Moçambique: Padres investigados por suspeitas de abusos dirigem orfanato e escola que teve apoio de Portugal

Uma escola do Centro Polivalente Leão Dehon beneficiou de apoios de Portugal através da colocação de professores. Um deles fez uma denúncia por suspeitas de abusos sexuais de menores contra dois padres italianos nessa cidade moçambicana: o director desse centro e o responsável de um orfanato. O caso está a ser investigado por procuradores em Itália e Moçambique, numa altura em que a ONU exige que padres suspeitos de abusos a menores sejam afastados.

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Nelson Garrido

Muitas vezes sentiam-se observados, também por se sentirem diferentes: ele e, como ele, os alunos mais novos na escola dirigida pelo padre Ilario Verri que viviam no orfanato do padre italiano Luciano Cominotti em Gurúè, Moçambique. Moviam-se como sombras sempre vigiadas, que quase ou nunca sorriem. Tinham isso em comum. Isso e a cumplicidade de um terrível segredo.

Este seria, contudo, um novo e diferente dia, capaz de dissipar as nebulosas suspeitas que se avolumavam todas as semanas aos olhos do professor, João Gomes de Oliveira. O médico veterinário português fora colocado pela cooperação portuguesa, como professor numa das duas escolas do Centro Polivalente Leão Dehon em Janeiro de 2010 nesta pequena cidade moçambicana da Zambézia, para onde foi seleccionado entre os vários estagiários enviados esse ano no quadro do programa Inov Mundus, financiado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Foi lá que ouviu a denúncia de abusos sexuais de menores contra os dois padres. E com ela, apresentou uma queixa relacionada com as investigações judiciais que decorrem actualmente – uma em Itália e a outra na procuradoria de Gurúè em Moçambique.

As dezenas de avisos que enviou a organizações internacionais de defesa dos direitos humanos e das crianças, aos seus responsáveis directos no então Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), à Cônsul-Geral de Portugal em Moçambique, Graça Gonçalves Pereira, à embaixada de Moçambique em Portugal e, já depois de três anos, ao ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas, e a que o PÚBLICO teve agora acesso, esbarraram com o silêncio. Da Procuradoria-Geral da República, para onde foi encaminhada uma denúncia que fez na Polícia Judiciária, responderam-lhe que, sendo este um assunto para a polícia e a justiça de Moçambique, nada podiam fazer.

Para ele, quanto mais depressa este caso for denunciado, “melhor”. A história destes miúdos – uns órfãos, outros não – é como um fardo que carrega desde então. “O que acontece às vítimas destes abusos quando crescem é uma pergunta que nunca ninguém me soube responder.”

Depois de ouvir “o relato assustador” de um dos seus alunos (ver entrevista nestas páginas), João Oliveira foi violentamente agredido. Comprovam-no fotografias tiradas na unidade hospitalar onde ficou, antes de sair para sempre de Gurúè. Foi apedrejado na cabeça, quando seguia de moto sem capacete. Não saberá dizer quem o fez. Mas acredita que quem foi sabia que o professor português estava prestes a denunciar os padres Ilario e Cominotti à polícia de Gurúè por abusos sexuais de rapazes.

Dever legal e dever moral

Já em Portugal, esteve internado para uma longa recuperação após a agressão. No dia em que finalmente saiu do hospital, foi à polícia. A queixa foi aceite e encaminhada para o Ministério Público onde foi arquivada por “incompetência territorial”, em Fevereiro de 2011. “A queixa podia ter sido encaminhada de imediato para Moçambique”, diz João Oliveira, que fala em “dever moral” de alertar as autoridades do país.

Do ponto de vista legal, sendo as vítimas moçambicanas e os agentes (do suposto crime cometido em Moçambique) italianos, Portugal não tinha competência para tratar o caso, segundo os juristas ouvidos pelo PÚBLICO.

A denúncia seguiu para a Procuradoria-Geral de Moçambique, sim, mas só dois anos mais tarde, em Julho de 2013, “ao abrigo da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa” – confirmou o PÚBLICO junto da PGR portuguesa, que fala em “processo autónomo”, não esclarece se este está relacionado com a mesma denúncia de João Oliveira arquivada no início de 2011, e não explica por que houve, nesse caso, uma demora de dois anos em fazê-la seguir para Moçambique.

