Morreu Kumba Ialá, o grande "perturbador" do passado recente da Guiné-Bissau

Antigo Presidente da República, influente nas Forças Armadas, Kumba anunciou no início do ano o abandono da política activa. O dirigente do barrete vermelho teve papel central em várias perturbações vividas pelo país nos últimos anos.

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Kumba Ialá em foto de 2012 ISSOUF SANOGO/AFP

“O Presidente Kumba Ialá morreu. Morreu por volta da meia-noite, de paragem cardio-respiratória súbita”, informou um comunicado, citado pela Reuters, do Hospital Militar de Bissau, para onde foi transportado. Alfredo Malu, responsável pela segurança pessoal, afirmou à AFP que Kumba “sentiu-se mal na noite de quinta-feira” e morreu às primeiras horas de sexta-feira.

O político do barrete vermelho, sinal da sua importância entre os balantas, a maior etnia do país, com cerca 30% dos mais de 1,6 milhões de guineenses, distinguiu-se como defensor do multipartidarismo, no início dos anos 1990. Mas a imagem que deixa é a de orador de verbo fácil, populista, calculista. O seu nome fica associado a vários dos episódios de instabilidade vividos nos últimos anos pela Guiné-Bissau, o último dos quais o golpe de Estado que, em 2012, derrubou o Governo de Carlos Gomes Júnior, Cadogo.

Uma das frases do livro de pensamentos políticos e filosóficos que lançou em 2003 ajuda a compreender a imprevisibilidade, errância e capacidade de jogar nos bastidores quando não estava ele próprio no palco. “Em política, quando se adormece sossegado, acorda-se com tudo perdido”, escreveu.

Há dois anos, depois de, na primeira volta das eleições presidenciais, ter obtido 23,36% dos votos – contra 48,97% de Cadogo –, Kumba pré-anunciou o golpe de 12 de Abril, que deixou o país nas mãos de governantes não eleitos. “Não há segunda volta, nem terceira volta, porque não reconhecemos o resultado”, disse, dias antes da sublevação militar conduzida pelo chefe das Forças Armadas, o também balanta António Indjai. “Quem se aventurar a fazer campanha assumirá a responsabilidade por tudo o que aconteça”, declarou também.

“Foi claramente instigador e preparador do golpe”, considera Xavier Figueiredo, director do boletim África Monitor, que classifica como “completamente perturbador” o papel de Kumba nos anos mais recentes da Guiné. “Politicamente comandou toda a situação entre o fecho das urnas da primeira volta e o golpe”, afirma Eduardo Costa Dias, investigador de assuntos africanos do ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa).

Filho de camponeses, nascido a 15 de Março de 1953, perto de Bula, no Noroeste da Guiné, Kumba afirma-se politicamente na fase de abertura ao multipartidarismo, no início dos anos 1990. Antigo professor da escola de quadros do partido único, o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), funda o Partido da Renovação Social (PRS), que se tornará na principal alternativa política. Dirigente em ascensão, vai ocupar um espaço de representação política balanta vago desde o fuzilamento, em 1985, de Paulo Correia, vice-presidente do Conselho de Estado.

O “trabalho de sapa” junto de chefes tradicionais balantas, a influência que ganhou sobre os militares da etnia e o apoio de alguns países da região, designadamente Marrocos, explicam, no entender de Costa Dias – que o descreve como “padrinho dos balantas” –, o peso adquirido na política guineense por Kumba Ialá.

Disputa sucessivas eleições presidenciais e chega a conseguir apoios que extravasam em muito a etnia de origem e não se esgotam no partido que criou. Em 2000 chega à Presidência. O seu mandato é marcado por agitação social e remodelações governamentais e acaba interrompido por um golpe militar, em Setembro de 2003.

Perda de peso eleitoral
Kumba não perde, mesmo assim, influência junto de vastos sectores da sociedade guineense. Continua activo. Mas os últimos resultados eleitorais indiciavam uma progressiva perda de influência eleitoral – entre as presidenciais de 2009 e as 2012 perdeu 6% do eleitorado, mas continua a ser ouvido, e seguido, incluindo nos sectores das Forças Armadas que fizeram o último golpe.

Em Dezembro passado, o político que gostava de viver no meio do povo, e há poucos anos se converteu ao islamismo, chegou a anunciar que concorreria de novo ao cargo de Presidente. Mas em Janeiro comunica o abandono da política activa. "Agora que me despeço não da política, mas de disputas e mandatos de cargos eleitorais, realço que não é necessário, que não é preciso, ter cargos para exercer a cidadania activa", disse.

A preocupação com a saúde pode explicar o afastamento. Mas Kumba terá também sido sensível às pressões externas para não condicionar o processo eleitoral e os esforços de normalização política de um país fustigado pela instabilidade e pela violência polícia e associado internacionalmente ao narcotráfico. Manifestou o seu apoio ao candidato independente Nuno Nabiam, em cuja campanha ainda participou nos últimos dias. A sua opção foi um claro sinal de divisão no PRS, que tem como concorrente oficial Abel Incada, e de cuja área política saíram também dois dos outros 13 candidatos.

Com a morte de Kumba, que estudou Teologia e Filosofia em Lisboa, e Direito em Bissau, os balantas “ficam órfãos”, considera o Xavier Figueiredo, jornalista especilizado em política da África lusófona. “Mesmo não gostando todos dele, mesmo com rivalidades, era para eles um líder. Os balantas, incluindo os militares, tinham por ele respeito e veneração, era uma espécie de guia.”

O executivo guineense de transição, instaurado após o golpe de 2012, pediu ao Presidente interino, Serifo Nhamadjo, que decrete três dias de luto nacional. O representante do secretário-geral das Nações Unidas na Guiné-Bissau, Ramos-Horta, apelou “à calma e ao respeito pelo processo eleitoral” e a que “ninguém politize a morte de Kumba Ialá”. O Governo português lamentou a morte e fez “votos” de que “em nada venha a afectar o normal desenrolar do processo eleitoral”. 

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