O amor é um pensamento intrusivo: alguém acampou na nossa cabeça

Quarto dia da série Conversas de fim de ano. Escolhemos dez temas, organizados em cinco blocos, para os quais entrevistámos dez peritos. Hoje, amor e violência com Helen Fisher e Marc Goodman

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O Elixir do Amor, de Donizetti, numa encenação do Teatro da Trindade, em Lisboa PÚBLICO

E o que se acende é isto: "Um grupo de neurónios localizados no mesencéfalo começa a produzir dopamina que se espalha a muitas partes do cérebro e nos dá aquela focalização, energia, possessividade, desejo, obsessão e motivação para ir ter com a pessoa", descreve a antropóloga Helen Fisher, autora de vários livros e estudos sobre o amor como Anatomia do Amor (Círculo de Leitores) ou Porque Amamos (Relógio d"Água). "A primeira coisa que acontece é que a outra pessoa passa a ser especial – tudo nela passa a ser especial. Depois começamos a focar-nos nas coisas de que gostamos na pessoa, ficamos em êxtase quando as coisas correm bem e desesperados quando correm mal, ganhamos imensa energia, tornamo-nos muito possessivos sexualmente, sentimos dependência emocional e física. Mas o que queremos mesmo é a união emocional. E acontece aquilo a que chamo de pensamento intrusivo: não conseguimos deixar de pensar na pessoa, alguém está acampado na nossa cabeça."

Consultora de vários sites de encontros amorosos e criadora de testes para o Match.com, um dos líderes no mercado, Fisher recolheu milhares de dados sobre o que leva duas pessoas a juntarem-se. O resultado está em Why Him? Why Her?, em que divide a personalidade em quatro estilos (explorador, negociador, director e construtor) e aborda as suas combinações. 

Não interessa se aconteceu no segundo em que conhecemos a pessoa – a chamada paixão à primeira vista –, se meses depois, defende Fisher, que compara, neste aspecto, o sistema do amor ao sistema do medo ou ao prazer da comida: podemos ficar com medo de alguma coisa instantaneamente ou meses depois de ter tido contacto com essa coisa; podemos sentir imediatamente o prazer de comer um bolo quando o pomos na boca ou sentir esse prazer depois. 

O cérebro pensa, as emoções e sentimentos estão activos, mas há mais qualquer coisa que acontece, por isso o amor é um motor poderoso. "No cérebro há o córtex cerebral – com que se pensa – e por baixo o sistema límbico – ligado às emoções (medo, raiva, surpresa, nojo). Muito mais abaixo, estão as regiões ligadas à motivação, à focalização, à obsessão, à energia – o amor romântico activa estas regiões. O que eu e você temos em comum é que, se se apaixonar, vai desejar tanto estar com o seu parceiro como eu com o meu", explica.

A descrição enfática do amor romântico feita por Fisher corresponde àquilo que associamos a alguém que está "loucamente apaixonado". Em inglês, a expressão usada para "apaixonar", traduzida à letra, aponta para uma queda - "fall in love". Mas tão misterioso como "cair no amor", é "sair do amor" – "fall out of love". 

Sobre o que acontece ao cérebro quando esse sistema se "apaga" ainda menos se sabe – Helen Fisher desconfia de que está associado à capacidade de ilusão que o amor provoca, ou seja, por alguma razão se usa também a expressão "ver o outro com lentes cor-de-rosa". "Ninguém sabe o que acontece ao cérebro quando as pessoas deixam de estar apaixonadas. Mas deixe-me contar-lhe uma coisa: fomos à China fazer uma experiência sobre o que acontecia quando as pessoas se apaixonavam e encontrámos respostas iguais às dos americanos. Três anos e meio depois voltámos e perguntámos às mesmas pessoas se ainda estavam apaixonadas: 50% disseram que sim, 50% disseram que não. Fomos às ressonâncias magnéticas originais para ver se havia alguma diferença em relação aos que continuavam apaixonados e aos que já não estavam. Encontrámos actividade numa zona do córtex pré-frontal, exactamente atrás da testa, entre os que ainda estavam apaixonados – e essa região está ligada à capacidade de suspender os aspectos negativos. Por isso se se continuar apaixonado está-se a fazer aquilo a que chamamos ilusões positivas, a ignorar o lado negativo do outro. De alguma maneira, as pessoas que deixam de estar apaixonadas passam a ser realistas, começam a ver todos os problemas e não têm a iniciativa de se focarem nos aspectos positivos."

Vários estudos apontaram para aquilo que teoricamente faz duas pessoas atraírem-se e para os factores que explicam o clique com uma pessoa e não com outra: ter o mesmo background e nível de educação, ter os mesmos valores sociais ou religiosos, o mesmo nível de inteligência e de capacidade de atracção física, as duas pessoas estarem próximas geograficamente e no mesmo "timing". Há controvérsia, porém, sobre o papel da personalidade – se são os similares ou os opostos que se atraem ou nenhum deles –, e o que Fisher quis trazer de novo ao estudo sobre o amor foi o papel da biologia. "A maior parte das teorias da personalidade estuda-a do ponto de vista psicológico, não biológico. Com um geneticista, estudei cem mil pessoas que fizeram o meu teste de personalidade no site Chemistry.com. E o resultado é que ninguém respondeu de forma igual, ou seja, cada um de nós é único, o que não me surpreende", diz. 

