Mundial 2014: delírio tropical ou porta para a modernidade
Para uns, o Mundial de futebol no Brasil é uma megalomania sem sentido. Para outros, é uma oportunidade de mostrar o país ao mundo e fortalecer a economia brasileira.
A praça é bonita, arranjada como poucas. As árvores, os bancos de madeira, a calçada portuguesa, os prédios baixos e pintados de fresco: tudo está impecável. E ali ao lado ergue-se o Teatro Amazonas, majestoso, com uma cúpula verde e amarela, a simbolizar a grandeza do Brasil. Ao mesmo tempo que o calor húmido invade os corpos, percebe-se por que razão Manaus já foi conhecida como a Paris dos Trópicos. Há quase 120 anos, um governador chamado Eduardo Ribeiro, visionário ou megalómano, transformou uma aldeia numa metrópole.
Mais de um século depois dessa transformação feita com o dinheiro da borracha exportada para a Europa, a maior cidade da Amazónia lançou-se em mais uma obra gigantesca e cara: um estádio de futebol para receber quatro jogos do Mundial de futebol deste ano. É um recinto bonito, moderno, uma obra de engenharia complexa. Tal como o teatro, está num plano mais elevado e também se impõe a tudo o que o rodeia.
No início da década de 1890, Eduardo Ribeiro foi, para uns, louco e, para outros, um homem à frente do seu tempo. A discussão repete-se agora: um estádio às portas da Amazónia está condenado a ser um elefante branco numa cidade sem clubes nas principais divisões do futebol brasileiro ou pode tornar-se um novo símbolo para a região? A pergunta transforma Manaus numa espécie de metáfora do Brasil que não se limita a receber o Mundial de futebol mas que quer organizar “a Copa das Copas”, como diz o slogan que a Presidente Dilma Rousseff não se cansa de repetir.
O Brasil não precisava de construir 12 novos estádios em 12 estados diferentes, da Amazónia, no Norte, a Porto Alegre, no Sul. É o próprio ministro do Desporto, Aldo Rebelo, quem o admite, assumindo que essa foi uma opção política. A FIFA também nunca o exigiu e até preferia menos cidades. Então porquê organizar o Mundial da forma mais extensa (e cara) possível? “Porque somos um país-continente”, respondeu Aldo Rebelo em entrevista ao PÚBLICO, afirmando que a Amazónia não podia ficar de fora.
“Curiosamente, ou desgraçadamente, o Brasil está repetindo em democracia a mesma megalomania dos militares, que construíram estádios por todo o país. O estádio de Manaus agora demolido foi construído no tempo da ditadura militar”, diz o jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de São Paulo e autor de um dos blogues de desporto mais populares do país.
O Teatro Amazonas, onde se cumpriu o desejo de ouvir ópera às portas da selva, é uma obra imponente. Nenhum edifício da cidade se lhe compara e os arranha-céus construídos um pouco por todo o lado não lhe retiram brilho. E, no reluzente interior, revela-se uma exuberância parisiense, feita de dourados, frescos, lustres e até um tecto que simula a Torre Eiffel vista de baixo. Já a Arena Amazónia é um estaleiro de obras, numa corrida contra o tempo. Está a ser construída no mesmo local do Vivaldão, o antigo estádio de Manaus que foi demolido para dar lugar a um novo recinto com 40 mil lugares, numa zona elevada da avenida que liga o aeroporto ao centro da cidade. “O estádio Vivaldo Lima podia ter sido aproveitado. Era um projecto arquitectónico premiado”, critica o escritor amazonense Milton Hatoum, que mora em São Paulo, mas nasceu e viveu em Manaus: “Esse novo estádio é um delírio populista e demagógico, com tenebrosas transacções, como diz a canção de Chico Buarque.”
