Moçambique: paz com balas, guerra com palavras
As notícias já não deixam dúvidas: a paz está ameaçada em Moçambique.
As notícias já não deixam dúvidas: a paz está ameaçada em Moçambique. Ao contrário do período em que decorreu a guerra civil, que durou 16 anos, matou milhões de pessoas e provocou milhares de deslocados e refugiados, agora o país não está em guerra. É verdade. Mas também não está em paz. A expressão utilizada quer pela Renamo quer pelo Governo é ‘conflito político militar’. Para além da guerra das balas, em Moçambique sempre existiu, e mantem-se até hoje, a guerra lexical. Se o moçambicano for Frelimo dirá, quando se referir à guerra civil, ‘guerra da destabilização’, explicitando desta forma o apoio e interesse da África do Sul do Apartheid em desestabilizar; se o Moçambicano for da Renamo dirá a ‘guerra pela democracia ou contra os comunistas’, explicitando a escolha inicial da Frelimo pelo lado comunista da guerra fria. Os neutros tentam evitar a expressão ‘guerra civil’ e refugiam-se na expressão ‘guerra dos 16 anos’.
Esta guerra de palavras nota-se também nas expressões utilizadas para falar dos diversos combatentes. ‘Combatente pela liberdade’ quer dizer que é contra o poder colonial e combateu na guerra colonial. ‘Guerrilheiro’ ou ‘bandido armado’ é usado para os homens da Renamo. ‘Comunistas’ é como a Renamo ainda muitas vezes se refere aos combatentes Frelimistas. Estas diferenças são normais em conflito e em pós-conflito, mas não são normais após mais de 20 anos de Acordo de Paz. Esta falta de consenso na linguagem é apenas um sintoma de que a reconciliação não tinha na verdade acontecido. Em 1992 o desespero do povo e a vontade dos dirigentes em terminar com a guerra levou a adoptar a política do ‘não falar sobre o passado’. Os possíveis crimes dos dois lados eram enterrados e o país virava-se para o futuro. Amnistia sem condições e para todos.
No país vizinho, África do Sul, o processo de reconciliação pós-apartheid teve como lema ‘perdoar, mas não esquecer’. A receita levou à constituição da famosa comissão da Verdade e Reconciliação presidida por Desmond Tutu. Esta Comissão composta por vários juízes e psicólogos foi de terra em terra e ouviu culpados e vítimas. As sessões eram públicas e televisionadas. Os camiões e os carros da Comissão chegavam à mais remota aldeia e os processos começavam. Muitas mães e filhas compareciam perante a Comissão e revelavam os desaparecimentos, as mortes, choravam e pediam pelo menos para saber do corpo do filho, marido ou pai, que numa qualquer noite nos anos 80 tinha sido levado por homens quase sempre brancos e quase sempre sem farda, mas que falavam como polícias. O polícia que tinha cometido o crime tinha duas opções: ou vinha perante a Comissão e confessava e pedia perdão ou recusava falar perante a Comissão e passava a ser julgado por crime. As sessões televisionadas foram contextualizadas por um dos jornalistas mais importantes na luta contra o apartheid, o branco Max du Preez. O pormenor de ser branco e afrikander foi importante para a construção da reconciliação. Ele era supostamente dos ‘maus’ mas nunca o foi e agora era ele que nas televisões falava dos crimes, denunciava, investigava, chorava. Muitas vezes os perpetradores levavam a Comissão ao local do crime e a identificar o local onde os corpos estavam enterrados.
Todos os modelos de reconciliação têm problemas e não se podem exportar para outros países. Cada caso é um caso. A dimensão da violência e das mortes em Moçambique não pode ser comparada com a da África do Sul. E a singularidade de transmitir em directo na televisão, mesmo agora, não chegaria a muitos cantos de Moçambique. Mas os dois modelos tiveram, na minha opinião, um efeito antagónico nas pessoas. Durante os seis anos que vivi na África do Sul (depois de 2004), qualquer sul-africano que se referisse ao apartheid fazia-o na primeira pessoa. Tinha sido o drama dele. Da sua família, da sua rua, do seu bairro, do seu grupo. Pelo contrário, em Moçambique sempre encontrei a descrição da guerra na terceira pessoa. No abstracto. Nunca até esta semana um moçambicano me tinha falado da guerra com ‘eu sofri…’. A guerra afectou quase todas as famílias moçambicanas, mas a descrição foi me sempre feita como‘ o país sofreu muito, o povo sofreu muito. Houve muitas mortes’. Na África do Sul, mesmo que na família não tenha existido algum activista ou vítima, o sul-africano contará a desgraça do seu vizinho como a sua desgraça. O moçambicano não falará da mãe, ou do pai, ou irmão que perdeu. Falará das mortes, que houve muitas mortes.
Há meses que os incidentes violentos se reiniciaram. Alegados ataques a dirigentes da Renamo, alegados ataques de homens da RENAMO às forças governamentais... Cada parte culpabiliza a outra. E os media inventaram mais uma expressão para o que se está a passar: ‘recrudescimento da tensão político-militar’. Em qualquer intervenção de dirigentes de Estado, de igrejas ou da sociedade civil apela-se à paz mesmo não havendo guerra. O tal recrudescimento poderia ser substituído pela simples palavra ‘retoma’. Seria mais fácil para uma população em que mais de 50% tem dificuldade com a língua portuguesa e confesso que mesmo eu, para dizer ‘recrudescimento’, tenho de pensar para não perder nenhuma sílaba.
