Ninguém ganha sem o voto dos pobres, mas desta vez é a classe média que vai decidir a eleição

A campanha presidencial brasileira revelou um país fragmentado, pessimista e indeciso sobre a melhor maneira de prolongar as conquistas do passado. A escolha é entre a manutenção do status quo ou o risco da mudança – e o desfecho é imprevisível.

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Aécio Neves e Dilma Rousseff no último debate televisivo, na Globo RICARDO MORAES/REUTERS

A votação deste domingo tem como pano de fundo uma economia estagnada, com a inflação a bater no tecto da meta de 6% e o crescimento a registar uns anémicos 0,3%, em contra-ciclo com os países da região; uma insatisfação generalizada com a qualidade dos serviços públicos, dos transportes à educação e à saúde que, segundo as sondagens, é a maior preocupação dos eleitores; e as manchetes dos jornais ocupadas diariamente com títulos sobre corrupção, desvios de dinheiros públicos, troca de favores e nepotismo.

Não é um país optimista e confiante que vai às urnas: mais do que tudo, o Brasil que conquistou um lugar cimeiro no mundo pelos seus avanços económicos e impressionantes desenvolvimentos sociais, vota para não perder as conquistas das últimas décadas e manter-se na rota do sucesso.

As receitas para garantir esse caminho são, naturalmente, diferentes para cada um dos candidatos. A Presidente Dilma Rousseff promete prolongar o projecto desenvolvimentista iniciado pelo seu antecessor Luiz Inácio Lula da Silva, e concentrar todas as energias e recursos do Governo federal na redução das assimetrias e desigualdades que ainda são gritantes no Brasil. O seu adversário Aécio Neves garante ter a solução para recuperar as contas públicas e impulsionar o país com um novo dinamismo, sem deixar de atender às necessidades dos mais desfavorecidos mas libertando-os progressivamente da dependência do Estado.

Durante a campanha – que foi tensa e agressiva –, compôs-se um retrato de divisão do Brasil, onde cabem vários países distintos, caracterizados por uma série de dicotomias e confrontos: de ricos versus pobres; do Norte/Nordeste versus o Sul/Sudeste; ou populistas versus elitistas. A habitual arrumação do eleitorado em direita e esquerda, que fruto da complexidade do sistema político do Brasil é um exercício inconsequente e até fútil, tendo em conta a realidade brasileira, não explica o braço-de ferro prolongado nas sondagens entre os dois candidatos.

Em vez disso, é o factor "renda" (como no Brasil se designa o escalão de rendimentos) que melhor explica a polarização eleitoral manifesta em todas as pesquisas de intenção de voto. A Presidente Dilma Rousseff domina em absoluto entre aqueles que estão na faixa do salário mínimo, e por isso estão mais dependentes do Estado. No outro extremo da escala, aqueles com rendimentos superiores a dez salários mínimos estão esmagadoramente ao lado de Aécio Neves. No Brasil, é um facto que ninguém vence sem o voto dos pobres, mas neste domingo a disputa (e a chave da eleição) está entre a classe média – os que têm entre dois a cinco salários mínimos, e compõem a classe C, que cresceu exponencialmente com os governos do PT. “A polarização estrutura-se em relação à questão da igualdade”, considera o cientista político da Fundação Getúlio Vargas, Cláudio Couto.

Voto pragmático

Existe um elemento de luta de classes no combate eleitoral que, por força das circunstâncias, se converteu também numa oportunidade para os eleitores acertarem contas com o PT, no poder há 12 anos. Segundo o "blogueiro" Leonardo Sakamoto, “há uma camada significativa da população que vê nas chamadas classes ascendentes – ou gente diferenciada – uma ameaça aos seus privilégios”. Mas analistas e comentadores ouvidos pelo PÚBLICO descartam a ideia de uma polarização irremediável, ou de que o vencedor será aquele que ficar de pé no suposto duelo PT/anti-PT que fracciona o país. "Isso são tudo elementos, mas não são decisivos. O voto é pragmático: o eleitor decide com qual dos candidatos ganha mais e com quem perde menos", sublinha José Roberto Toledo, o analista que é a "autoridade" eleitoral do jornal 
O Estado de São Paulo.