Dentro do estádio, que tem a forma de uma cesta de frutas, milhares de trabalhadores finalizam a polémica obra. “Mesmo reformado, o Vivaldo Lima não tinha forma de oferecer condições adequadas a um evento deste padrão”, contra-argumenta Miguel Capobiango Neto, coordenador da Unidade Gestora do Projecto Copa do Governo do Amazonas. “Os estádios têm de dar conforto a quem vem assistir ao vivo, mas também condições de boa transmissão de imagem, até porque o volume de pessoas que assistem aos jogos em casa é muito maior do que o dos que assistem no estádio”, acrescenta, na azáfama de berbequins e martelos.
O preço desta opção é de 669 milhões de reais (204 milhões de euros), o custo global do novo recinto, todo por conta do Governo do Amazonas. Só que desta vez não há o dinheiro da borracha, que há 120 anos permitiu a Eduardo Ribeiro transformar Manaus numa cidade digna de ser capital. “Quando em 1906 um Presidente da República veio cá pela primeira vez, ficou boquiaberto”, conta Robério Braga, historiador e secretário da Cultura do Amazonas. “Afonso Pena declarou: ‘Manaus é o sonho da República. Isso não existe no resto do Brasil.’ E não existia mesmo.”
Esse era o tempo da Manaus Paris dos Trópicos. As senhoras compravam vestidos nas lojas parisienses, as famílias mandavam lavar a roupa em Lisboa, falava-se francês às refeições e ia-se à ópera. E é difícil não lembrar esse passado glorioso quando se ouve o responsável do Mundial dizer que “esse novo estádio pode ser o Teatro Amazonas do século XXI”: “É um novo momento”, diz Capobiango, sentado numa das cadeiras às cores da arena, a evocar as frutas da região.
De Aveiro a Manaus
Manaus é hoje a sétima maior cidade do Brasil, apesar de implantada no meio da Amazónia, que é a maior floresta tropical do mundo. Construir uma ópera aqui, a 2500 quilómetros do Rio de Janeiro e a 6900 quilómetros de Lisboa, foi uma tarefa hercúlea. O novo estádio repete a aventura, porque muitos dos constrangimentos se mantêm — apenas foram suavizados pela tecnologia.
Tal como há quase 120 anos, muitos materiais vieram de fora, por barco, porque os rios e o mar são as verdadeiras estradas da Amazónia. Com uma diferença: no tempo da ópera, os navios iam para a Europa carregados de borracha e voltavam com pedras portuguesas a fazer de lastro — por isso, há muitas praças em Manaus com calçada portuguesa.
Quando se iniciou a construção do Teatro Amazonas, às pedras portuguesas juntaram-se os lustres franceses, o ferro de Glasgow e o mármore italiano, que ainda hoje fazem a grandeza de uma sala de espectáculos improvável às portas da selva. No caso do estádio, boa parte dos materiais também chegou por via marítima de outros estados ou países: as cadeiras vieram do Paraná, parte dos vidros de São Paulo, as membranas da Alemanha, a grama [relva] é de São José dos Campos, explica Capobiango.
E voltou a haver mão portuguesa, até porque Manaus sempre viveu mais voltada para a Europa do que para o Brasil, assinala Robério Braga. Há mais de 120 anos, o projecto do teatro foi feito por um gabinete de arquitectura em Lisboa e o terreno onde foi construído pertencia a um fazendeiro português. Agora, na Arena, toda a estrutura metálica da cobertura do estádio foi fabricada em Portugal, na unidade da Martifer em Oliveira de Frades, distrito de Viseu.
A empresa produziu a estrutura em Portugal por duas razões: a fábrica tem mais maturidade do que a de São Paulo e, curiosamente, o tempo de transporte era menor. “Temos uma realidade interessante em Manaus. Desde o porto de Aveiro até ao porto de Manaus, um navio demora 15 a 21 dias”, explica André Pestana, um madeirense de 30 anos que é o gerente de contrato da Martifer no estádio de Manaus. “Se quiser transportar de São Paulo, demora cerca de um mês. Ou vem de camião, e as vias terrestres não são as melhores, havendo uma parte em que o transporte tem de ser feito em balsa. Ou então vem pela costa de barco, saindo de Santos e subindo até Belém”, explica o engenheiro português, dentro de uma tenda climatizada, onde é possível escapar ao calor típico de Manaus — o clima abafado é a justificação para o estádio ter várias aberturas, de forma a circular o ar, da mesma maneira que no teatro há entradas de ar debaixo das cadeiras.
