Kailash Satyarthi: O activista que tirou 80 mil crianças do trabalho forçado
Pode ter metade da fama de Malala Yousafzai, com quem dividiu o Nobel da Paz. Mas há 30 anos que a associação que Kailash Satyarthi criou tenta levar as crianças para a escola.
Eram obrigadas a trabalhar mais de 14 horas por dia, com o mínimo de roupas, debaixo de um calor agressivo, a respirar gases que os deixavam de olhos a chorar e mãos a arder. Como foram ali parar? Alguns pelas mãos dos próprios pais. A Bachpan Bachao Andolan (BBA, Movimento para Salvar a Infância) ajudou a resgatá-las. Quatro dias antes, outras 13 crianças tinham também sido salvas de trabalho escravo em oficinas da capital.
Histórias destas podem multiplicar-se. São a rotina de associações como a BBA. E é para acabar com elas que o seu fundador, Kailash Satyarthi, tem lutado. Activista praticamente desde a infância contra o trabalho infantil – aos 11 anos andava a recolher livros escolares usados para os distribuir por crianças que não tinham dinheiro para ir à escola –, foi escolhido para partilhar o prémio Nobel da Paz com a jovem paquistanesa Malala Yousafzai.
Kailash Satyarthi, de 60 anos, nasceu e cresceu em Vidisha, no estado de Madhya Pradesh (no centro do país), numa família que, como o próprio descreveu várias vezes, “não era rica nem era pobre”. Tirou o curso de engenharia electrotécnica, como o pai queria. “Mas percebi que a engenharia não era para mim e segui esta causa”.
Satyarthi estava há alguns anos na lista do Comité Norueguês do Nobel e já ganhou vários prémios internacionais relacionados com os direitos humanos. Ainda assim, a sua fama não se aproxima da de Malala. E isto no seu próprio país: um editor do Times of India confessava num blogue daquele jornal que até surgir a notícia do Nobel nunca tinha ouvido falar dele, e o mesmo se passava com vários amigos seus. Mas há mais de 30 anos que a BBA está no terreno, com cera de 80 mil voluntários espalhados pelo mundo, tentando investigar as áreas onde a acção é mais urgente. “É uma vergonha para qualquer ser humano se uma criança estiver a fazer trabalho escravo em qualquer parte do mundo”, afirmou ontem o laureado numa conferência de imprensa em Nova Deli. “Sinto-me muito orgulhoso por ser indiano, por ter conseguido travar esta luta na Índia ao longo de mais de 30 anos”.
Segundo a BBA, praticamente 80 mil crianças já foram resgatadas, vítimas de maus tratos, tráfico ou exploração laboral – a maioria eram de facto escravas, usadas para pagar as dívidas dos pais (uma prática proibida por uma lei de 1975, que dificilmente é aplicada por falta de vigilância). O número é respeitável, mas ainda há muito por fazer. Segundo as estimativas de algumas organizações humanitárias, 135 mil crianças indianas desapareceram só no ano passado; os dados oficiais apontam para um número muitíssimo inferior: 26 mil.
Numa entrevista que deu ao PÚBLICO em Setembro de 2005, o activista referia que na Índia havia então “60 milhões de crianças a trabalhar a tempo inteiro. Destas, 10 milhões fazem trabalho escravo. E o tráfico interno é generalizado. Há crianças em todas as cidades traficadas para trabalho doméstico, restaurantes, pequena indústria, prostituição”.
Está longe de ser um problema exclusivo do país, alertava Satyarthi, que é também o líder mundial da Marcha Global Contra o Trabalho Infantil e da Campanha Global pela Educação: “A África, a Ásia e a América Latina têm um problema sério de trabalho infantil”, que existe igualmente em vários países europeus. Na altura apontou Portugal e Espanha como portas de entrada para o tráfico de crianças. Segundo os dados avançados pelo Comité, haverá 168 milhões de crianças trabalhadoras no mundo inteiro.
Satyarthi tem praticamente um roteiro sobre o que se deve fazer, pelo menos na Índia. Uma das respostas, que deixou numa entrevista ao Times of India, em Junho, não está nas mãos do Governo, nem das autoridades locais, nem da polícia (apesar de defender fortemente que são precisas melhores leis e mais atenção por parte das autoridades). Está em quem entra numa loja ou restaurante e deve boicotar produtos ou serviços que de alguma forma sejam resultado de trabalho infantil.
Esta luta está de mãos dadas com a educação. Estima-se que sete milhões de crianças indianas abaixo dos 14 anos não possam ir à escola e que cerca de 50% a abandone antes do fim da escolaridade obrigatória (até aos 14 anos). O problema é mais grave com as raparigas. De acordo com a UNICEF, há 90 milhões de mulheres iletradas.
A antropóloga portuguesa Rosa Maria Perez conhece bem a realidade indiana. No ano passado desenvolveu um projecto em bairros de lata de Bangalore (a terceira cidade do país e considerada o seu Silicon Valey) e Ahmedabad, a maior cidade do Gujarat, um dos maiores centros industriais da Índia. Não estava à espera do que encontrou: “Uma iliteracia absoluta em jovens de 11, 12 anos”. “Os pais não podem prescindir da mão-de-obra infantil, sobretudo entre as castas de baixo estatuto, devido a grandes carências económicas. E as raparigas são mais atingidas do que os rapazes”. A escolaridade pode ser obrigatória, mas “não há vigilância administrativa ou política” para garantir que é cumprida.
Este Nobel vem chamar a atenção para a importância da educação. E esse era já um tema central para Mahatma Gandhi, o líder da independência indiana (que nunca recebeu o prémio). “Todo o seu projecto de reestruturação social, e mesmo económico, estava centrado na educação”, refere Rosa Maria Perez. Gandhi acreditava que esta seria a ferramenta com a qual se corrigiria as desigualdades da sociedade indiana.
Sessenta anos depois, não se pode dizer que a realidade do país seja a mesma, mas ainda há muitas razões para manter os activistas ocupados. Têm agora uma “ferramenta poderosa”, dizia Satyarthi na entrevista ao Times. As redes sociais. “Com um clique podemos fazer imenso barulho, que é uma forma diferente de levantar a voz. Podemos não ir para a rua gritar palavras de ordem, mas podemos criar ainda mais impacto usando os nossos aparelhos”.
Por levantar a sua voz, Satyarthi já sofreu consequências físicas. “Faz parte da vida. Estamos a trabalhar com famílias destruídas e pessoas destruídas que perderam toda a esperança e não têm quem as ajude… Um dos meus colegas foi baleado, outro foi espancado até à morte. Eu já tive ferimentos no ombro, perna, costas, cabeça. Todos os meus activistas passaram por isto. Estamos a trabalhar contra um mal social. Se o mal não reage nem retalia significa que não o estamos a ameaçar”.