Atendendo ao facto de 70% dos brasileiros insistir nas sondagens no seu desejo de mudança, a questão deste domingo acabará por ser uma definição dos termos em que ela ocorrerá. "Será uma mudança feita preferencialmente por dentro, através da reeleição da Presidente na esperança de que consiga num segundo mandato; ou será uma mudança literal de troca de cadeiras, com novos governantes e um novo rumo?", distingue Toledo.

Nesse sentido, a votação acaba por ser um plesbicito ao Governo de Dilma e aos 12 anos de poder do PT que, para o analista, “é o normal, está dentro da regra em qualquer país do mundo”. “A decisão dos brasileiros será escolher entre manter o modelo que conseguiu fazer emergir uma classe média numa escala que nunca houve no Brasil, mas que revela sinais de esgotamento e necessidade de revisão, ou voltar ao modelo de há 12 anos atrás”, acrescenta.

Os blocos de apoio indefectível dos dois candidatos organizaram-se em função dos respectivos padrões ideológicos e também de estereótipos e preconceitos colectivos. De certa maneira, a mensagem eleitoral das duas candidaturas reproduziu e alimentou essa divisão, perpetuando a caricatura: boa parte do tempo, Dilma e Aécio falaram para esses dois Brasis diferentes, que se caracterizam pela mera rejeição e oposição sistemática de um ao outro. Na sua definição, existe o Brasil do medo, que está disposto a tudo tolerar em nome das importantes melhorias do passado, e por isso continuará a votar no PT; e o Brasil do risco, que pensa na mudança e “destruição criativa” como a solução mágica para todos os (complexos) problemas que o país enfrenta – que consequentemente se agrega em torno dos tucanos (a ave que é o símbolo do PSDB).

O cientista político e autor do livro Marketing político e persuasão eleitoral, Rubens Figueiredo, lembra que desde 1989 o confronto eleitoral brasileiro tem sido uma escolha entre a continuidade ou a ruptura com o status quo. Em 1994, com o Plano Real, e em 1998, por causa da crise internacional, o eleitorado optou pelo que já conhecia, que no caso era o PSDB. Em 2002, prevaleceu a mudança, personificada por Lula da Silva. Por causa da estabilidade do país, “já dava para arriscar, sem chance de errar”, recorda. No fim dos governos de Lula, em 2010, a sua taxa de popularidade era de 80%, e “nesse patamar a situação não perde de jeito nenhum. A tónica da eleição, automaticamente, é a continuidade”. Nesta eleição, a debilidade da economia, a sucessão de escândalos políticos e o efeito dos protestos de rua vieram baralhar o quadro, que é de impasse – não existe uma tendência clara a favor da situação ou da mudança, ambas acarretam riscos.

Mas, pela primeira vez, as sondagens detectaram a existência de um outro grande grupo de eleitores, que não se enquadra nas categorizações do passado. As manifestações que explodiram nas grandes cidades brasileiras em Junho de 2013 expuseram um outro Brasil: um país que já não está necessariamente em vias de desenvolvimento e continua a modernizar-se, que colhe os primeiros frutos da democratização do acesso ao ensino e às tecnologias, onde a subida nos rendimentos fomentou o contacto com novas realidades (nacionais e estrangeiras) e que descobriu na rua um novo espaço de diálogo e construção política, em vez de meramente um local de passagem.

Como nota o professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado, apesar das elevadas expectativas criadas, as pautas (temas) dos protestos de 2013 não só não vingaram na campanha como não tiveram impacto no processo eleitoral (pelo menos na primeira volta). "O tema dos transportes públicos esteve ausente da campanha, as questões de reforma política ou violência policial tampouco foram aprofundados", observa, considerando que os candidatos correram um risco ao ignorar essas matérias da vida quotidiana dos brasileiros. "Um terramoto social como o de 2013 não acontece por acaso", frisa.

