor uma taxa nas contas da luz, que leva muitas pessoas a não conseguirem pagar. Mas apesar da ajuda – muitas organizações vão restabelecer a electricidade a casas, há tutorais no YouTube a mostrar como qualquer pessoa com equipamento básico o pode fazer – há muita gente a viver às escuras: mais de 300 mil casas não têm energia eléctrica.
Uma família contou, numa reportagem da revista Vice, como tem o filho na escola em aulas nocturnas para que ele possa estudar de dia e não tenha de o fazer à luz de velas. Em casa, todos estão vestidos com sobretudos porque não há aquecimento (o Inverno é rigoroso na Grécia, especialmente na parte continental). A insulina do pai diabético é arrefecida na varanda no Inverno. No Verão, logo se vê.
As primeiras medidas que o Governo grego liderado pelo Syriza apresentou ao Parlamento após as eleições são justamente as que se destinam a aliviar a crise humanitária: restaurar a electricidade em casas que não tenham até ao final de 2015, senhas de alimentação para cerca de 300 mil pessoas e ainda uma ajuda à renda para quem não possa pagar a casa. Tudo dando prioridade a desempregados de longa duração e famílias com crianças.
O blogger do Keep Talking Greece sublinha que a aprovação destas leis irá ter um grande efeito psicológico, mesmo que as medidas não sejam suficientes para atacar toda a magnitude do problema social. “Por exemplo, no caso do duplo suicídio, a família até tinha algum apoio de organizações e do senhorio. Mas quando se é uma pessoa decente, a crise económica acaba, acima de tudo, com a dignidade.”