A iniciativa surgiu já depois de a PGR portuguesa ter conhecimento da abertura de uma investigação em Itália, também relacionada com uma denúncia de João Oliveira que foi pelos seus próprios meios a Itália.

“Entrei numa esquadra da polícia e contei o que se passava”, recorda. A denúncia contra os dois italianos – o padre Luciano Cominotti, do orfanato, e o padre Ilario Verri, ainda hoje director da escola – o Centro Polivalente Leão Dehon – deu entrada em Abril de 2012.

Dois percursos, um destino

Ilario Verri é um padre dehoniano, em Moçambique, há muitos anos. Viveu junto à fronteira com o Malawi, nos anos de guerra civil. Depois foi para Maputo de onde partiu para Gurúè com o objectivo de reconstruir o complexo da escola e do centro que já existia desde 1969, e era dirigido pelos religiosos dehonianos presentes em Moçambique desde 1968.

Em 1975, com a independência, o complexo foi nacionalizado, e em 1994 devolvido à província moçambicana da Congregação Dehoniana, uma congregação religiosa da Igreja Católica fundada pelo padre Leão Dehon em 1878 e hoje presente em dezenas de países, incluindo Portugal.

O complexo foi reconstruído e melhorado e passou a chamar-se Centro Polivalente Leão Dehon (em homenagem ao fundador). Engloba a Escola Básica Industrial (uma escola profissional, correspondente à escola secundária, até ao 9.º ano) e o Instituto Médio Agro-Pecuário (que corresponde ao nível do liceu). João Oliveira foi colocado nesta, mas também dava aulas de informática aos alunos mais novos da escola profissional.

Luciano Cominotti é diocesano e terá ido para Gurúè por escolha pessoal depois de ser ordenado padre em Milão ou já em Gurúè (as informações diferem entre o que diz o padre português Luciano e o padre Ornelas em Roma, chefe da Congregação (ver entrevista nestas páginas)).

“Era militar em Itália, decidiu-se pelo sacerdócio, fez o pedido ao bispo de Milão. Ele queria ir para as missões”, contou ao PÚBLICO o padre português Luciano, com responsabilidades na Congregação dos Dehonianos em Portugal e que fez parte de um dos grupos que iniciaram o programa de voluntariado no Centro Polivalente em Gurúè. “À partida, quando se é ordenado padre, fica-se na diocese onde se nasceu. Para ir para outra tem de haver uma razão”, acrescenta.

Luciano Cominotti escolheu Gurúè, onde terá chegado no início da década de 2000. Em 2004, “a sua obra já existia”, diz o padre português sobre o orfanato que foi sendo aumentado, à medida que o padre Cominotti foi adquirindo os terrenos em volta graças a apoios e donativos de “benfeitores italianos”.

Duas imagens do orfanato, disponíveis na Internet, mostram, ao longe, este sumptuoso casarão, que se eleva, por entre as copas das árvores, como um estranho castelo junto a uma pequena cidade onde são visíveis os sinais de abandono, as casas modestas e as estradas de terra batida. Uma dessas imagens vem acompanhada de um enigmático texto, não assinado, e que descreve esta casa como um “orfanato masculino para crianças”, já depois de referir: “Desculpem pela distância da imagem, mas lá no fundo conseguem ver um edifício deslumbrante. Fica no Gurúè, com vista para o lago e possui instalações que no mundo civilizado seriam consideradas de excelentes. Nada ali falta. É mantido por patrocinadores, que visitam as instalações de vez em quando.”

Um padre “dedicado”

Quem conhece o orfanato é o padre Adérito Barbosa, que lá esteve dentro, por ser “amigo do padre Luciano Cominotti”, diz ao PÚBLICO antes de ser confrontado com a denúncia contra o padre italiano e as investigações que correm em Moçambique e em Itália.

“É um padre dedicado, com responsabilidades na diocese, e com a sua obra, como esta casa de apoio às crianças”, continua o padre Adérito Barbosa, coordenador nacional da Família Dehoniana em Portugal e presidente da Associação dos Leigos Voluntários Dehonianos, criada em 1999, vinculada à Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) e responsável pelo envio de professores voluntários para o Centro Polivalente Leão Dehon e outras “obras” dehonianas em Moçambique e noutros países.

