O discurso da guerra
As democracias reagem tarde às ameaças, mas são temíveis quando respondem e têm dificuldade em saber quando parar.
A resposta do Presidente da República francesa aos atentados de Paris foi firme e decisiva. Tal como o Presidente George W. Bush depois do “11 de Setembro”, o Presidente François Hollande, desde a sua primeira intervenção pública, classificou os atentados de 13 de Novembro como um “acto de guerra”.
Essa tomada de posição justifica-se, desde logo, pela necessidade de conter os sentimentos de insegurança e de medo provocados pelos atentados e, por outro lado, legitima uma resposta forte, indispensável para afirmar a soberania do Estado. Nesse quadro, Hollande, tal como Bush, entendeu dever identificar de imediato os responsáveis e atribuiu os atentados ao “exército terrorista do Daesh” – o acrónimo árabe do “Estado Islâmico na Síria e no Iraque”. Acto contínuo, o Governo declarou o estado de emergência, as forças de segurança interna começaram a desmantelar as redes clandestinas dos jihadistas em França (e na Bélgica) e as forças aéreas francesas atacaram o quartel-general do “Estado Islâmico” na Síria.
Em Versailles, o Presidente da República reiterou perante o Congresso que “a França está em guerra” e, na primeira reunião do Conselho de Negócios Estrangeiros que reuniu os Ministros da Defesa da União Europeia depois dos atentados, o Ministro francês invocou, pela primeira vez, a cláusula de defesa mútua do Tratado da União Europeia: o artigo 42º §7 estipula que se um Estado membro for alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados membros devem prestar-lhe “auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance”, em conformidade com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas, que trata da defesa colectiva. Todos os Estados membros apoiaram sem reservas a activação inédita desse mecanismo.
A decisão de recorrer à cláusula de defesa mútua, em vez de se referir à cláusula de solidariedade perante um atentado terrorista prevista pelo artigo 222.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, confirma que a República francesa, tal como a República norte-americana há catorze anos, considera ter sido objecto de uma agressão externa e está preparada para recorrer a todos os meios, incluindo a força militar, no exercício do seu direito de legítima defesa.
À partida, a França podia recorrer tanto à cláusula de defesa mútua do Tratado da União Europeia, como ao artigo 5.º do Tratado de Washington, invocado uma única vez pelo Secretário-Geral da NATO, na sequência do “11 de Setembro”. Escolheu, de forma deliberada, a União Europeia em vez da NATO, a única com os meios para mobilizar uma força colectiva. Na aplicação da cláusula europeia, a França vai ter de estabelecer bilateralmente as formas de assistência dos outros Estados da União Europeia, que não incluem necessariamente o emprego da força militar.
Nesse sentido, a motivação da escolha é política e não operacional ou militar. Hollande quis garantir o apoio da União Europeia antes de se deslocar a Washington e a Moscovo, na próxima semana, para poder tratar com os seus homólogos norte-americano e russo em pé de igualdade e, de certa maneira, numa posição de equidistância, que teria ficado prejudicada se a França tivesse invocado a cláusula de segurança colectiva da NATO.
O sobressalto gaullista de Hollande é sustentado pela capacidade de intervenção militar da França, que comandou (com a Grã-Bretanha) a intervenção da NATO na Líbia, garantiu a defesa do Mali e mobiliza mais de dez mil soldados na luta contra as milícias jihadistas no Norte de Africa e no Médio Oriente. Proporcionalmente, a França tem mais meios militares empenhados no combate ao terrorismo islâmico do que os Estados Unidos e a Rússia, o que permite a Hollande reclamar uma concertação entre as três potências para derrotar o “Estado Islâmico”.
Os atentados de Paris tornam mais difícil o Presidente Obama recusar uma exigência francesa: o Presidente Putin, pela sua parte, precisa de uma “frente única” contra o “Estado Islâmico”, tanto para salvar Bashar al-Assad – o principal responsável pela guerra civil – como para preservar a sua aliança com a Síria e, sobretudo, para neutralizar o efeito de isolamento imposto pelas sanções desde a anexação russa da Crimeia.
Depois do “11 de Setembro”, nenhum Presidente dos Estados Unidos podia deixar de fazer da luta contra a Al-Qaeda a sua prioridade: depois do “13 de Novembro” nenhum Presidente da França pode deixar de fazer da luta contra o “Estado Islâmico” a sua prioridade. As democracias reagem tarde às ameaças, mas são temíveis quando respondem e têm dificuldade em saber quando parar: o “Estado Islâmico” pode acabar por pagar caro a sua nova estratégia terrorista.
No dia 13 de Novembro, André Glucksmann foi a enterrar no Père-Lachaise. O mais interessante dos novos-filósofos, inimigo implacável de todos os totalitarismos, escreveu uma tese sobre a teoria da guerra de Clausewitz a Mao Tsetung, que publicou com o título Le discours de la guerre. Talvez ele nos pudesse explicar as consequências da re-legitimação da guerra, em que convergem os Estados e os movimentos jihadistas no princípio do século XXI.