Médico que tratou espanhola com ébola denuncia falhas e coloca-se em isolamento
O mundo “falhou miseravelmente” na sua resposta à epidemia que já matou quase 3900 pessoas na África Ocidental, diz o presidente do Banco Mundial. A crise vai ficar muito pior, avisa.
“As mangas estavam curtas”, conta Parra, de 41 anos, explicando só ter mudado para o equipamento de maior nível de segurança disponível no hospital (uniforme completo, com máscara, óculos, dois pares de luvas e cobertura para os sapatos) às 17h, altura em que é informado da possibilidade de se tratar de um diagnóstico positivo de ébola, nove horas depois de ter começado a atender Romero, cujo estado não parava de piorar. O médico teve de tirar e voltar a colocar o fato de protecção pelo menos 13 vezes, considerando, por isso, que esteve em risco de contágio.
À chegada de Romero, que avisou ter tido contacto com o vírus, é o próprio Parra que activa o protocolo para estes casos e a envia para um quarto de isolamento – isto, depois de a auxiliar ter sido transportada numa ambulância convencional.
O condutor da ambulância e o maqueiro que levaram a enfermeira avisaram o Departamento de Saúde de Madrid que a paciente dizia ter ébola, mas este aviso não foi levado a sério porque um médico de uma unidade de Atendimento Domiciliário que a vira meia hora antes a encontrou com 37,2 graus de temperatura, em vez dos 38,6 que fazem soar o alarme e descartou essa possibilidade.
Assim, das duas viaturas disponíveis, a empresa de ambulâncias Safe Eurolimp enviou o modelo convencional (sem equipamento para doentes contagiosos). O maqueiro que a recolheu fê-lo com máscara, luvas e uma bata de papel. A ambulância, que não foi desinfectada, ainda recolheu outros sete pacientes.
Durante todo o dia de segunda-feira, em casa e no hospital, Romero (que entretanto já teve o seu cão abatido) nunca parou de dizer que tinha ébola e de alertar o pessoal médico para o perigo de contágio. Mas o conselheiro de Saúde da Comunidade de Madrid, Francisco Javier Rodríguez, responsabiliza a auxiliar, acusando-o de ter ocultado ao médico e às pessoas que a assistiram antes disso que tratara dois sacerdotes repatriados de África (um morreu em Agosto; outro em Setembro).
Protecções insuficientes
Já no Hospital de Alcorcón, o problema, para além dos equipamentos de protecção disponíveis serem pequenos, foi o tempo que demorou até que os resultados das análises chegassem ao médico, que acabou por saber destes através pelos jornais.
Durante as primeiras horas, até os sintomas se agudizarem e Parra pedir para extrair uma amostra de sangue, o médico e os enfermeiros que entraram no quarto fizeram-no com “fato de primeiro nível”, que inclui uma bata impermeável, dois pares de luvas, uma touca e uma máscara cirúrgica. Mas às 11h já o médico avisara os seus superiores para “o estado de deterioração da paciente” e defendera “a necessidade de uma actuação imediata”.
Entre as ordens do médico para que os envolvidos no tratamento a Romero mudassem para equipamentos de maior segurança, o próprio continua sem o fazer, descreve, por estar sozinho a coordenar o caso. “Durante este tempo, a paciente começa a piorar, com tendência para a hipotensão, náuseas e mal-estar, obrigando a medidas de apoio”, descreve, num texto a que os jornais espanhóis tiveram acesso.
Saber pelos jornais
Ainda que seja o máximo responsável pelo caso, não é o primeiro a saber que a análise inicial deu positivo para o vírus. “Apesar de a primeira amostra ser positiva, eu não tenho conhecimento directo disso, a não ser pelos jornais”, denuncia.
Considerando “o alto risco de complicações”, às 18h, Parra pede que a enfermeira seja transferida para o Hospital Carlos III, que é o centro de referência em Madrid para estes casos e foi onde Romero contraiu o vírus. Uma segunda análise, uma hora depois, confirma que a paciente está infectada com ébola e o médico volta a saber disso “primeiro pelos media e não pela autoridade competente” (o El Mundo escreve que soube uma hora antes de Parra). Só cinco horas mais tarde, depois da meia-noite, chega a ambulância que levaria Romero para o Carlos III.
Durante a tarde de quarta-feira, Parra pediu para ser internado no mesmo hospital. Esta quinta-feira, há seis pessoas em isolamento no Hospital Carlos III.
Resposta desleixada
Numa altura em que o vírus já matou pelo menos 3879 pessoas e infectou mais de 8000 – e quando, para além do primeiro contágio fora de África, acaba de morrer em Dallas o liberiano que tinha viajado infectado para os Estados Unidos, Eric Duncan, de 42 anos, contagiado na Libéria –, o presidente do Banco Mundial, Jim Kim, diz que o mundo “falhou miseravelmente” na resposta à epidemia e que a comunidade global ainda “não se está a mexer suficientemente depressa”.
“Deveríamos ter feito tantas coisas. Deveríamos ter erguido sistemas de assistência médica. Deveríamos ter começado a monitorizar quando os primeiros casos foram relatados. Devia ter havido uma resposta organizada”, diz Kim, ouvido pelo diário The Guardian antes da reunião anual da organização que dirige, este fim-de-semana, em Washington.
Kim diz que quer mais 20 mil milhões de dólares (15.600 milhões de euros) dos governos ocidentais para um novo fundo de saúde global que possa reagir instantaneamente às emergências. O plano, explica, envolve criar grandes centros de tratamento nos EUA e no Reino Unido e melhorar os serviços nas comunidades locais. “Seria bom tratar as pessoas perto de casa. Mas isso não é possível sem pessoal. Temos de criar as capacidades para que estes casos sejam identificados mais depressa.”
A ONG global Oxfam, com sede no Reino Unido, tem criticado o Banco Mundial por não investir mais em cuidados médicos e por promover as privatizações destes serviços. “Isto mudou em termos de retórica com Jim Kim. Esperamos que o resultado seja o banco emprestar mais dinheiro e fornecer mais aconselhamento. O ébola deve acelerar esta mudança”, diz Nicolas Mombrial, chefe da Oxfam em Washington, citado pelo jornal britânico.
Kim afirma que muitos países, como o Ruanda, com 55 mil funcionários na área da saúde, usaram bem os fundos disponíveis; outros nem tanto. Mas não poupa nas críticas às instituições e governos ocidentais. “Isto foi uma resposta desleixada, mesmo para um vírus lento como o ébola. Se aconteceu assim significa que não estamos nem de perto nem de longe preparados para um vírus que se mova mais depressa.” Quanto à crise actual, Kim vai pedir mais dinheiro, mas diz que já passou demasiado tempo. “É tarde. É realmente tarde.”