O jogo perigoso da Turquia e os riscos para a NATO
As potências europeias, sozinhas, são largamente incapazes em termos político-militares. Impõe-se não deixar arrastar a NATO para as ambições neo-otomanas de Erdogan, que nada têm de defensivo.
1. A guerra na Síria está a tornar-se num terreno extremamente perigoso. Há múltiplos confrontos em simultâneo a intensificarem-se. O do governo de Bashar Al-Assad contra os seus inúmeros opositores armados. O dos curdos contra o Daesh (Estado Islâmico). O do Islão sunita contra o Islão xiita. As fracturas étnico-religiosas internas da Síria são instrumentalizadas por poderes externos. O Irão, o Hezbollah e a Rússia apoiam Assad e os alauítas — o grupo minoritário próximo do Islão xiita que mais suporta o regime de Assad. A Turquia, a Arábia Saudita, o Qatar e outros Estados do golfo, empenharam-se em derrubar Assad, através dos inúmeros grupos sunitas. Até agora têm contado com um apoio político e militar (limitado) dos EUA. Alimentam a rebelião armada contra Assad. Nesta luta fratricida parece valer tudo, incluindo a benevolência (mal) disfarçada, da Turquia e da Arábia Saudita, para com grupos como o Daesh e a Frente Al-Nusra, próxima da Al-Qaeda. A estratégia é que estes grupos islamistas-jihadistas façam uma guerra por procuração, executando o trabalho sujo no terreno, especialmente contra Assad e os curdos. Mas há o risco de uma confrontação maior. Potências herdeiras de grandes impérios do passado — e que se vêm, a si próprias, novamente em ascensão —, chocam hoje frontalmente na Síria: a Rússia e a Turquia. O problema é que a NATO e a Europa poderão ser arrastadas para esse conflito, não só pelas ambições czaristas da Rússia de Putin, como pelas ambições neo-otomanas da Turquia de Erdogan.
2. O incidente na fronteira da Turquia com a Síria mostra os riscos. O abate do avião russo Su-24M, pela força aérea turca, é um passo numa escalada de confrontação. Foi a primeira destruição de um avião da Rússia, por um membro da NATO, desde os longínquos anos 1950. Mas isso eram os primórdios da Guerra-Fria. As versões sobre a entrada do avião russo no espaço aéreo da Turquia e os avisos que terão sido feitos, são contraditórias. Independentemente da forma exacta como ocorreu o incidente, a reacção turca parece excessiva. É conhecido que a Rússia estava a fazer bombardeamentos na Síria, não a atacar a Turquia. A Turquia sabia isso. Coincidência, ou não, o timing não podia ser melhor para por em causa uma embrionária grande coligação anti-Daesh (Estado Islâmico). François Hollande, que a tenta implementar depois do 13/N — e nessa altura se encontrava nos EUA para convencer Obama a integra-la junto com a Rússia —, viu os seus esforços destruídos à nascença. A Turquia tem a sua própria agenda na guerra da Síria. Nada tem a ver com democracia pluralista e direitos humanos, aliás, cada vez mais em causa, na própria Turquia governada pelo AKP de Erdogan. Nada tem também a ver com o interesse da União Europeia, que é de pacificar o mais rapidamente possível a região, até por causa do fluxo de refugiados. Vê a ex-província otomana como um território natural da sua influência. Provavelmente, ambiciona que a futura Síria seja uma espécie de protectorado seu. A entrada da Rússia na guerra frustrou largamente as expectativas turcas. Não por acaso, o incidente ocorreu na fronteira da Síria com a província turca do Hatay. O território foi anexado pela Turquia em 1938, quando a Síria estava sob o mandato francês da Sociedade das Nações. A anexação nunca foi reconhecida pela Síria independente desde 1945. Sempre foi um ponto de atrito entre os dois Estados. No cálculo de Erdogan para derrubar Assad está ter um governo sírio que aceite de iure a actual fronteira.