O calor e a humidade, sempre em doses elevadas, são características de Manaus, ou a cidade não estivesse apenas 350 quilómetros a sul da linha do equador. Também por isso, fazer uma obra na Amazónia implica dificuldades acrescidas. Não se verificaram as epidemias de malária, febre-amarela e varíola que atacaram Manaus no tempo da construção do teatro — como conta o livro de Mário Ypiranga Monteiro —, mas foi necessária uma grande adaptação por parte dos trabalhadores, muitos deles vindos do estrangeiro, como no final do século XIX, e de outras partes do Brasil.
Na construção do Teatro Amazonas, ficaram famosas as exigências do governador. “O meu pai, que era baiano, filho de português de Braga com índia, conheceu o Eduardo Ribeiro”, conta Robério Braga, também autor de um livro sobre o homem que mudou Manaus e que mandou construir o palacete, com vista para o rio Negro, onde decorre a conversa. “O meu pai descrevia o acompanhamento permanente do Eduardo Ribeiro à obra, a ponto de mandar demolir o que achasse mal feito. Os operários estavam a fazer a massa e ele pegava nela. Como era engenheiro militar, sabia quando a densidade estava errada. E mandava demolir.”
Na obra do estádio, não houve demolições forçadas. Mas foi uma empreitada exigente. “A chuva e o calor complicam muito. A gente tem de estar preparada”, diz Elias, um pintor de 56 anos, com o suor a escorrer pela testa, como acontece a todos os que nos trópicos não se abrigam no conforto do ar condicionado. “Isso aí não é para novo, nem para muito velho. O novo não tem preparo e o velho já não tem forças”, acrescenta o mesmo trabalhador, revelando ao PÚBLICO que trabalhava na obra de segunda a domingo, “sem folgas”. Os direitos dos trabalhadores, aliás, têm sido motivo de discussão em Manaus e não só, especialmente depois dos acidentes mortais.
Até agora, morreram pelo menos oito pessoas em obras relacionadas com o Mundial 2014, sendo que seis delas estão ligadas a acidentes de trabalho (três em Manaus, duas no Itaquerão de São Paulo e uma no Mané Garrincha, em Brasília) e duas com problemas cardíacos (uma em Manaus e outra em Belo Horizonte).
Quem paga a conta
O PÚBLICO visitou a Arena Amazónia no início de Fevereiro. O estádio em obras era, por essa altura, um duplo retrato do Brasil: por um lado, um país numa corrida contra o tempo, com milhares de trabalhadores nas bancadas, nos corredores interiores, construindo escadas, furando e pintando paredes, instalando vidros, limpando cadeiras. Mas, por outro lado, vislumbravam-se pormenores do país sem pressa, que tem feito a FIFA exasperar, como os trabalhadores parados dentro do estádio, a contemplar o horizonte, e as muitas promessas que as semanas seguintes desmentiram. Como a de que a obra seria entregue no final da semana de 14 de Fevereiro, altura em que Dilma Rousseff inauguraria o estádio. É certo que a Presidente visitou Manaus, mas o recinto ainda não estava em condições para uma singela inauguração formal.
