O Brasil ante as portas do purgatório
No calor dos últimos dias, apagando os incêndios, reagindo aos ventos e as marés, o brasileiro resistirá.
Concomitantemente, os avanços da globalização e a dinâmica de inovação tecnológica intensificarão o descompasso do conhecimento, os contrastes sociais, a massificação de padrões de consumo e a manutenção da pobreza.
Junto às tendências locais, precisamos compreender os movimentos diastólicos da evolução das sociedades, ora progressistas, ora reacionários. Alternam-se fases de centralização e descentralização, liberdade e moralismo, hedonismo e solidariedade, desordem e progresso.
Na sequência, reconhecermos a nossa condição planetária e os efeitos do aquecimento global que ora se impõem. A legitimidade dos desejos de consumo individuais, a natureza predatória das corporações, os paradoxos entre o conhecimento científico, a sustentabilidade do planeta e da vida humana.
Quanto ao Brasil especificamente, fundamental considerarmos suas abissais dimensões e desigualdades socioeconômicas e culturais, fronteiras de espaço e tempo que constituem e determinam o futuro de seu povo.
Coletivamente, apesar do excepcional ritmo de transformações dos modus operandi, poucas conquistas podem ser testemunhadas no espaço de uma geração. Coexistem consideráveis níveis de conhecimento, muita informação e ignorância. Em situações extremas, conflitos interétnicos e inter-religiosos, histerias coletivas, regimes autoritários, auto justiçamento, sentenças capitais e outras soluções terrivelmente primitivas ainda são cogitadas.
Terra de Deus. Da água doce. Em se plantando tudo dá. Raízes fortes. Animus afro, resistência tupi, sensibilidade lusa. Resiliência. Tutu de feijão preto, mandioca e chouriço. Outros sabores, temperos e poderes.
De língua única, musical e complexa. Ritmos e identidade. Rica multiculturalidade. Diversas feições e imperfeições. Divina policromia. Do Aleijadinho.
Amazônia. Costas sem fim. Praias paradisíacas. Sob o sol generoso, o bronze, a prata e o ouro. Belas curvas. Paisagens postais. Oásis urbanos. Jazidas idílicas. Sensualidade, ginga e malemolência. A carne. Frutas frescas. Cacau e café. Sal e açúcar. Pimentas e perfumes.
Redentor. Longe das guerras, pão de queijo e água de coco à sombra das palmeiras. Areia fina...
Hospitalidade nata. Compensação. Curiosidade. Deslumbramento. Inventividade. Cultura antropofágica, semelhante e singular. Macunaíma. Potencial civilizatório.
Barroca. Moderna. Do avião. Da arquitetura de referência internacional e das favelas. Da cirurgia plástica e das novelas. Da indústria criativa, o design e a gastronomia. De Gisele Bündchen. Havaianas. Da inquestionável quebra da patente dos antivirais.
Excessos. Tanto que se desconhece, descuida e negligencia.
Humanos. Errantes. Direitos para alguns, falta para os outros. Faraós modernos, políticos míopes. Atrasos.
Medievais visionários, miseráveis filantropos, intelectuais deprimidos, espertos oportunistas, alienados otimistas, ignorantes desafortunados, benfeitores ocultos, mestres desvalorizados, doutores maltratados. Anjos e demônios.
Desafios da escala, da estrutura federativa, das demandas cíclicas da educação. A crise dos valores, das ideologias, das instituições, das lideranças.
Nesse templo, os vendilhões são bem-vindos. Como o celeiro de commodities e das alternativas energéticas, a potência do futuro inequivocamente enfrentará as adversidades de sua deficiente cultura de planejamento e preservação. Seus filhos conviverão com a insuficiência e a precariedade de sua infraestrutura, os apagões e experimentarão mais sede. Coadjuvante, continuará em desvantagem e vulnerável à exploração de mega corporações.
Os melhores grãos e a intelligentsia for export. A evasão das riquezas. Abundância, desperdício e escassez.
Cidades em expansão, ruas progressivamente hostis, trânsito inviável, incontáveis recursos tecnológicos e relacionamentos virtuais. A natureza cada vez mais distante, a biodiversidade lembrada nos museus. Rotinas mais medíocres do ponto de vista estético.
Em longo prazo, o caos prevalecerá sobre o paraíso. Tragédias de grandes números. Aumento da competitividade, da pirataria e da violência.
Restará ao povo, com a sua inexorável capacidade de adaptação a mudanças, recorrer ao jeitinho brasileiro de sobreviver. Fará arte. Festa. Tirará partido das adversidades e zombará da própria desgraça.
No calor dos últimos dias, apagando os incêndios, reagindo aos ventos e as marés, o brasileiro resistirá. O bode sertanejo triunfará e encontrará o seu caminho, já que ninguém dúvida que Deus é brasileiro.
Desenhador industrial, empresário, consultor, ocupou cargos de direcção na UNESCO e na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro