Luaty pensa que uma “vitória já aconteceu”, mas promete que a luta continua
Activista terminou greve de fome depois de ter conseguido chamar a atenção para os presos políticos em Angola. Rafael Marques diz que José Eduardo dos Santos se meteu com os “miúdos errados”.
Luaty Beirão pensa que, com a sua greve de fome, a “máscara já caiu” ao regime angolano e “a vitória já aconteceu”. O activista, que interrompeu, esta terça-feira, o protesto que manteve durante 36 dias, promete “não desistir de lutar” por uma “verdadeira transformação social” de Angola.
Apesar de não ter conseguido que ele e os outros 14 detidos em Junho, que estão na prisão de São Paulo, acusados de prepararem uma rebelião e um atentado contra o Presidente, José Eduardo dos Santos, aguardassem o julgamento em liberdade, o rapper e activista considera que a mobilização à volta do caso mostra que nas últimas semanas “muita coisa mudou”, embora haja outras que “lamentavelmente se repetem”: “mamãs espancadas e vigílias à porta de igrejas reprimidas”.
“Só posso esperar que os responsáveis do nosso país também parem a sua greve humanitária e de justiça. De todos os modos, a máscara já caiu. A vitória já aconteceu”, diz Luaty na carta em que anunciou o fim da greve de fome, dirigida aos que com ele foram detidos e entregue pela família ao site noticioso Rede Angola.
A mulher do activista luso-angolano, Mónica Almeida, disse ao PÚBLICO que os familiares estão “bastante aliviados” e que “o importante agora é a recuperação” de Luaty Beirão, que perdeu mais de 20 quilos, e a preparação do julgamento dos jovens activistas que tem início marcado para dia 16 de Novembro.
A notícia do fim da greve de fome foi tomada na segunda-feira e não surpreendeu o advogado Luís Nascimento, que esteve com Luaty Beirão ao princípio da noite e saiu da clínica onde está internado com a certeza de que a decisão poderia ser anunciada a qualquer momento. “Disse-me que seria a hora de tomar uma posição.”
“Percebeu que o objectivo dele estava alcançado e que agora tem de se preparar para o próximo passo”, disse a mulher. “Compreendeu que o motivo da sua luta de certo modo tinha sido cumprido. Aquelas críticas que eram feitas pelos activistas começaram a ser vistas como efectivamente fundadas”, afirma o advogado.
O escritor angolano José Eduardo Agualusa também acha que “aquilo que mais importava, que era chamar a atenção para os presos políticos, foi conseguido completamente”. “Gerou-se um movimento de solidariedade dentro e fora do país, com uma dimensão que ninguém estava à espera. Aí ele triunfou completamente”, disse à Lusa.
As razões
A “pressão forte da família” para que interrompesse a greve iniciada a 21 de Setembro, para evitar que ocorresse alguma complicação que poderia dar-se a qualquer momento, pesou na decisão. Tal como os apelos, incluindo dos companheiros de detenção, abaixo-assinados, vigílias e manifestações de solidariedade, em Angola e no estrangeiro – disse Luís Nascimento, da equipa de defensores de 12 dos 15 detidos. Há ainda duas acusadas em liberdade.
Uma das muitas vozes que sensibilizaram Luaty foi a de Luís Bernardino, médico e professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, disse o advogado. Numa carta “aberta a assinaturas”, divulgada pelo semanário angolano Novo Jornal, escreveu: “Ao prolongares esse comportamento até às últimas consequências, estás a enfraquecer o campo dos que pensam como tu, estás a deixar sem resposta as acusações que te fizeram, estás, em resumo, a desistir da tua luta, ainda que de uma forma heróica.”
Na sua “carta aos companheiros”, Luaty, que nos próximos dias deve continuar na clínica, fala da “muita coisa” que mudou desde que entrou em greve de fome. “Vi pessoas da nossa sociedade, que lutaram pelo nosso país e viveram o que estamos a viver, a saírem da sombra e a comprometerem-se em nossa defesa, para que a História não se repita. Vi pessoas de várias partes do mundo, organizações de cariz civil, personalidades, desconhecidos com experiências de luta na primeira pessoa que, sozinhos ou em grupo, se aglomeraram no pedido da nossa libertação. Já o sentíamos antes, mas não com esta dimensão.”
O advogado Luís Nascimento afirmou ao PÚBLICO que Luaty, 33 anos, filho de um destacado dirigente do regime, João Beirão, já falecido, encarou um texto que fez manchete no Jornal de Angola de segunda-feira como um “reconhecimento efectivo” de que uma decisão judicial não devia merecer a interferência do Presidente e que isso também contribuiu para a sua decisão.
Comentando o caso dos activistas, em Julho, o chefe de Estado, numa declaração que foi vista como destinada a condicionar a actuação do poder judicial, disse que os angolanos não deviam voltar a ser submetidos a situações como a de 27 de Maio de 1977, quando milhares de militantes do partido governamental, MPLA, foram perseguidos, torturados ou mortos, por alegadamente tentarem um golpe de Estado.
Agora, no texto do Jornal de Angola, intitulado “Poder judicial é soberano”, são publicadas declarações do número dois do MPLA em Luanda, Jesuíno Silva,em que Luís Nascimento – e também Luaty, ao que diz – viu um sinal. “Em Angola, tal como em Portugal ou em qualquer outro país europeu, o Presidente da República não manda nos tribunais. Isso seria violar a Constituição e os princípios republicanos”, disse o dirigente do partido.
“Galeria dos fascistas”
O fim da greve de fome encerra uma etapa, mas o caso está longe do fim. Os tribunais superiores angolanos têm em mãos dois pedidos de libertação ao abrigo da figura do Habeas corpus, em que se alega excesso de prisão preventiva dos detidos a 20 de Junho e nos dias seguintes. Mónica Almeida não quer criar falsas esperanças. “Não temos nenhuma expectativa, tentamos não as criar. Prefiro esperar e ver o que vai acontecer.”
Luís Nascimento acredita que poderá haver uma decisão antes do início do julgamento. “Tenho esperança, pelo menos o Tribunal Supremo tem todas a condições para se pronunciar sobre o excesso de prisão preventiva. Acho que com a liberdade que recebeu vai poder exercer as suas competências”, diz, aludindo ao texto de segunda-feira do Jornal de Angola.
Rafael Marques, um dos principais críticos do regime, acha que a questão é, em todo o caso, política e que a situação em que estão Luaty e os companheiros – a maior parte levados pela polícia quando estavam a discutir obras como o livro From Dictatorship to Democracy, do norte-americano Gene Sharp, só confirma a “política anacrónica” de José Eduardo dos Santos.
“Meteu-se com os miúdos errados e são esses miúdos que acabaram por enterrar a sua imagem.” “Cabe ao Presidente, se lhe resta algum pingo de vergonha, ordenar a sua libertação. A sua imagem é a de alguém que prende miúdos por estarem a ler livros. Vamos comemorar 40 anos de independência com o Presidente a mandar prender pessoas que estão a ler livros. Ficará na galeria dos líderes fascistas”, disse ao PÚBLICO.
No processo de Luaty e dos outros 16 detidos a acusação é de “actos preparatórios” de rebelião e atentado contra o Presidente, não de tentativa concreta de o fazerem, o que faz diferença. A pena em que incorrem é de até três anos de prisão ou multa durante 360 dias, explicou o advogado Luís Nascimento. Seria diferente, caso a acusação formal fosse de rebelião e atentado, em que a pena nunca seria inferior a 12 anos de cadeia.
Ainda que não veja sequer razão para a acusação por “actos preparatórios” daqueles crimes, o advogado não exclui cenários, nem diminui os riscos de condenação pesada. Para o fazer lembra o caso de José Marcos Mavungo, condenado em Setembro em Cabinda a seis anos de prisão, por incitamento à rebelião, “apesar de não ter sido apresentado um único facto que o justificasse”.