Os atrasos, aliás, têm sido uma enorme fonte de problemas. “A Copa do Mundo impõe forçosamente uma tripla narrativa”, analisa Bernardo Buarque de Hollanda, professor na Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. A primeira, diz, é a do “Estado-nação brasileiro” e da sua “capacidade de se mostrar preparado para organizar um torneio de tamanha atractividade planetária”. A segunda é a da “sociedade” e da sua “hospitalidade, receptividade aos estrangeiros, a relação da torcida com os símbolos nacionais”. A terceira, finaliza, é a “do time”, "da sua performance desportiva em campo”. O investigador acrescenta que, como “sucedâneos das Exposições Universais do século XIX, os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo são ocasiões extraordinárias de aparição de um país para o mundo”.
O Mundial 2014 era (ou é?) visto como a coroação do Brasil no cenário internacional, após anos de crescimento. Mas, para já, a narrativa está a ser atrapalhada por protestos e atrasos. Na capacidade de organização, pode usar-se a metáfora futebolística de que o Brasil está em desvantagem e com pouco tempo para recuperar. E mesmo que tudo fique pronto a tempo, e o Mundial decorra normalmente, os brasileiros já não se livram de ter ouvido a FIFA fazer reparos inéditos num mundo onde a diplomacia costuma ditar declarações contidas. Em Março de 2012, o secretário-geral da FIFA, Jerôme Valcke, afirmou que o país precisava de um “pontapé no traseiro” para acelerar o andamento das obras; em Janeiro, o presidente da organização, Joseph Blatter, acusou o Brasil de estar mais atrasado do que a África do Sul estava a seis meses do Mundial 2010. Lamentou-se então o presidente da FIFA: “Esta é a primeira vez que um país dispõe de sete anos para organizar o Mundial e a preparação está atrasada." E há três dias Jerôme Valcke voltou à carga, dizendo que a FIFA está a trabalhar em estádios em que o cimento ainda não está seco.
Até meados de Fevereiro esteve em cima da mesa a hipótese de excluir Curitiba da Copa. A FIFA tinha apontado 31 de Dezembro de 2013 como prazo-limite para a conclusão dos estádios e os seis (todos os que não foram usados na Taça das Confederações) falharam. A Arena de Curitiba e o Itaquerão, de São Paulo, estádio da abertura, só deverão ficar prontos a 15 de Maio, menos de um mês antes do início do campeonato (12 de Junho).
Os atrasos também ajudam a explicar as derrapagens financeiras. O Governo brasileiro já desmentiu uma estimativa inicial para o valor dos estádios que circulou na imprensa brasileira (880 milhões de euros), garantindo que esse valor foi um rascunho da Confederação Brasileira de Futebol para apenas cinco estádios e não 12. Mas se se olhar para a Matriz de Responsabilidades de 2010, o documento com os gastos previstos, verifica-se que o valor dos estádios subiu de 5300 milhões para oito mil milhões de reais (de 1600 milhões para 2400 milhões de euros). Ou seja, o Brasil gastará em estádios mais do que a Alemanha (1100 milhões de euros) e a África do Sul (mil milhões de euros) investiram juntas nos recintos para os Mundiais de 2006 e 2010, segundo números do Sindicato Nacional de Arquitectura e Engenharia. O ministro do Desporto desvaloriza estes números, argumentando que no Mundial 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016 o Brasil gastará menos do que a Rússia nos Jogos Olímpicos de Inverno deste ano, em Sochi.
“Será à toa que a última Copa foi na África do Sul, a próxima é no Brasil e a seguinte será na Rússia? O que há de comum entre estes três países?”, questiona o colunista da Folha de São Paulo Juca Kfouri, dando de seguida a resposta: “São três países de democracia incipiente e de pouco controlo social”, salientando que a FIFA tem escolhido países onde é preciso construir estádios em detrimento dos que já estão preparados para organizar grandes competições internacionais (como a Inglaterra).
Mundial melhora economia?
Os custos com a organização do Mundial são hoje uma fonte de profundo debate na sociedade brasileira. “O Brasil assiste desde 2007 [ano da atribuição da organização do Mundial] a uma grande esgrima verbal em torno do significado da realização da Copa do Mundo no país. Os termos em duelo são ‘gastos’ versus ‘investimentos’”, sublinha Bernardo Buarque de Hollanda.