Esta semana, na estrada nacional no centro do país, tal como em 2013, passou a ter de se integrar uma coluna militar para se poder fazer o percurso. Carros e camiões de civis aguardam horas para que possam ser acompanhados por uma coluna militar, medida preventiva e de resposta do Governo a mais ataques da Renamo a carros nesta estrada.
A guerra que não existe actua como na outra guerra: cria medo, paralisa o país, acorda fantasmas… Sábado preparava-me para conduzir da cidade de Quelimane para o Malawi. Já fiz este percurso no passado. Ao longo da semana fui perguntando a alunos e ex-alunos que vivem neste percurso como estava a situação. A resposta era que ‘para já está tudo calmo’, mas existiam rumores de ‘movimentos de homens’. Quando se utiliza esta expressão, normalmente as pessoas referem-se a homens da Renamo, mas também já a usam para falar dos homens das FADM. Como não se verificaram incidentes neste percurso, mantinha-se o plano da viagem. Até que, no dia anterior ao da minha partida, chegou o medo. ‘Não pode viajar, não é seguro nesta situação’. Desabafei com ex-alunos o que me tinha sido dito e, pela primeira vez, durante quase uma década de ensino e trabalho em Moçambique, ouvi falar da guerra na primeira pessoa. Com ar calmo, um dos ex-alunos perguntou-me “A Professora já viveu num país em guerra?” Respondi que não, só em pós-guerra e sempre em missões curtas. E, sem eu perguntar nada, ouvi “Eu vivi coisas que não quero ver mais. Batiam, cortavam um braço, ou matavam, levavam-nos. A Renamo vinha da periferia e atacava os distritos. Fugíamos para onde podíamos.” Perguntei que idade tinha nessa altura. “Eu tinha sete anos, lembro-me porque foi quando já podia correr, já podia fugir”. A conversa continuou comigo a tentar respeitar o que sabia ser uma conversa nada fácil. Fiz poucas perguntas, mas também não eram precisas. O desabafo tinha começado e continuou. Foi como se uma cortina de silêncio tivesse sido rompida. “A professora sabe? Eu já fui a um funeral numa vala comum! Há uma zona na Maganga da Costa (na Província da Zambézia) chamada Zona Verde. Nessa zona colocavam-se corpos lado a lado. Trezentos, quatrocentos… Os que coubessem…”. Eu não disse nada, mas o nome zona verde para tal sítio pareceu-me inapropriado. Continuei calada.
“Na altura, os centros das vilas e das cidades estavam com a Frelimo e o mato com a Renamo. Quando a Renamo atacava vinha buscar bens, levava tudo e depois queimava o que não podia levar. Quem carregava as coisas era muitas vezes quem não tinha conseguido fugir e era levado para as bases da Renamo. Eu vivi no centro de uma vila, mas, se a professora falar com quem viveu no mato, provavelmente contarão o que ali sofreram com as Forças do Governo. Foi mau. Os corpos eram de todos os lados.” Havia alunos mais jovens a ouvir este relato, mas não comentavam e nem perguntavam nada. São os jovens pós-guerra. Nasceram depois de 1992 e da guerra, ouvem falar muito pouco dela, apenas sabem que existiu. Perguntei a esses alunos-pós-guerra ‘e vocês têm histórias?’. Riram-se… ‘Professora, nós nascemos na paz’. Insisti: ‘sim… e lá em casa a família não fala da guerra?’ Primeiro veio um não. Depois uma lá disse ‘bem… sei que uma tia minha foi levada pela Renamo porque não conseguiu fugir e ainda hoje é Renamo”. E afinal havia mais uma ou outra história: ’A minha mãe também conta que incendiaram um posto médico e houve um bombardeamento quando a minha avó tinha acabado de ter uma criança. A minha avó pegou no recém-nascido e fugiu”. O outro aluno, quase que orgulhosamente, dizia ‘não, na minha casa não há histórias de guerra. Viviam aqui na cidade’. Não lhe disse, mas não há família que não tenha histórias de guerra. Foi uma conversa com intervalos de silêncio.
Depois, o mais velho, desta vez a rir, contou mais um episódio da sua memória: ’Numa das vezes que tínhamos fugido e regressávamos a casa (a professora sabe como é… coisa de miúdos…) eu era o mais novo e corri para casa para chegar antes de todos. Quando cheguei à varanda apercebi-me de que estava lá um homem gordo deitado… fiquei com medo e corri de volta. Pensei que eram homens da Renamo. Já não voltámos. O meu pai só teve coragem de regressar no dia seguinte e foi quando soubemos que afinal era só um vizinho embriagado, que não tinha conseguido fugir e ali tinha ficado.’ Riram todos. Uma das mais novas disse que, se estava ali, em parte tinha de agradecer à Renamo porque, se a família não tivesse fugido do mato, ela talvez não tivesse nascido na cidade, mas, sim, na machamba. E todos rimos a imaginá-la de enxada na mão e vestida com uma capulana, no meio do mato, em vez da senhora doutora, que hoje conhecemos, com as suas unhas pintadas, roupas sempre último grito de moda e cabelo impecável. Dizem que rir é a melhor cura para os males. Talvez. Despedi-me e fui-me embora.
E na minha cabeça só ouvia a primeira pergunta: ‘a professora já viveu num país em guerra?’ Talvez o ‘não’ que respondi, afinal, já não seja verdade. Se pensar no ‘recrudescimento da tensão político militar’ e no facto de eu residir grande parte do ano na cidade de Quelimane, no centro de Moçambique, uma das Províncias que a Renamo diz que irá governar à força já a partir de Março, talvez já não possa responder que nunca vivi num país em guerra.
Politóloga e Professora na Universidade Católica de Moçambique