Não, eles não são Charlie

“A religião é tudo o que nos resta. É sagrada para nós. E sim, custa-nos muitíssimo rirmos sobre isso”, diz Mohamed Binakdan.

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Muçulmanos à saída de uma mesquita em Saint-Etienne, no leste de França JEAN-PHILIPPE KSIAZEK/AFP

Um pouco por toda a França, não foram os únicos. Numa escola na Normandia, alguns estudantes muçulmanos gritaram “Alla’hu Akbar” (“Deus é Grande”) nesse mesmo momento. Num liceu de Paris, outro grupo de jovens muçulmanos pediu educadamente para não respeitar o minuto de silêncio, explicando ao seu professor: “colhe-se o que se semeia”

Abdelaali, um estudante de 17 anos que cumpriu o minuto de silêncio, disse que o fez porque estava indignado com as mortes em nome da sua religião que ocorreram no Charlie Hebdo. Mas também explicou que tem nojo de um jornal que usa a imagem do profeta em cartoons provocadores para fazer sátira – e que continuou a fazê-lo na sua primeira edição trágico-cómica após os atentados. “Conheço alguns miúdos que concordam com o ataque”, disse. “Eu não concordo, mas também não posso dizer que apoio o que o Charlie Hebdo está a fazer”.

Entre os cinco milhões de muçulmanos que vivem em França – a maior comunidade da Europa – muitos olham para a tragédia da semana passada de um modo completamente diferente dos seus compatriotas não-muçulmanos. Sentem-se profundamente magoados com o slogan “Eu sou Charlie”, argumentando que não, eles não são Charlie de maneira nenhuma.

Muitos muçulmanos em França – como Abdelaali – abominam a violência que sacudiu o país na semana passada. Mas também estão revoltados com a ideia de que têm que defender o jornal satírico. Ao colocarem aquela publicação num pedestal, os franceses estão mais uma vez a menosprezar a comunidade muçulmana, alimentando um sensação de discriminação que, argumentam eles, ajudou a criar as condições para a radicalização.

Os níveis de desemprego e a pobreza continuam a ser bem mais altos entre os muçulmanos de França do que a média nacional. E são ainda mais altos em subúrbios muçulmanos de Paris como Gennevilliers, um condensado de blocos de apartamentos onde pelo menos um dos atacantes - Chérif Kouachi, 32 anos – viveu. Nas ruas de Gennevilliers, o Charlie Hebdo é um símbolo daquilo que Mohamed Binakdan, 32 anos, descreve como a humilhação diária que os muçulmanos enfrentam em França.

“Se fores a uma discoteca eles não te deixam entrar”, diz Binakdan, um controlador de tráfego em Paris, “Vais a uma festa e eles olham para a tua barba e dizem, ‘Ei, quando é que vais para a Síria juntar-te à jihad?’O Charlie Hebdo também faz parte disto. Aqueles que são mais fortes que nós estão a gozar connosco. Temos muito desemprego, muita pobreza. A religião é tudo o que nos resta. É sagrada para nós. E sim, custa-nos muitíssimo rirmos sobre isso”

Também há fortes divergências sobre a capa do Charlie Hebdo na primeira edição do jornal satírico depois dos ataques. Nela, Maomé empunha um cartaz do agora omnipresente “Eu sou Charlie” por baixo da manchete “Tudo está perdoado”.

“Não fiquei chocado com este cartoon, não é tão obsceno como foram outros”, diz Binakdan. “Até está bastante bem feito, bem mais suave do que já foi publicado antes. Pelo menos não estão a mostrar o profeta a praticar sexo com uma cabra”.

Outros na comunidade muçulmana ficaram menos impressionados. “A minha primeira reacção foi de angústia, porque isto não faz nada para melhorar as coisas”, disse Nasser Lajili, 32 anos, conselheiro municipal e líder de um grupo juvenil em Gennevilliers. “Quero deixar bem claro que condeno absolutamente o ataque ao Charlie Hebdo. Mas penso que a liberdade de expressão tem que parar quando fere a dignidade de outra pessoa. O profeta para nós é sagrado.”

Dois pesos e duas medidas
Alguns insistiram que há dois pesos e duas medidas no que toca à liberdade de expressão em França, mais tendenciosa contra o islão. Citam a proibição do uso da burqa e do véu islâmico, numa lei de 2010 que proíbe “a ocultação do rosto” em público e que, segundo os críticos muçulmanos, visa directamente as mulheres islâmicas. Também relembram o despedimento em 2008 de um cartoonista do Charlie Hebdo - Maurice Sinet, conhecido por Siné – depois de ele se ter recusado a pedir desculpa por uma coluna que alguns consideraram anti-semita. E sublinham, nenhuma acção semelhante foi feita quando os grupos muçulmanos protestaram contra os cartoons de Maomé.

Quase quatro milhões de pessoas em toda a França saíram à rua no passado domingo para defender a liberdade de expressão. Mas, na segunda-feira, por exemplo, um franco-tunisino de 31 anos foi condenado a 10 meses de prisão por ter ameaçado verbalmente um polícia e ter dito que um dos polícias mortos nos ataques de Paris “merceu” morrer. Também na segunda-feira, um procurador francês avançou com um procedimento judicial contra o humorista francês Dieudonné depois deste ter escrito no Facebook “Eu sou Charlie Coulibaly” – uma referência à revista satírica mas também a Amedy Coulibaly, o homem que matou quatro judeus no supermercado kosher de Paris.

Responsáveis da comunidade muçulmana estão a denunciar uma vaga inédita de incidentes anti-islâmicos – pelo menos 54 desde quarta-feira, dia 7 de Janeiro, incluindo tentativas de incendiar mesquitas. E dizem que as tropas francesas que estão nas ruas para garantir a segurança foram repartidas desproporcionalmente, tendo sido dada mais importância à protecção das sinagogas e escolas judaicas do que aos locais de culto muçulmanos.

Nestes últimos dias os franceses têm sido confrontados com estas divisões na sua sociedade de uma forma particularmente dramática. Virginie Artaud, uma professora de artes visuais nos subúrbios de Paris, disse que a sua turma, constituída maioritariamente por alunos muçulmanos, se recusou inicialmente a desenhar cartazes e faixas para serem levadas para a marcha contra o terrorismo.

O mundo, explicaram-lhe os alunos, raramente liga alguma coisa quando crianças palestinianas ou sírias são mortas. Então porquê tanta atenção dada a um jornal satírico que desrespeita abertamente o profeta do islão?

“Deixei-os expressarem-se, todos falaram, mesmo que alguns estivessem a dizer as piores coisas”, contou. “No final, acabaram por decidir desenhar cartazes com mensagens pacíficas.”

Mas Virginie Artaud não tem a certeza se algum dos seus alunos participou na histórica marcha. Ela levou um cartaz que empunhou com orgulho. A mensagem: “Todos Unidos, Todos Charlie – A liberdade não é negociável”.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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