“Os custos da Copa alcançarão 26 bilhões de reais [quase 8000 milhões de euros]. Se comparados com o orçamento do Ministério da Educação (98 bilhões de reais, quase 30 mil milhões de euros) e do Ministério da Saúde (99 bilhões de reais, mais de 30 mil milhões de euros), temos uma proporção arredondada de um quarto (25%). De todo o modo, há uma desconfiança generalizada por parte da população frente ao Governo, pois dizia-se, logo após o anúncio da Copa, há sete anos, que todo o custeio do Mundial ficaria a cargo do financiamento privado, o que afinal não ocorreu”, acrescenta, por email, o mesmo investigador.
Mesmo sendo verdade que o Governo federal apenas contribuiu com empréstimos e isenções fiscais, os governos estaduais estão fortemente comprometidos. Apenas três estádios são privados (Porto Alegre, São Paulo e Curitiba, sendo que neste caso o governo do Paraná e a prefeitura tiveram de garantir financiamento para que o recinto não fosse excluído). Dos restantes, quatro são dos governos estaduais (Rio de Janeiro, Brasília, Manaus e Cuiabá) e cinco são parcerias público-privadas (Salvador, Natal, Fortaleza, Recife e Belo Horizonte).
“O Brasil está investindo em obras de mobilidade urbana e em aeroportos”, contrapõe o ministro do Desporto, falando de “obras que já estavam inscritas no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), antes de se falar em Copa do Mundo no Brasil”. O que ocorre, explica Aldo Rebelo, “é que nas cidades-sede da Copa” os investimentos foram antecipados, “para que ficassem prontos a tempo da Copa”, citando a Matriz de Responsabilidades, que calcula investimentos de 2400 milhões de euros em mobilidade urbana e 2000 milhões em aeroportos. Ao todo, juntando estádios, mobilidade, aeroportos, segurança, a última previsão aponta para gastos de 7800 milhões, embora responsáveis da organização já tenham admitido que o valor possa atingir os 8500 milhões de euros.
Os argumentos do Governo não têm convencido uma parte da população, que ganhou força com os protestos de Junho durante a Taça das Confederações, em que se reclamaram transportes, hospitais e escolas do padrão FIFA: “O Brasil é um país cheio de contradições. E elas estão aparecendo, porque a Copa é um catalisador de protestos”, diz o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues. “É um país que vendeu para a população e para o mundo uma imagem exagerada dos seus avanços e agora está pagando um preço”, acrescenta o escritor, para quem o gosto pelo improviso, que torna os brasileiros bons futebolistas, é a mesma característica que torna o país “pereba” (perna de pau) na organização.
Bernardo Buarque de Hollanda considera que se vive “um momento de indeterminação e de dúvida” no Brasil. Por um lado, aguarda-se para ver como decorrerá o Mundial — se haverá muitos protestos ou não, se os aeroportos ficam prontos a tempo de evitar o caos, se a segurança funciona. E, por outro lado, discute-se que benefícios reais a organização de um Mundial trará ao país.
O Governo lança mão de um estudo da consultora Ernst & Young e da Fundação Getúlio Vargas, apontando que todo o processo de organização do Mundial criou 3,6 milhões de empregos no Brasil e acrescentou 0,4% no PIB pelo menos até 2014. E o Instituto de Turismo prevê a entrada de 600 mil turistas estrangeiros só no mês no campeonato. Números que são contestados: “O impacto [do Mundial] na economia brasileira como um todo é quase marginal, dado o tamanho da nossa economia”, diz Fernando Ferreira, economista de São Paulo, director da Pluri Consultoria. “Quanto ao número de turistas, já mostrámos ser impossível a chegada de 600 mil turistas para a Copa, mesmo por condições logísticas. A metade disso seria um número mais confiável, e a [contagem] parcial de vendas de ingressos para estrangeiros parece confirmar essa previsão” — os últimos dados da FIFA dizem que 900 mil bilhetes foram comprados por brasileiros e 680 mil por estrangeiros, sendo certo que há pessoas que compram mais do que um ingresso, porque vão assistir a vários jogos.