Traços hereditários
Fisher centrou-se naquilo que se designa por traços temperamentais de personalidade, hereditários, "relativamente estáveis durante a vida e ligados a determinados genes, hormonas e sistemas neurotransmissores". Chegou a quatro tipos: o explorador – associado ao sistema da dopamina e ao desejo de novidade, de experiência, de aventura, à impulsividade, à energia, ao entusiasmo; o construtor – associado ao sistema da serotonina e à sociabilidade, precaução, cumprimento de regras, ordem, planeamento, precisão; o director – associado à testosterona e à capacidade visual e espacial, a menos socialização e a fluência verbal, à autoconfiança e à assertividade; e o negociador – associado ao estrogénio e à oxitocina e ao pensamento a longo prazo, à cooperação, a capacidades linguísticas, à agradabilidade, à empatia. 

A atracção destes quatro tipos acontece assim, segundo a análise de Fisher: os exploradores e os construtores, mais parecidos, tendem a atrair os mesmos tipos; os directores e os negociadores – "opostos" – atraem-se. Uma das coisas que a antropóloga diz que acontecem quando estamos apaixonados é que ficamos mais dispostos a arriscar. Mas isso é algo que também depende da personalidade: "Há pessoas que estão dispostas a arriscar em várias áreas, ponto. Mas é interessante que até as pessoas mais cautelosas arriscam mais quando estão apaixonadas. A sedução é diferente consoante as pessoas, claro, e acredito que entre os quatro tipos - o construtor, o negociador, o explorador e o director – o explorador vai arriscar mais." 

Há quem diga que racionalizar o amor desmistifica e apaga o mistério que o alimenta. Fisher defende, porém, que quanto mais soubermos sobre factores como a personalidade, "melhores relações teremos". "O conhecimento é poder. Às vezes levamos as coisas de forma demasiado pessoal. Se soubermos que a pessoa com quem estamos é teimosa porque é assim biologicamente e que isso não tem que ver connosco mas com a forma como é, entendemo-la melhor. Por outro lado, durante anos as pessoas não sabiam nada sobre o amor e apaixonavam-se na mesma!" 

A informação é crucial em casos como os efeitos dos medicamentos contra a depressão no desejo sexual e nas emoções. "Fiz um estudo sobre antidepressivos, que interferem com a serotonina, diminuem o desejo sexual mas também põem em risco sentimentos de amor romântico, de ligação, porque quando se aumenta a serotonina está-se a suprimir o sistema da dopamina e a dopamina está ligada a sentimentos de amor romântico. Isto é informação sobre o amor romântico que as pessoas podem usar – quanto mais soubermos sobre o amor, mais poderemos evitar os problemas e ter o tipo de relação que queremos." 

Se nos põe em êxtase, o amor romântico também é capaz de despertar o pior das pessoas, porque "é o motor humano básico e um dos mais poderosos", explica Fisher. Ao ponto de gerar outra emoção igualmente forte, ódio. Fisher já disse que não se sabe o que acontece ao cérebro quando deixamos de amar alguém, mas sabe-se que os sentimentos de ódio e amor se tocam – daí gerarem os crimes passionais, alguns de uma violência inimaginável.

Violência em queda?
A análise da violência feita por Marc Goodman, especialista em cibercrime e ciberterrorismo e fundador do Future of Crime, que tem trabalhado com organizações como a Interpol, Nações Unidas ou NATO, aponta para um futuro contraditório: descida da violência, apesar de as notícias de massacres como o da Escola Primária de Sandy Hook nos Estados Unidos darem a impressão do contrário, mas acesso mais fácil a armas que não precisam de controlo para entrar em casa. "Se a quisesse roubar há dez anos, apontava-lhe uma arma, agora não preciso – posso ser um hacker e roubar a sua conta bancária", lembra o especialista, que estuda também o impacto das novas tecnologias como a robótica e a biologia sintética, na segurança. "O acto de violência pode ser removido de muitos crimes e as estatísticas mostram que os crimes violentos baixaram imenso, sobretudo nos Estados Unidos, onde passaram para metade em algumas cidades americanas – quando se tem novas formas de cometer crime sem violência então a violência baixa." 

Goodman lembra que hoje é mais fácil cometer um crime sem violência, quando não há corpo a corpo. "Não precisa de existir interacção entre a vítima e o perpetuador, não se vê a pessoa cara a cara. O criminoso pode estar mais calmo, mais preparado, mais consciente ao usar as tecnologias."

O mais assustador foi o retrato deixado por Goodman numa TED talk sobre facilidade de acesso a armas. Há criminosos a criar as suas próprias redes de telemóveis, terroristas como os do ataque em Bombaim em 2008 que tinham sistemas de monotorização em tempo real da BBC, Al-Jazira, CNN a partir do Paquistão – "dez homens conseguiram parar uma cidade de 20 milhões", lembra. Houve o hacking à PlayStation em 2011, em que "uma pessoa" roubou os dados pessoais de quase cem milhões de utilizadores. Nos Estados Unidos, foi apanhada uma afiliada da Al-Qaeda que tinha aviões de controlo remoto a carregar explosivos. E agora há as impressoras 3D, que imprimem materiais como plástico, metal e até cimento, diz, e capazes de produzir armas (Goodman mostrou uma nessa TED). 

Imagine-se um destes aparelhos nas mãos de Adam Lanza, o autor do massacre de Sandy Hook que matou 20 crianças e seis adultos. Lanza, 20 anos, seria um jogador compulsivo do videojogo Call of Duty, em que a personagem principal é um atirador. A primeira pessoa que matou foi a mãe.

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