O Estado Islâmico e a "globalização do terror"
Jihadistas convidam ocidentais a enviar uma expedição para o atoleiro sírio
Conhecemos factos e as primeiras análises mas sabemos pouco dos atentados de Paris. Há mais interrogações do que respostas. Até agora, a prioridade estratégica do Estado Islâmico (EI) parecia ser a sua consolidação territorial na Síria e no Iraque, o autoproclamado “califado”, onde montou um “proto-estado”. Terá agora subido de patamar, desencadeando acções de guerra contra a população civil nos territórios inimigos. Ataques do EI no Ocidente não são inéditos, mas uma operação como a de Paris não tem precedentes. E há uma inquietante sucessão de ataques: o avião russo no Sinai, Beirute, Paris, Bamako e o alarme de ontem em Bruxelas.
Os atentados de Paris têm cem vezes mais visibilidade do que ataques como o de Beirute e as suas dezenas de mortos. E muito mais do que aquilo que faz no Médio-Oriente, onde a matança se banalizou — cerca de 250 mil vítimas. Paris seria uma forma de elevar o seu estatuto, em termos de propaganda e recrutamento. E também estender uma armadilha aos ocidentais, convidando-os a mandar tropas para o “atoleiro sírio”.
Mudança de estratégia?
Os analistas coincidem em muitos pontos. “Os terroristas querem inspirar pavor e querem fazer-nos agir como desejariam que nós agíssemos”, observa o francês François Heisbourg, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) de Londres. “O Daesh [EI] está a tentar atrair-nos para o mais profundo do Oriente.” Ao mesmo tempo quererá suscitar uma resposta brutal na Europa. Quer destruir aquilo que denomina de “zona cinzenta”, a da coexistência entre muçulmanos e não muçulmanos, de modo a tornar irreconciliável a relação entre os dois mundos.
O EI “declarou guerra ao mundo”, escreve o americano Will McCants, da Brookings Institution. “Quer que as potências estrangeiras inimigas saibam que é capaz de inflingir pesadas perdas às suas populações civis.” Mas se o seu desígnio é continuar a controlar territórios, provocar os inimigos mais poderosos é uma má ideia — sobretudo nos casos da Rússia e do Hezbollah. Talvez queira desencorajar os ataques contra o seu território, ou talvez procure vitórias de propaganda para atrair mais recrutas.” E aponta outro ângulo: “Nos últimos dez anos, o EI perpetrou ataques mortíferos contra civis iraquianos para levar o seu governo a uma reacção excessiva.”
Daniel L. Byman, também da Brookings, fala numa mudança de estratégia. “As primeiras notas sobre os atentados de Paris sugerem uma perturbante possibilidade: a de que o EI esteja a mudar de estratégia e a tornar-se global.” Visaria uma escalada: “À medida que o EI se torna mais ameaçador, os EUA, a França e outras potências subirão de nível a intervenção militar contra ele. O que, por sua vez, dará ao EI novas razões para os atacar.” Conclui: “Se o EI se tornou mais ambicioso, o mundo deve estar alerta para mais horrendos atentados. Mas esta viragem pode sair cara ao EI, tornando mais longínquos os seus fins últimos a longo prazo.” Pode vir a arrepender-se da “globalização do terror”.
Contrariando esta ideia, o espanhol Fernando Reinares nega qualquer mudança de estratégia. O seu órgão de propaganda, Dabiq, anunciou há um ano a preparação de ataques no Ocidente, referindo expressamente os EUA, o Reino Unido, a França, a Alemanha e a Austrália. Só começou a pôr em prática este objectivo quando passou a dispor das capacidades necessárias. “E é verosímil que parte da rede coordenada por Abdelhamid Abaaoud, morto na quarta-feira, continue activa na Bélgica.” As operações de ontem na capital belga parecem confirmar esta hipótese.
O EI tem estado sob bombardeamentos ocidentais, a que agora se poderia juntar mais efectivamente a Rússia, ocupada em flagelar outros jihadistas que mais directamente ameaçam Assad. O que importa sublinhar é o seguinte: até agora, eliminar o EI não era um “interesse vital” de americanos, franceses e russos. É isto que pode mudar. É a primeira incógnita sobre as consequências do morticínio de Paris.
Que (não) fazer?
O americano Stephen M. Walt previne contra uma reacção precipitada visando o envio de uma nova força expedicionária para a Síria e Iraque. Enfraqueceria seguramente o EI mas não diminuiria a ameaça directa ao Ocidente. “Mais pessoas veriam os terroristas como mártires heróicos resistindo às eternamente hostis forças do Ocidente. O nosso desafio é derrotar esta estratégia do EI e não cair na armadilha que nos estende”. “Se comprarmos a sua versão do inexorável conflito cultural, religioso e civilizacional, podemos acabar a tornar esta versão numa realidade.” E anular o objectivo de “restaurar mais legítimas e efectivas instituições estatais na região”.
Walt encara o EI como um “Estado revolucionário”, que constitui uma ameaça real e dotado de uma sinistra e criativa máquina de propaganda. Mas tem um limite: “Espalhar uma revolução via contágio requer um nível de recursos que só as grandes potências possuem.” O “califado” não é a China nem a Rússia, sem sequer o Irão.
Também Heisbourg não subestima a ameaça. “O Daesh é uma organização sólida e competente, ao contrário da Al-Qaeda: é um proto-estado.” Mas a resposta no plano militar não é necessariamente a prioritária. “É útil enfraquecer o Daesh no Levante. Não nos privaremos desse prazer. Mas não é isso que vai permitir aos nossos serviços de segurança evitar um novo ataque. Isto passa por uma reforma séria muito mais importante. Os aviões fazem boa televisão, mas será por aqui que passa o essencial do problema Daesh? Estamos a lidar com franceses, nascidos em França.” São jovens europeus, recrutados pelo EI, que desencadeiam os atentados. Este é o problema nuclear. A Europa tem de rever a sua segurança, sabendo embora que segurança a 100% é uma ilusão.
Outra coisa a não fazer é a resposta xenófoba e racista. O jornalista israelita Chemi Shalev adverte contra o discurso extremista de republicanos, como Marco Rubio, que importam para a América discursos análogos ou piores do que os de Marine Le Pen ou do holandês Geert Wilders, associando os muçulmanos aos nazis ou declarando uma “guerra de civilizações” sob a bandeira da “cultura judaico-cristã”.
“Um ataque, a milhares de milhas de distância, conquistou os Estados Unidos ou boa parte deles. Os maníacos homicidas do ISIS [EI] assassinaram uma quantidade de inocentes em Paris mas as repercussões do ataque atravessaram o oceano, corroendo o discurso político americano, deslocando os seus princípios, infestando a esfera pública com incitamentos racistas e manchando a sua imagem no mundo.”
Estas reacções são uma declaração de apoio ao Estado Islâmico.