Pelo seu lado, o especialista em questões eleitorais da Folha de São Paulo, Fernando Rodrigues, faz uma separação entre as expectativas relativamente ao impacto real dos protestos do ano passado, “em que talvez as pessoas pensassem numa revolução” (que na sua opinião nunca esteve para acontecer, uma vez que os protestos foram conduzidos por “movimentos inorgânicos, sem líderes e sem partidos, e que têm tendência a diluir-se”), e a votação de 2014. “O que aconteceu pode ser lido da seguinte forma: as bancadas governistas [no Congresso nacional] diminuíram, então o protesto teve efeito”. E o facto de ter sido a agenda de costumes – aborto, casamento gay, liberalização das drogas leves – o factor mobilizador da deriva conservadora no legislativo “não é necessariamente contraditório com o movimento nas ruas a favor de melhores transportes ou escolas”, nota.

José Roberto Toledo encontra apenas uma consequência das manifestações de 2013 na actual campanha política: o facto de, segundo os dados das sondagens, 73% dos eleitores brasileiros confessarem não ter preferência por nenhum partido, a taxa mais baixa da história. Esse indicador, que já era elevado em Junho, aumentou mais de 20 pontos desde o início da campanha presidencial, revelando que "o jeito de fazer política está afastando o eleitor dos partidos". "Infelizmente, a única consequência de 2013 foi despolitizar a política, afastar os eleitores do debate e tirar credibilidade".

Esse estado de espírito foi ainda mais fomentado pela concentração (excessiva) do debate eleitoral em torno da questão da corrupção. "Esse tema foi fundamental para afastar ainda mais as pessoas dos partidos", diz Toledo, acrescentando que, à excepção de um grupo muito restrito de apoiantes de Aécio Neves, "todo o resto [dos brasileiros] acredita que político é todo igual", independentemente do partido. A perspectiva da política como "uma coisa baixa, corrupta, nojenta" – que permeou a campanha – reforçou a tendência de despolitização do eleitorado e "radicalizou a crise de representação" no Brasil, considera o analista. "O Brasil chegou num paroxismo."

O editor-executivo do Valor Económico, Cristiano Romero, escreveu que “o que está em jogo na eleição presidencial não é a manutenção do pacto social adoptado pelo país desde a Constituição de 1988, mas o consenso, formado há quase três décadas, sobre como a economia deve ser gerida”. Nesse ponto, estima, continuará de pé o chamado “consenso de Brasília”, caracterizado pela disciplina fiscal e reforma tributária, pela orientação dos gastos públicos para a saúde, educação e infra-estruturas, pela liberalização do comércio e abertura ao investimento estrangeiro, pelas privatizações e desregulamentação.

Isso é patente no programa dos candidatos. Dilma não se propõe inflectir a agenda de privatizações, concessões e parcerias público-privadas que seguiu no seu mandato; aliás, promete aprofundar essa linha, tradicionalmente defendida por governos mais liberais. E Aécio garante a manutenção e “aprimoramento” dos programas sociais e de redistribuição, com destaque para o Bolsa Família, que é a grande bandeira do PT (e apesar da oposição feroz dos sectores mais conservadores da sua base). Como notava ontem Cláudio Couto, no "Estadão", “há um efeito ‘catraca’ de certas políticas públicas que, uma vez implementadas, não têm como serem revertidas totalmente. Assim, diferentes partidos, alternando-se no governo, implantam agendas que se complementam ao longo do tempo”.

Desfecho imprevisível

A corrida de 2014, marcada por várias reviravoltas, transformou-se na disputa mais acirrada dos últimos 20 anos, e o resultado final permenece totalmente imprevisível. As últimas sondagens dos institutos Datafolha e Ibope colocam Dilma Rousseff na frente e favorecem o cenário da reeleição, mas o mais elementar bom senso recomenda que os números sejam encarados com relativo cepticismo: na primeira volta, o concorrente do PSDB furou completamente as previsões feitas na véspera do escrutínio, conquistando 33% dos votos das urnas, muito mais do que os 24% que as pesquisas lhe atribuíam.