3. A Turquia sempre procurou no Ocidente — no passado na Grã-Bretanha, hoje nos EUA —, um contrapeso para a sua rivalidade com a Rússia dos czares/União Soviética/Federação Russa. É isso que explica a ambição de entrar na NATO, concretizada em 1952. Na altura, a União Soviética de Estaline ambicionava os territórios cedidos ao Império Otomano/Turquia, no leste da Anatólia, pelo Tratado de Brest-Litovsk, em 1917. Esse foi o Tratado que permitiu a saída antecipada da Rússia da I Guerra Mundial, mas com substanciais perdas de território e população. Foi o preço que os revolucionários bolcheviques tiveram de pagar para consolidarem a revolução. A história e a política internacional estão cheias de cinismo e ironias. A Rússia revolucionária de 1917, mais tarde transformada em União Soviética, foi um decisivo aliado da nascente República Turquia. O contexto era o da guerra contra a Grécia e as potências aliadas da I Guerra Mundial, após a derrota do Império Otomano. O fornecimento de material militar e reabastecimento pela fronteira leste, vindo da Rússia bolchevique, foi decisivo para o movimento nacionalista de Mustafa Kemal Atatürk. Sem esse apoio provavelmente teria sido derrotado militarmente. A situação modificou-se no pós II Guerra Mundial, como a emergência de uma poderosa União Soviética. A Turquia de Inönü procurou a NATO. Receava a vontade de Estaline reverter o Tratado de Brest-Litovsk e a pressão soviética sobre os estreitos que ligam o Mar Negro ao Mediterrâneo. Os EUA, viram uma oportunidade para consolidar a sua política de containment (contenção) da União Soviética, no Mediterrâneo oriental e Médio Oriente, cercando-a no seu flanco Sul.
4. A Guerra-Fria acabou a partir nos anos1989-1991, com o fim do muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. O Pacto de Varsóvia — a aliança político-militar liderada pela ex-União Soviética —, foi dissolvido. Quanto à NATO, manteve-se e procurou adaptar-se aos novos tempos. Alargou até substancialmente o seu de número membros. Incorporou novas missões fora de área e de manutenção de paz. Aspecto importante, o Tratado de Washington, de 1949, estabeleceu uma garantia de assistência militar mútua. Essa garantia fundamental, prevista no artigo 5º, mantém-se em vigor: “As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou colectiva, reconhecido pelo artigo 51° da Carta dias Nações Unidas.” O mesmo artigo acrescenta ainda que a NATO “prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora […] a acção que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte”. Quer dizer, prevê-se, assim, uma resposta militar aliada a um ataque externo contra qualquer dos membros, no perímetro de segurança da área do Atlântico Norte ou seja, contra o território de qualquer um dos membros, na Europa, América do Norte ou Turquia.
5. A Turquia de hoje é muito diferente do Estado que nos anos 1950 integrou a NATO. Afasta-se, cada vez mais, da política externa prudente de Atatürk e Inönü. Está em processo de reislamização e não de secularização. Erdogan vê-se como herdeiro dos sultões otomanos, após o parêntesis da secular República da Turquia de Atatürk. O fim da União Soviética, os Estados independentes turcófonos — Azerbaijão, Turquemenistão, Uzebequistão, Cazaquistão e Quirguistão —, a implosão da Jugoslávia e os muçulmanos dos Balcãs (Bósnia, Albânia, Kosovo, etc.) são vistos como oportunidades de expansão da sua influência. Está em competição directa com Putin, o qual se vê como herdeiro da Rússia dos czares, após o parêntesis histórico da União Soviética criada por Lenine. A anexação da Crimeia, a guerra no leste da Ucrânia, são sinais dessa ambição russa. O confronto reassume formas familiares à luz da história europeia dos séculos XVIII e XIX. A Rússia em expansão via no sudeste europeu uma área de influência natural. O Império Otomano também, até porque se tinha instalado em partes significativas desses territórios desde finais do século XIV. Nesse jogo político-estratégico-militar, os otomanos procuravam o resguardo da potência global da época (a Grã-Bretanha), para contrariar a influência russa. Agora, a Turquia procura o resguardo dos EUA e da NATO. Mas há uma diferença fundamental. No século XIX, o Império Otomano estava em retrocesso. Era o “homem doente da Europa” — a expressão é do czar russo Nicolau I — e as potências europeias eram potências mundiais. A realidade hoje é substancialmente diferente. A Turquia tem o segundo exército da NATO, equipado com moderno e sofisticado equipamento dos EUA. As potências europeias, sozinhas, são largamente incapazes em termos político-militares. Impõe-se não deixar arrastar a NATO para as ambições neo-otomanas de Erdogan, que nada têm de defensivo.
Investigador