O médico Abbas morreu numa prisão na Síria quando a família preparava o seu regresso a Londres

Quando a mãe finalmente o encontrou, Abbas pesava 32 quilos e não podia andar. Passou 13 meses preso em Damasco.

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Fatima e um dos filhos em Beirute, depois da chegada do corpo de Abbas, que a Cruz Vermelha tirou de Damasco Hasan Shaaban/Reuters

Nas contas da Amnistia Internacional, mais de mil detidos já morreram nas prisões sírias desde o início da revolta, em Março de 2011. Algumas organizações estimam em 30 mil o número de desaparecidos nas prisões nestes quase três anos. Quase todos são sírios. Abbas era britânico e muçulmano. A mãe nasceu na Índia e chegou a Londres com 18 anos. Os sete filhos que teve nasceram e cresceram britânicos. “Ele era um preso político, apenas porque era britânico. Se eles [o Governo] tivessem pressionado um pouco, ele teria regressado a casa vivo – disso eu não tenho dúvidas”, diz Shah, um dos irmãos, citado por Emine Saner, jornalista do Guardian que visitou a família há dias.

Os Khan lutaram muito para libertar Abbas. Pediram ajuda a toda a gente, do líder do partido de extrema-direita BNP, Nick Griffin, que a certa altura foi convidado por Assad a visitar Damasco, ao deputado do partido socialista Respect George Galloway, que chegou a ter bilhete marcado para ir buscar Abbas à capital síria. O Governo britânico não os ajudou, dizem, por preconceito. Um muçulmano britânico na Síria não podia ser coisa boa. Agora que Abbas morreu, o primeiro-ministro, David Cameron, escreveu a Fatima, a mãe, descrevendo a morte do jovem médico como “uma tragédia chocante e repugnante” pela qual “o regime deve responder”.

Fatima, de 57 anos, é a heroína desta história. Fechadas todas as portas a que tentaram bater, Fatima e uma das filhas, Sara, de 24 anos, voaram para Beirute. Quatro meses depois, chegou o visto para Fatima, mas Sara nunca conseguiu autorização para entrar na Síria. E então, Fatima, que nunca tinha estado no estrangeiro sozinha, foi para Damasco. “Implorámos-lhe para não ir. Tentámos evitar comportamentos emocionais, permanecer racionais, e ela só dizia: ‘Eu vou’”, conta Shah. “Ela tem sido a força motora, mas a forma como foi tratada em Damasco… Foi humilhada a cada passo.”

Quando Fatima soube que finalmente veria o filho, telefonou a Shah. “Parecia uma criança na sua alegria.” Depois de o ver voltou a ligar a Shah, em lágrimas: “Eu não vi o meu filho, vi um esqueleto.” Abbas estava há meses em Far’ Falastin, um centro de detenção nos arredores de Damasco conhecido pelos maus tratos aos detidos. Pesava 32 quilos e mal se punha de pé, mas tentou disfarçar as marcas de cigarros nas pernas. “Não te preocupes, não é nada”, disse-lhe.

Fatima pensava que ficaria um mês na capital síria. Chegou com duas mudas de roupa e as malas cheias dos biscoitos preferidos do filho, hospedou-se num hotel e foi à luta. Foi maltratada por polícias e por juízes, pediu ajuda às embaixadas da Rússia e da República Checa, fez amigos entre os polícias, os juízes e os guardas prisionais. Acabou por descobrir o filho, depois pôde visitá-lo e a seguir conseguiu que fosse transferido para uma prisão onde o podia ver com mais frequência e podia fazer chegar-lhe papel para escrever à família, cartas que ela depois digitalizava e mandava por email.

Viver e morrer feliz
Afinal, Fatima ficou seis meses. E acreditou que só voltaria com o filho. Afinal, regressou a Beirute já depois de o saber morto, sem conseguir ir à morgue identificar o corpo, e lá esperou pelo que resta dele. O corpo chegou domingo a Londres e estava prevista uma autópsia para esta segunda-feira.

A família não tem dúvidas de que Abbas foi morto. O regime diz que foi encontrado na sua cela enforcado com o pijama. “Ele estava feliz”, diz Shah. “Na carta que ele escreveu a 8 de Dezembro dizia que tinha esperança de estar em casa a tempo do Natal. Houve uma mudança na cabeça dele, passou de tentar sobreviver para começar a planear uma vida de volta aqui com a sua família. Por isso é que o suicídio não faz sentido nenhum.”

A jornalista do Guardian perguntou a Shah como era Abbas. “Toda a minha vida quis seguir o exemplo dele. Fui para a mesma universidade, tornei-me cirurgião ortopédico. Tenho menos dois anos e meio, e ele sempre foi o meu herói e a minha inspiração”, conta. Abbas e Shah partilhavam várias paixões e a Fórmula 1 era uma delas. Shah recorda uma conversa quando Ayrton Senna morreu. “Ele disse-me: ‘É isso que queres ter na vida, Shah, algo que possas morrer a fazer e morrer feliz.”

Tratar civis
Abbas deixou Londres para ir tratar refugiados no Sul da Turquia e preparar kits médicos e um guia para ajudar civis a tratarem das feridas uns dos outros. Deveria ter ficado duas semanas. Decidiu ir até Alepo e ali esteve, dois dias, num hospital. Depois, foi detido num checkpoint. Oficialmente, foi acusado de ter entrado no país sem visto, mas Abbas contou à mãe que a acusação era ter “tratado civis que estavam a morrer, o que foi considerado um acto de terrorismo”.

O veterano especialista em Médio Oriente Robert Fisk escreve no jornal Independent que Assad queria mesmo libertar Abbas, “num gesto de boa vontade com os ocidentais”. Fisk acredita que o britânico foi morto às ordens de alguém, dentro do regime, que “queria destruir as hipóteses dessa reconciliação”.

Abbas era casado e tinha dois filhos. Trabalhava no Hospital Ortopédico Royal National e foi para a Turquia com a organização não-governamental Human Aid UK. Os filhos já sabem que o pai morreu e o Natal vai ser em família, tios, tias, primos, avó, todos menos Abbas. “É como se alguém nos tivesse pregado uma partida, chegámos tão perto, depois de passarmos por tanto”, diz Sara, a irmã. “O nosso mundo desabou. Tínhamo-nos mantido fortes porque sabíamos que ele vinha para casa.”

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