É este padre que descreve o orfanato – ou antes “um centro de apoio de crianças necessitadas” – como “um castelo”. “Está fechado, não entra ninguém”, continua. “Está fechado porque é privado. Estão lá os moços dentro. Ele [Luciano Cominotti] põe os miúdos a trabalhar. Uns guardam, outros trabalham. Já lá fui dentro várias vezes – a última das quais há quatro ou cinco anos”, diz – antes de confirmar que o casarão tem guardas armados e que alguns na cidade falam do “terror” que o lugar inspira.

A última vez que esteve em Gurúè foi no ano passado, mas o padre Luciano Cominotti não estava lá. Ele e o padre Ilario vão algumas vezes a Itália pedir dinheiro para a “obra” que um e outro dirigem. A obra do padre Cominotti “é para ajudar as crianças”. O orfanato terá “umas 50 crianças”, acrescenta.

O PÚBLICO tentou várias vezes contactar Cominotti na Diocese, mas não obteve resposta, e o padre Ilario Verri para o Centro Polivalente Leão Dehon, mas o director encontra-se em Itália, há já alguns meses “por motivos pessoais”.

“Os dois padres são indissociáveis”, diz João Oliveira, que acredita que Luciano Cominotti teve, no passado, ligações à Congregação dos Dehonianos, e que existe uma tentativa de os dissociar, para diluir responsabilidades.

“Algures durante este processo o padre Luciano e o orfanato deixaram de ser dos Dehonianos. Esse é um assunto a esclarecer. Eles sabem o que se passa e obviamente haverá dentro da ordem quem se oponha e tenha provocado essa separação conveniente, aparente e exterior”, considera.

O orfanato está mais exposto às suspeitas de abusos de crianças do que a escola, que também não escapa a “frequentes rumores”, como contou ao PÚBLICO outro português que viveu em Gurúè, e recebe visitantes nas suas casas destinadas a voluntários num antigo seminário transformado em pensão, e que é descrita no site da escola (com fotografias dos quartos e da escola) como “uma belíssima mansão não longe do centro”.

Os padres dehonianos contactados em Lisboa e Roma pelo PÚBLICO desmentem a ligação, insistindo que Luciano Cominotti sempre foi diocesano e desempenha cargos de responsabilidade na Diocese de Gurúè – na página da Diocese na Internet aparece como administrador. Dizem nunca ter ouvido falar da denúncia do português João Oliveira ou de uma qualquer outra denúncia relativa ao padre Ilario.

“Estou a ouvir isso pela primeira vez”, garante o padre Adérito Barbosa. “Tenho as melhores referências dele e do trabalho dele”, afirma o padre português Luciano, também contactado. E sobre esse antigo seminário, hoje “uma hospedaria” pertencente ao Centro Polivalente, diz que “foi requalificado, aumentado e melhorado para receber turistas e visitantes, e pessoas ligadas a empresas e ao Governo”.

Para João Oliveira, a ligação entre os dois padres é relevante para mostrar que uma escola que beneficiou do apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, através ca colocação de professores como ele, serviu de “fachada” para algo que envolve as duas instituições – orfanato e o Centro Polivalente Leão Dehon. E que apesar das suas denúncias – e das investigações abertas em Itália e Moçambique – os mesmos padres, alvo das suspeitas, continuam como responsáveis das duas instituições.

João Oliveira defende que se “justifica em pleno a necessidade do envolvimento das Nações Unidas neste crime global” e acolhe com entusiasmo a decisão do Comité da ONU para os Direitos das Crianças – no início de Fevereiro – de exigir à Santa Sé “a retirada de funções” de padres pedófilos ou suspeitos de o serem e que os entreguem às autoridades judiciais para serem investigados (num pronunciamento que não é vinculativo).

Exigências da ONU

Num documento sem precedentes divulgado há um mês, e que o Vaticano criticou por “deturpar os factos”, os peritos deste comité da ONU notaram que 400 sacerdotes foram expulsos da Igreja Católica em 2011 e 2012, por denúncias de pedofilia, durante o pontificado de Bento XVI. Mas numa análise aprofundada de um vasto dossier de queixas recebidas, nos últimos anos, contra padres da Igreja Católica em vários países, concluíram que os abusos foram “sistemáticos” e que a verdade só será conhecida quando as vítimas foram ouvidas.

João Oliveira revê-se plenamente nessas conclusões e diz que é urgente que as vítimas sejam protegidas para poderem ser ouvidas. Só quando isso acontecer, haverá provas, reforça.

