O teutónico teimoso
É o homem que nunca chegou a chanceler da Alemanha por ser culpado directo de um dos maiores escândalos políticos da Europa: recebeu, para a CDU de Helmut Kohl, mais de 100 mil marcos ilegais oferecidos por um amigo traficante de armas. Para esquecer a fraude na tesouraria, Wolfgang Schäuble armou-se em tesoureiro da Europa.
Schäuble foi, desde 2005, o ministro das Finanças do Governo Merkel I, voltou a sê-lo no Governo Merkel II e no actual Governo Merkel III. Espera-se a sua participação no Governo Merkel, a Saga Continua, e na receada sequela Governo Merkel, os Dias do Armagedão, Parte I. Está por decidir se vão ser filmes de “acção” ou de “inacção”, isto é, se Schäuble se transforma em herói austero ou prefere continuar o vilão da austeridade.
Os alemães gostam dele. Redescobriu uma boa e clássica forma de vida (os outros países que paguem a crise, a culpa é sempre deles). E surgiu na Terra num período central da História. O século XX e a curiosa ideia germânica do “saiam da frente que isto é tudo nosso”. Não correu bem: Wolfgang Schäuble, nascido a 18 de Setembro de 1942, em Friburgo, foi concebido pelos pais durante o Inverno de 1941, quando as tropas nazis começavam a congelar na Batalha de Moscovo. Nasceu, nove meses depois, quando os ventos de guerra já estavam a dar volta. Foi pois uma criancinha que cresceu numa Alemanha devastada, esburacada e cheia de culpa. Aqueles joelhos sujos nos calções rotos, a magreza, os olhos tristes, etc. Mas quando, nos anos 50, a dívida alemã pelas reparações de guerra era quase toda perdoada pelos países que os nazis invadiram e sugaram financeiramente, como... deixem-nos lá pensar sem novidade... a Grécia, onde estava Schäuble? Não viu nada nem podia ver: começava a entrar na adolescência e os adolescentes são uns estroinas que só pensam em cerveja e sexo, em corridas de caricas e em levantar as saias às meninas, os adolescentes ligam pouco a perdões de dívida dos outros, só pensam em safar-se das suas.
Em 1999, na campanha das eleições no estado federal de Baden-Württemberg, um doente mental atacou-o a tiro. Apenas três meses depois, voltava ao trabalho, em cadeira-de-rodas, ganhando respeito pela sua coragem e sentindo o carinho por esta nova figura rooseveltiana. Faz parte do seu charme negocial, embora a cadeira-de-rodas seja a única coisa que o aproxima do Presidente americano do New Deal. Roosevelt soube curar uma recessão planetária com inteligência e largos programas de investimento público. Schäuble — nas suas fantasias de merceeiro misturadas com favores à banca — apostou em criar uma depressão europeia e talvez mundial, uma crise humanitária, desemprego e deflação na UE, desde que a austeridade continue a enriquecer a Alemanha e os seus aliados do Norte, que têm acesso a juros ridículos. A sua filosofia financeira é que a estabilidade financeira deve ter total prioridade, mesmo quando a estabilidade financeira destrói a estabilidade social, política e económica da Europa, qualquer coisa assim. Vítor Gaspar e Vítor Bento (os dois Vítores economistas arrependidos dos disparates ultra-austeritários) é que podem explicar isto bem. Aliás, o Bento já explicou esta semana no jornal online O Observador. Onde é que está o Gaspar? Ah, no FMI, ‘tá boa, então fica para depois.
Mas paradoxos da História há muitos. Por exemplo: às vezes parece que, 50 anos depois da morte de Churchill, os mais empenhados defensores de Winston, os que gritam Churchill para aqui e Churchill para ali, os que mais cantam as virtudes de Churchill para acolá, lá no fundo gostam é dos alemães...
Foi há 25 anos que Schäuble viveu os dias mais empolgantes da sua carreira, quando conduziu com êxito as negociações para a reunificação da Alemanha Federal com a Alemanha Democrática. Caiu o muro, caiu a Cortina de Ferro. Dez anos depois, caiu-lhe um tijolo na cabeça. Descobriu-se que, em 1994, recebera ilegalmente, para os cofres da CDU, mais de 100 mil marcos do seu amigo e negociante de armas Karlheinz Schreiber. Começou por dizer que não conhecia o amigo, até ter de o admitir. Se um dia fosse à Comissão Parlamentar do BES, ia ser um espectáculo de falta de memória à altura de Ricardo Salgado.
Mas pagou-as: além de nunca ter sido chanceler, a embrulhada impediu-o de chegar a Presidente da Alemanha, o mais alto cargo honorífico no país (Merkel votou contra ele, a senhora lá sabe). É o contrário do sobrancelhudo português que chegou a Presidente de uma nação periférica do Sul, para quem
— Muitos milhões estão a ser tirados dos bolsos dos portugueses para a Grécia!
esquecendo os muitos mais milhões que os portugueses viram derretidos no BPN e na SLN, que distribuía prémios fantasistas aos amigos futuros presidentes. Assim, Schäuble nunca terá, imagina-se, uma casa gira na KanichenStrand (tradução livre: Praia da Coelha).
Um dos momentos mais mediáticos de Schäuble, em termos internacionais, foi quando o futuro preso 44 de Évora lhe chamou “filho da mãe” ou “sacana”, porque o alemão colocara nos jornais notícias contra Portugal antes do resgate da troika. Também nunca fez empréstimos porreiros de amigo: ele quer saber quando recebe, cêntimo a cêntimo.
Resumindo, a Europa do euro está viva e recomenda-se, antes de morrer. Mas um dia tudo morre, até o Sol.