Mensalão: um julgamento inédito na democracia brasileira
Começa hoje em Brasília e será um julgamento de bater recordes, o mais extenso do Supremo Tribunal Federal (STF): 90 horas divididas em mais de 15 sessões, 50 mil páginas de processo, acima de 300 volumes, 38 réus, 600 testemunhas.
É o processo conhecido como Mensalão e remonta ao primeiro Governo de Lula da Silva, em 2005, quando foi denunciado um complexo esquema de corrupção dentro da máquina do PT, incluindo pagamentos a deputados. A investigação do Ministério Público aponta para quase cem acusações: corrupção activa, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, peculato, evasão de divisas.
Segundo a denúncia, o ex-ministro da Casa Civil de Lula, José Dirceu, era o "chefe da sofisticada organização criminosa" (ver caixa). E como os 38 réus serão julgados um a um, o processo deverá começar com ele. Acusado de corrupção activa e formação de quadrilha, Dirceu enfrenta uma pena de dois a 20 anos de prisão se for condenado.
Os réus seguintes deverão ser os restantes membros do núcleo político: Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT; Sílvio Pereira, ex-secretário-geral do PT; José Genoino, ex-presidente do PT.
O acusado de maior número de crimes é Marcos Valério, o chamado operador do Mensalão: 11 acusações de corrupção activa, seis por peculato, 72 por lavagem de dinheiro, 53 por formação de quadrilha e evasão de divisas. Pode ser condenado a uma pena de até 66 anos.
O STF tem 11 juízes, que no Brasil são chamados de ministros. O julgamento começa com o ministro-relator e a sustentação oral do procurador-geral. Depois falam os advogados dos réus, entre os quais estão alguns dos mais célebres profissionais do país, incluindo dois ex-ministros da Justiça e um ex-procurador-geral. Calcula-se que os honorários dos mais famosos passem um milhão de reais. Em seguida, o relator diz se condena ou absolve e os colegas votam. Se condenarem, discutem a pena a atribuir. Isto será repetido 38 vezes.
"Nunca antes um julgamento do Supremo teve um impacto tão grande no sistema político", diz ao PÚBLICO o jurista Diego Werneck, um dos investigadores da Fundação Getúlio Vargas que vai acompanhar o caso.
Por exemplo, no julgamento por corrupção do ex-presidente Collor de Mello, em 1994 (que terminou com absolvição por falta de provas), o Parlamento já tinha decidido o impeachment antes, portanto o que estava em jogo era muito menor, compara Werneck.
Para a históriaE porque é que o impacto do Mensalão é tão grande? "Pelo número de envolvidos e porque envolve factos que podem estar ligados ao funcionamento do sistema eleitoral e político do Brasil. A narrativa do Ministério Público tem actores políticos, bancos privados, um banco público, empresários, e junta todos eles com o sistema eleitoral. Então, se a gente concordar com essa narrativa, é um juízo sobre o funcionamento da democracia no Brasil."
Este perito ressalva que este julgamento "representa um tipo de função muito atípica do STF, que dificilmente se vai repetir". Isto porque há réus parlamentares, que só podem ser julgados pelo Supremo, e como "o Supremo entendeu que eles poderiam estar envolvidos em situações criminosas interligadas", decidiu julgar estas 38 pessoas de forma global, quando a sua função mais comum é ser tribunal de recurso. É difícil encontrar um caso comparável noutros países. "No Brasil, o Supremo tem competências que noutros países são de tribunais de primeira instância."
O peso político para os 11 juízes é sem precedentes, mas esse é justamente o desafio, diz este jurista. "Avaliar provas não tem nada de político. O Supremo precisa de explicar à sociedade que o resultado não será a única coisa que importa, que um determinado réu pode ser solto com boas razões e preso com boas razões. É, aliás, um desafio para a sociedade toda, saber separar aquilo de que se gostaria do que pode ser provado. As pessoas precisam de reconhecer que há razões técnicas e que será um equívoco ver o voto de um ministro como político, seja pela absolvição ou condenação."
O Supremo já decidiu sob pressão noutros momentos, lembra Werneck. Por outro lado são homens do seu tempo. O que vai contar, em suma, "é a capacidade de eles mostrarem como apreciaram as provas", resume. "Conseguir mostrar o que as provas mostram. Isso é que vai ser decisivo para a democracia brasileira."
E não arrisca previsões. "Acho impossível. São muitas dezenas de volumes, o Supremo vai precisar de muito tempo para ouvir os advogados. Calcula-se que os primeiros dez dias sejam só para isso."
Lula já chamou ao processo "uma farsa". O homem que era procurador na altura da denúncia, António de Sousa, disse há dias ao Globo que "muitas coisas eram provas, não apenas indícios", e que a sua expectativa é "que haja elementos para condenar".
Já o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu dar a sua opinião num depoimento para o site Observador Político: "Claro que o juiz julga pela lei, mas a lei não é algo que não tenha relação com a vida. A existência de opiniões da sociedade faz parte de um processo eminentemente político."
José Dirceu, a eminência pardaApesar de ter caído do Governo por causa do Mensalão, José Dirceu manteve a imagem de quem manobrava nos bastidores. Mas "a maioria das coisas que se escreve sob a sua influência é mais lenda do que realidade", diz ao PÚBLICO Ilimar Franco, jornalista veterano do Globo em Brasília. "Ele trabalha na sua empresa de consultoria, é visto como um ex-político lutando para evitar sua condenação, respeitado entre os políticos, principalmente os petistas." No entanto, "sua influência no executivo e no legislativo é pequena".
Famoso ex-preso político na época da ditadura, Dirceu tem histórias como ter feito plásticas para não ser reconhecido ao voltar do exílio. É fundador do PT e geralmente visto como um poder na sombra.
Num documento de 11 páginas divulgado esta semana, ele nega a existência do Mensalão: "A defesa de José Dirceu entregue ao Supremo desmonta ponto a ponto as acusações feitas há sete anos. Os advogados mostram que nunca houve o chamado mensalão. O que de fato existiu foi a prática de "caixa dois" [verbas "por baixo da mesa", não contabilizadas] para cumprimento de acordo eleitoral, conduta irregular prontamente assumida por Delúbio Soares e o PT sobre a relação com partidos aliados em 2004."
Em entrevista ao Globo, o advogado de Dirceu, José Lima, disse que "dezenas de testemunhas afirmam categoricamente" que o ex-ministro de Lula "não tinha conhecimento" dos pagamentos de 55 milhões de reais a 18 parlamentares da base aliada, que "não existiu a propalada compra de votos" e que "não é verdade que está comprovada a utilização de dinheiro público".