A subida de Dilma Rousseff nas sondagens da última semana é vista pelos comentadores como a prova do sucesso da desconstrução do adversário feita pela sua campanha -- a estratégia já tinha sido utilizada na primeira volta contra Marina Silva. Uma fonte ligada ao marketing da candidatura "petista", com quem o PÚBLICO falou, explicou que esse trabalho assentou basicamente no "rebate de mitos que foram sendo veiculados pela imprensa" e, ao mesmo tempo, na apresentação do chamado lado B da campanha adversária, com a exposição de factos menos abonatórios para o candidato "tucano". As redes sociais – e particularmente o Facebook, onde se multiplicaram páginas associadas à candidatura – foram a chave da campanha de desconstrução.

Rejeitando as críticas de uma estratégia suja e baixa, aquele profissional garantiu que não foi divulgado “nada que não tivesse já sido publicado e pudesse ser provado”. “Nós só identificámos a rachadura no mito e, a partir daí, expusemos o lado obscuro, tirando os demónios [do armário]”. No caso de Aécio Neves, tratou-se de refutar a sua narrativa de gestão exemplar, contrapondo dados do seu governo em Minas Gerais, de denunciar a sua alegada "dificuldade de separar público e privado" com casos como o da construção de um aeroporto público em terrenos da sua família e de alimentar a dúvida e o receio da política económica de Armínio Fraga, o presumível indicado do PSDB para a pasta das Finanças. A mesma fonte apontou ainda um factor favorável para que a desconstrução resultasse: o facto de a campanha do PSDB ter enveredado por uma linha contrária às comparações. “Ao pedirem ao eleitor para não olhar para o retrovisor, eles estão a falhar na defesa do seu legado. Aí a mensagem fica baseada no mito, que nós procuramos desconstruir”, referiu.

Para outro "marqueteiro" ouvido pelo PÚBLICO, que esteve directamente envolvido na campanha da primeira volta e pediu para não ser identificado, a fragilidade da campanha "tucana" foi ter investido todas as fichas na mensagem anti-PT. “A comunicação das campanhas é uma batalha de valores e representações e a candidatura do PSDB não soube tão bem expressar quais eram os valores de Aécio Neves, para além de ser contra o PT”. A mensagem da Presidente, considera “foi mais objectiva e concreta”. Acossada pelo desgaste político, e debaixo de fogo intenso por causa do escândalo de corrupção na Petrobas, Dilma lembrou constantemente aos brasileiros que foi ela que “enfrentou a crise e impediu que ela entrasse na sua casa, protegendo você e o seu emprego”, acrescenta.

Ainda que vários comentadores tenham censurado a dura campanha que agora termina como uma constatação da debilidade da democracia brasileira, Fernando Rodrigues contesta essa visão e salienta o facto de o Brasil estar a realizar a sétima eleição presidencial directa consecutiva em total liberdade. "O país está a viver o período verdadeiramente democrático mais longo da sua história, e isso é muito relevante." No dia 1 de janeiro de 2015, quando o vencedor da disputa de hoje for formalmente empossado em Brasília, “será o sétimo Presidente que foi eleito por voto directo a tomar posse. Sabe quando isso aconteceu antes no Brasil? Nunca! Vai ser a primeira vez desde 1500”, assinala, reforçando a importância dessa nota histórica.

Rodrigues também não alinha com a leitura pessimista que vê no ambiente crispado da campanha e no clima de beligerância muito forte entre o PT e o PSDB a génese de uma crise institucional ou o risco de o país entrar num colapso político. "Ninguém tem uma bola de cristal para prever", ressalva, mas, na sua opinião, o potencial de uma crise pós-eleitoral vem do lado da economia e não do campo político. A fragmentação vai continuar, mas, comparando com o que aconteceu nas anteriores eleições de 2002, 2006 e 2010, que resultaram em governos do PT, o analista refere que “os partidos políticos de oposição [ao PT] nunca estiveram tão fortes quanto hoje”. “Se a oposição perder, será uma derrota da qual sai mais robusta do que entrou: ela está maior agora do que no princípio do processo”.

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