Ocupa, Brasil

1. Milhares de adolescentes entre os 15 e os 18 anos conseguiram esta semana que o governador do estado de São Paulo suspendesse o seu plano de fechar quase cem escolas e transferir 300 mil alunos. Não são os filhos da elite que estudam nos melhores colégios, mas uma nova geração de alunos de escolas públicas, que já nasceu online e criou, por exemplo, plataformas de luta no Facebook com 150 mil seguidores. Alvos de gás lacrimogéneo, maltratados e em alguns casos detidos pela polícia militar, estes secundaristas mantiveram-se firmes na ocupação organizada das suas escolas, apoiados por professores, funcionários, cozinheiros ou músicos, não hesitando em parar o trânsito da maior cidade da América Latina com alunos sentados em cadeiras escolares no meio do asfalto. Geraldo Alckmin, o governador que já cometera o erro de reprimir as primeiras manifestações de 2013, multiplicando a revolta nas ruas do Brasil para uma dimensão nunca vista em 20 anos, repetiu assim o erro de partir para a guerra, agora contra menores de idade que usam palavras de ordem tão ameaçadoras como #NãoFechemMinhaEscola. Antes do anúncio da suspensação, guerra foi a palavra usada por representantes do Governo em gravações que acabaram por ser divulgadas.

2. Ou seja: 1) o maior desastre ecológico do Brasil chega ao mar, na forma de uma lama que matou tudo para trás, depois de rebentar uma barragem da grande mineradora do país, porque ninguém vigia a sobreprodução de minério, nem sabe se mais barragens podem rebentar 2) Eduardo Cunha, o presidente da Câmara de Deputados, a ser investigado por desvio de fundos e contas secretas na Suíça, resolve avançar com um impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff, a ver se impede a cassação do seu próprio mandato. Enquanto isso, adolescentes de classe média/baixa lideram a mais precoce lição de política que os políticos brasileiros já receberam. Depois de as mulheres tomarem as ruas e as redes nos últimos meses, esta é a geração de meninos e meninas que cresceu com os governos Lula, coincidindo com a emergência de milhões de brasileiros.

3. Pois eu não volto pra cozinha, nem o negro pra senzala, nem o gay pro armário, o choro é livre, e nós também, cantou Pitty, uma das artistas que actuaram nas escolas ocupadas nos dias 6 e 7 de Dezembro, a seguir ao recuo de Alckmin. “Eles querem guerra, nós queremos arte, música, respeito e educação”, dizia o manifesto dessa Virada Ocupação. Os locais dos concertos só foram divulgados no próprio dia “para evitar a presença e a repressão da polícia”. Entre famosos e alternativos, a virada contou com Criolo, Arnaldo Antunes, Emicida, Maria Gadú, Chico César, Tulipa Ruiz, Metá Metá, Karina Buhr ou Lucas Santana, espalhados por diferentes escolas. E para a quarta-feira em que fecho esta crónica, o Comando das Escolas Ocupadas convocou uma concentração no vão do MASP, o Museu de Arte de São Paulo, em plena Avenida Paulista, “contra qualquer mecanismo do governo que precarize mais a educação pública”, chamando “a sociedade e os trabalhadores a mostrar sua solidariedade e agregar força ao movimento por uma educação de qualidade, contra os cortes do governo e o autoritarismo do Estado”.

4. Foi com a popularidade já a pique que Alckmin anunciou dia 4 a suspensão do plano de “reorganizar” o ensino público, que implicaria o fecho de 92 escolas, e o seu secretário da Educação demitiu-se. Os estudantes festejaram, mas anunciaram que prosseguiam a luta, “seja ocupando as escolas ou as ruas”. Sim, o plano sofrera “uma grande derrota”, mas tratava-se apenas de um adiamento. “Exigimos que seja permanentemente cancelado e que o governador Geraldo Alckmin faça um pronunciamento claro e concreto através de uma audiência pública amplamente convocada. Exigimos punição aos policiais que agrediram ou ameaçaram os estudantes e o fim de todos os processos contra alunos, funcionários, professores ou apoiadores, e que não sejam perseguidos ou criminalizados pela direção ou qualquer meio de repressão.”

Foto
Odyr Bernardi

5. Antes de recuar, a estratégia do governador foi desqualificar a ocupação, insinuando que os estudantes estavam a ser radicalizados de fora, instrumentalizados politicamente. E era bem uma estratégia de guerra. Um dos detidos, Elissantro Dias Nazaré da Siqueira, de 18 anos, disse ter sido pendurado de cabeça para baixo pela polícia militar. Um professor, citado pelo El País/Brasil, confirmou a versão do estudante. “Ele foi levado pendurado por quatro policiais de cabeça para baixo. O rosto dele estava bem vermelho por conta do sangue que estava descendo. Tentei impedir que fosse levado daquela forma e um policial me ameaçou com cassetete.” Reportagens nos media conservadores falaram de confrontos entre a polícia e os estudantes. No El País/Brasil a colunista Marina Rossi questionou esta linguagem: “É possível que um estudante de 15 anos, de bermuda, chinelo e mochila, enfrente um policial, com colete à prova de tiros, um cassetete na mão e uma arma de fogo na cintura? Que tipo de enfrentamento é esse? Quando dezenas de polícias devidamente paramentados partem para cima de alunos menores de idade com a truculência que tem a Polícia Militar, isso não é confronto, mas repressão. Sejamos coerentes: a polícia reprime manifestantes. E não entra em confronto com eles. A não ser que estejamos falando de manifestantes que sejam bandidos de alta periculosidade capazes de enfrentarem a polícia. Estudantes só conseguem, no máximo, correr dela. Isso quando as tiras das havaianas não soltam no meio do caminho.”

6. Entretanto, quando a polícia invadia as escolas ocupadas ou dispersava os estudantes nas ruas, o que os adolescentes mais repetiam era: NÃO TEM ARREGO! NÃO TEM ARREGO! Ou seja, não haverá desistência.

7. Na rica tradição brasileira de quadrinhos, um dos desenhos da semana fixa o momento em que a Globo pergunta a uma estudante por quanto tempo os estudantes vão manter a invasão, e ela corrige, dizendo, não é invasão, é ocupação. A esse extremo se chegou de os estudantes terem de explicar que o seu lugar é na escola, quem a invade é a polícia, a mando do governador.

8. E foi por causa dos muitos desenhos que o quadrinista, ilustrador e pintor Odyr Bernardi fez lá no interior do Rio Grande do Sul, impressionado pela determinação destes adolescentes, que adiei escrever sobre a desolação na Tunísia, onde exactamente há cinco anos começou a Primavera Árabe. Se houve um mundo em que os cronistas tinham falta de assunto, agora os desmoronamentos sobram. Ainda bem que estudantes de 15 anos contrariam isso, dando a tantos adultos uma noção do direito ao presente. Como dizia aquele estudante negro numa das escolas ocupadas de São Paulo, já que sempre se diz que os jovens são o futuro do Brasil, então eles serão o presente do Brasil. Eis uma razão para desenhar, para escrever: NÃO TEM ARREGO.

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Odyr Bernardi
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