Pós-Mundial e rock in floresta
Em Portugal, o pós-troika é um dos principais temas do debate político. No Brasil, fala-se do pós-Copa. “Fizemos novos estádios, alguns em lugares que não têm futebol de I e II Divisões, casos de Manaus, Natal ou Brasília. Isso certamente vai redundar no mesmo fenómeno que se deu aí, em Portugal, ou na África do Sul, onde há estádios belíssimos mas ociosos [vazios]”, diz Juca Kfouri.
“A Copa não traz nada de bom. Vai ser um surto de euforia, de complexo de grandiosidade, com muitos turistas, muito dinheiro circulando, mas depois disso o lago se acalma e não acontece nada”, acrescenta, indignado, o escritor amazonense Milton Hatoum.
Manaus volta a ser um bom exemplo desta discussão. A cidade não tem clubes na primeira, nem na segunda, nem na terceira divisões. O principal clube, o Nacional, teve uma média de 2000 espectadores em 2013. O que será feito da grandiosa Arena Amazónia? “O estádio não será elefante branco, porque utilizado ele vai ser”, garante Miguel Capobiango, responsável pela organização em Manaus, com ar de quem já ouviu esta expressão dezenas de vezes. Damos o exemplo dos estádios municipais portugueses construídos para o Euro 2004 e que têm baixas assistências. “Aí as cidades eram pequenas. Nós estamos numa cidade muito populosa, com aproximadamente dois milhões de habitantes. Público nós temos. O problema não é manter o estádio cheio, é mantê-lo rentável.”
O Teatro Amazonas está magnífico, com as pinturas em dia, sem ponta de degradação. É mantido pelo orçamento do governo estadual. Robério Braga diz que 95% do milhão de turistas que passam anualmente pela Amazónia visita a ópera. Há espectáculos regularmente, mas muitos deles são gratuitos ou com preços populares. Ou seja, “o teatro não viveria do turismo, nem dos espectáculos”. No caso do estádio, cuja manutenção custará dois milhões de euros por ano, está a ser feito um estudo para perceber como o rentabilizar. Miguel Capobiango fala em congressos, reuniões de empresas e espectáculos musicais, tudo planos de que já se ouviu falar em Portugal e na África do Sul. Robério Braga completa o raciocínio, com eloquência, apesar da voz rouca. “Se tivermos aqui grandes shows, nós venderemos para o mundo. O mundo virá a Manaus ver os grandes shows, como vinha na época de Eduardo Ribeiro e como vem ver a ópera”, defende o secretário da Cultura, dizendo que há estrangeiros com cadeira cativa para o festival de ópera. Em defesa da sua tese, neste final de tarde em que a chuva visita a Amazónia, Robério Braga diz que há músicos que exigem um cachet menor só para actuar no Teatro Amazonas e que há realizadores que aceitam vir ao festival do cinema porque “querem passar uma semana na floresta, pescar no rio, comer o peixe, tomar o suco”. Abre os braços, arregala os olhos e com uma paixão irreprimível: “A Amazónia povoa o imaginário do planeta e temos de saber de explorar isso.” O secretário de Cultura desfia planos, como se de repente incarnasse o espírito de Eduardo Ribeiro: “Por que não um rock in floresta?”
Resta agora saber qual será a realidade daqui a alguns anos: se os planos optimistas das autoridades de Manaus se o prognóstico de Elias, o trabalhador com cara de índio, que olhou para o relvado da Arena Amazónia e fez uma previsão: “Depois da Copa, isso aqui vai virar museu. Nos primeiros jogos, até acredito que as pessoas venham, por curiosidade, mas depois vai ficar vazio.”