O espectro que assola a Europa
Se eu quiser descrever o que se passou de outra forma posso fazê-lo. Passou uma semana desde que um partido radical da extrema-esquerda ganhou as eleições na Grécia, mas não conseguiu a maioria absoluta, com um programa que quer a Grécia a mandriar e os gregos na boa vida, e os outros países da Europa a pagar a factura, logo a seguir aliou-se com um partido de extrema-direita, à direita do CDS, foi homenagear os guerrilheiros comunistas, e rompeu as obrigações que tinha com a Constituição grega, que definem a Grécia como tendo uma religião de estado, e com um primeiro-ministro que é mal-educado e não sabe vestir a roupa própria para cerimónias protocolares. E começou a tempestade grega, com os gregos a irem provar o fel de terem escolhido uns energúmenos demagogos para se governarem. Desejo que tudo se faça para que a “minha” política alemã “inevitável”, “sem alternativa”, não venha a ser posta em causa e que os gregos paguem duramente o preço da sua aventura, para que tudo continue na mesma. Para que haja vacina.
Basta comparar estas duas versões, para se perceber o grau de radicalização que hoje implica mudar, na Europa, como se as relações de poder tivessem ficado congeladas num momento da história recente e ninguém quisesse partir essa redoma de gelo. E foi mesmo isso que aconteceu. De há uns anos para cá, ou melhor desde que a Alemanha abriu a crise das dívidas soberanas, que é uma “construção” política artificial, escolhida, desejada e desencadeada, lançada às feras dos mercados, de natureza muito diferente da crise bancária suscitada pelos activos tóxicos e pela derrocada do Lehman Brothers, que a mudança parecia impossível. Num pequeno espaço de tempo, a União Europeia ensaiou uma resposta keynesiana, de injectar dinheiro nas economias para impedir que a crise bancária fizesse estragos consideráveis numa Europa sob assalto tóxico, seguida de imediato de um travão a fundo e do prosseguimento de duras políticas austeritárias, escolhendo uma linguagem punitiva para apontar os alvos. Começou pela Grécia e depois foi Portugal, esteve para ser a Espanha e a Itália.
Estava tudo bem nesses países? Não, não estava nada bem, mas a abertura artificial da “crise das dívidas soberanas” tornou tudo pior, porque impediu de imediato que esses países acedessem aos mercados e tornou-nos dependentes das políticas que levaram à troika. A relação de causa efeito não é entre os descalabros orçamentais e as dívidas cada vez mais altas desses países e os “resgates”, mas entre a criação de um novo tipo de crise com as dívidas soberanas dos estados, que infectaram os mercados e deram origem aos resgates. Nesse processo, acabou o directório, que já era uma perversão do funcionamento da União Europeia e passou-se ao exercício do poder único da Alemanha, que mudou de aliados na Europa. Deixou a França apagar-se cada vez mais e ligou-se aos países pequenos da linha dura anti-PIGs, como a Finlândia ou a Holanda.
Ou seja, a crise das dívidas soberanas permitiu a hegemonia alemã, que a Alemanha usou para impor um Tratado Orçamental que tornava rígida a sua política em toda a União Europeia, impediu o Banco Central Europeu de avançar com qualquer outra solução alternativa para conter a crise, e fez tudo para bloquear qualquer esboço de resistência à sua política. O Reino Unido isolou-se ainda mais, a França enfraqueceu-se, a Espanha conseguiu in extremis não seguir os PIGs, a Itália permaneceu na corda bamba, a Irlanda, Portugal e Grécia subjugaram-se em desespero de causa. Os socialistas traíram um pouco por todo o lado, assinando o Tratado Orçamental, aliando-se como parceiros menores aos vários governos alemães, e, quando tinham sido eles a estarem no poder no momento dos resgastes, ou foram reduzidos a partidos menores ou desapareceram do mapa dos grandes partidos, como aconteceu com o PASOK. Não havia “alternativa”, embora desde o início, essas alternativas surgissem, mas foram descartadas como exercícios de irrealismo político quase subversivo. Uma política genuinamente radical, como a que foi seguida por vários países europeus, como é o caso do governo português, passou a ocupar o “centro político”, o “arco da governação”. Eles é que eram radicais, mas chamavam radicais a todos os que lhe contestavam a “inevitabilidade”. No intervalo, países que seguiram outras receitas para combater a crise, passaram quase a bolchevistas, como era o caso dos EUA.
Era só uma questão de tempo até que outros verdadeiros radicais acabassem por vir tomar o lugar dos partidos social-democratas, democratas-cristãos, centristas, que cederam aos diktats alemães. Cresceram os partidos democráticos, conservadores e eurocépticos, como UKIP, que, como contestava a ortodoxia europeia, passou também a ser considerado radical. Mas cresceram os partidos de direita mais extrema, como a Frente Nacional e partidos neo-nazis, que deixam Marine Le Pen num altar de moderação, como é o caso da Aurora Dourada na Grécia. E cresceu o Syriza e o Podemos. Mas, mais significativo do que tudo isso, todos traduziram as tendências crescentes do eleitorado de muitos países de recusar a deriva anti-democrática da União Europeia, e a hegemonia das políticas alemãs de austeridade punitiva. Se hoje a União, como está, fosse a votos, na maioria dos países, não passava no eleitorado.
As pessoas sabem disso, os governantes que estão irresponsavelmente a destruir a União como ela existia, também sabem. A União Europeia não sobrevive à substituição de uma política de coesão e de interesse mútuo pela pergunta pavloviana dos novos mestres: “quem é que paga?”. É que antes também só alguns pagavam, mas percebiam que a construção da Europa era uma vantagem política para todos, e que o preço era pequeno. Pagavam desmandos? Pagavam e sabiam que pagavam, quer fosse a falcatrua das contas gregas quer fossem os privilégios dos agricultores franceses. Hoje quem pergunta “quem paga?”, para depois dizer que não quer pagar para esses preguiçosos do sul, está a usufruir das vantagens da União, a garantir que o euro é uma nova versão do seu marco, ou que os mercados a leste lhes estão abertos como nunca estiveram desde o tempo nefasto do Generalgouvernement, ou que puderam beneficiar do fim da guerra fria sem grandes turbulências à porta. Desequilibrem a Europa e depois admirem-se de Putin estabilizar as suas conquistas a Leste; dividam a Europa entre os amigos da austeridade e os seus inimigos e depois queixem-se de muitos segundos ou terceiros partidos serem extremos, anti-europeus, populistas, radicais; aticem os mercados contra os “que se portam mal” e depois queixem-se de haver saídas do euro, e queixem-se ainda mais se elas se revelarem vantajosas a prazo.
Ninguém pode garantir que o Syriza tenha sucesso, e também não é fácil definir qual o grau de cumprimento das suas intenções que possa ser considerado pelos gregos um sucesso, mas os gregos que votaram no Syriza prestaram um enorme serviço à Europa, desbloquearam-na, abriram novas possibilidades, umas boas e outras más. Os gregos fizeram história, no sentido de que quem conhece a história sabe que ela é sempre surpresa. É por isso que, como na célebre frase de 1848, um espectro assola a Europa: o do Syriza.