“Depois da agressão que eu sofri, as vítimas nunca falarão com os padres por perto. Foi uma mensagem violenta e eficaz que silencia muitas testemunhas”, escreveu numa das muitas cartas que enviou desde então para desbloquear a situação.

O médico veterinário, colocado como professor em Moçambique, acredita que este país está a “converter-se num exemplo internacional da passividade da Igreja Católica perante o crime da pedofilia". Quando foi agredido, o seu estatuto de funcionário em serviço para a cooperação portuguesa previa que um alerta fosse accionado (para a Embaixada de Portugal em Moçambique) pelos padres, por serem eles os responsáveis da escola onde fora colocado como estagiário do Inov Mundus, com um seguro de saúde que lhe daria direito a um repatriamento de urgência.

Os padres não accionaram o alerta e a Embaixada portuguesa só foi avisada dias depois pela Embaixada da Dinamarca, que soube da situação, através de uma funcionária estrangeira a trabalhar em Gurúè. Os amigos de João Oliveira – de várias nacionalidades – revezaram-se para que nunca ficasse sozinho numa sala daquilo que em Gurúè, antiga Vila Junqueiro, mais se assemelha a um hospital.

“O repatriamento de emergência está bem claro no seguro oferecido no contrato. Assim que fiquei melhor, alertei o IPAD, exigi que me levassem até Maputo, fui para a Embaixada de Portugal, depois Joanesburgo, e por fim Lisboa”, conta João Oliveira.

Poucas ou nenhumas respostas

Já em Portugal, quase não recebeu respostas às cartas que enviou e a que o PÚBLICO teve agora acesso, incluindo ao então ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas a quem escreveu em Abril de 2013 a acusar a cooperação portuguesa de permanecer “criminalmente silenciosa e passiva neste assunto” e alertando para o facto de “o MNE poder estar a patrocinar a pedofilia em Moçambique”.

Dois anos antes, escrevera “várias vezes” à então Cônsul-Geral de Portugal em Moçambique, Graça Gonçalves Pereira, “a pedir ajuda para estas crianças” e informações sobre instituições locais para uma possível “intervenção”. Ao PÚBLICO, Graça Gonçalves Pereira disse receber “centenas de queixas de portugueses” quando assumiu funções de Cônsul-Geral em Maputo, até 2012, e não se lembrar dessa correspondência em particular.

E ainda quando estava em Gurúè, várias vezes alertou os responsáveis do IPAD (entretanto extinto e fundido com o Instituto Camões). “Diziam que lamentavam muito o que tinha acontecido. Não demorou muito tempo até eu perceber que não iam fazer nada”, diz João Oliveira.

“Foi um assunto que a nossa direcção teve conhecimento”, disse ao PÚBLICO Fernanda Catarino, uma das responsáveis do Inov Mundus, e que frequentemente tinha contacto com o professor. Foi com ela e com a sua superior que João Oliveira desde muito cedo partilhou as suas suspeitas.

A esse nível, nada podia ser feito, diz Fernanda Catarino, agora funcionária no Camões. “O assunto foi submetido à consideração superior, até à direcção.” Era então presidente do IPAD Augusto Manuel Correia, que não respondeu às perguntas enviadas pelo PÚBLICO.

Ao PÚBLICO, também o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua (que absorveu o extinto IPD em 2012) não esclareceu quantos professores portugueses colocou no Centro Polivalente Leão Dehon, e entre que datas, se deu outro tipo de apoio e quais os critérios escolhidos para seleccionar o Centro Polivalente e a sua escola para figurarem na lista das entidades a beneficiar deste apoio da cooperação portuguesa.

Já depois de sair de Gurúè, João Oliveira alertou também organizações de direitos humanos. A Human Rights Watch remeteu para a Amnistia Internacional, que remeteu para a Unicef, que não respondeu.

A carta que, em Abril de 2013, o cooperante português escreveu à procuradora-adjunta do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de novo a insistir para que o caso não ficasse esquecido, terminava assim: “Tenho que lhe pedir desculpa pela minha obstinação, mas eu conheço alguns destes miúdos. Têm nome e pouco mais que isso. Não têm nem pai ou mãe ou quem queira saber deles. (…). A senhora procuradora pode arquivar estas vidas: eu não.”

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