Índia, uma anarquia que funciona
“Na Índia, a escolha nunca pode ser entre o caos e a estabilidade, mas entre o caos gerível e o ingerível.”
Conheceremos a 16 de Maio o resultado das "maiores eleições da História". Os 814 milhões de eleitores votam ao longo de cinco semanas. Estão registados 1593 partidos. Tanto as sondagens como a dinâmica política apontam para o descalabro do Congresso Nacional Indiano (Congresso), que dirigiu a luta pela independência, obtida em 1947, e dominou durante décadas a vida política. O virtual vencedor será o Bharatiya Janata Party (Partido do Povo Indiano, BJP), porta-voz do nacionalismo hindu e liderado por Narendra Modi, retratado como um líder autoritário e comunitarista que ameaça o modelo secularista indiano (ver Revista 2).
A "vaga Modi" tem uma lógica negativa: uma generalizada rejeição do regime do Congresso e do seu princípio dinástico. O candidato (não oficial) do Congresso, Rahul Gandhi, deve o estatuto ao seu nome e não ao talento político. O Congresso é também responsabilizado pela desaceleração da economia e pela corrupção — que provocou uma vaga de manifestações em 2011, abrindo espaço a uma terceira força de carácter populista, o Aam Aadmi Party (Partido do Homem Comum, AAP), de Arvind Kejriwal.
No entanto, Modi exerce também uma sedução positiva sobre as classes médias e o mundo empresarial, desiludidos com o actual governo do Congresso. Apresenta-se como um "super-administrador" do país, o enérgico político neoliberal que vai promover uma modernização económica radical. Prometeu "um governo mínimo e uma governação máxima". Parece responder ainda às aspirações da "quase-classe média", as camadas populares que "estão à porta", têm pressa na promoção social e são também marcadas por uma "intensa religiosidade hindu".
Não há maiorias absolutas desde 1986. Durante décadas, o Congresso conseguiu integrar as inúmeras identidades da Índia — étnicas, religiosas, linguísticas ou regionais. A partir dos anos 1990, verificou-se a ascensão dos partidos regionais e étnicos: a sua votação passou de 9,7% em 1967 para 52,5 em 2009. Tornaram-se determinantes no desenho das coligações e do programa dos governos. Analistas económicos temem que, mesmo com uma boa vitória, Modi possa ser forçado a formar uma "coligação ingovernável" que levaria a um "período de caos".
A Índia não tem há longos anos um governo maioritário e estável, o que dificulta a elaboração de políticas a longo prazo.
O secularismo
As eleições indianas interessam o mundo inteiro. Mas para falar dos efeitos internos ou da sua repercussão na política internacional é prudente esperar não só pela dimensão da previsível vitória de Modi como pela formação da futura coligação. Mas podemos sublinhar algo que está, de há muito, a agitar a sociedade indiana.
Se Modi centrou a sua campanha na economia, os seus adversários fazem destas eleições "a mega-batalha pela alma secular da Índia". O BJP é o expoente político do velho nacionalismo hindu e foi um actor político marginal até aos anos 1980. O partido dirigiu o governo em 1996 e entre 1999 e 2004, através de A. B. Vajpayee, um político moderado e condicionado pelas coligações que teve de formar.
Os nacionalistas hindus reivindicam encarnar o espírito da nação — 80% da população é hindu — e propõem uma uniformização cultural do país, marginalizando as minorias, em especial os muçulmanos (13%). O politólogo Achin Vanaik acusa-os de terem em mente a "hinduização" do Estado. A batalha não se trava entre hindus e muçulmanos. Os mais ardentes defensores do modelo secular e acérrimos adversários do comunitarismo são hindus.
O modelo indiano pouco tem a ver com o laicismo europeu, entendido como separação entre Estado e religião. Implica o reconhecimento de todas as religiões pelo Estado. "O secularismo indiano tem mais afinidades com o multiculturalismo do que com a laicidade", explica Christophe Jaffrelot, um dos grandes especialistas da Índia.
Os nacionalistas hindus denunciam o "pseudo-secularismo" que, dizem, visa proteger a minoria muçulmana. Pregam a resistência às religiões "estrangeiras" (islão e cristianismo).
Mani Shankar, antigo ministro do Congresso, considera-se um "hindu secular fundamentalista" e acusa Modi de representar "tudo o que há de maléfico no hinduísmo". Remata: "A Índia não é, e não pode ser, a Índia hindu. É constitucionalmente uma nação secular, com uma longa história de uma cultura compósita."
Os "pais fundadores" da independência, saídos das elites e das mais altas castas, criaram um Estado democrático para administrar um país imenso, multiétnico e com pulsões separatistas. É um Estado forte e federal. "A maior democracia do mundo" foi excepção na Ásia. Não esmagou a diversidade em nome da unidade nacional, antes fez do pluralismo um princípio sagrado.
Modi pode revelar-se epifenómeno. Mas, escrevia Jaffrelot em 2011, o comunitarismo é uma tendência em ascensão, que desgasta o Congresso em benefício do nacionalismo hindu. Apresenta uma visão pessimista: "A Índia afasta-se do multiculturalismo e encaminha-se para uma forma de democracia — ilustrada por Israel ou pelo Sri Lanka — que a Ciência Política designa por ‘etno-democracia’, em que as minorias são tratadas como cidadãos de segunda classe."
A própria globalização, que acelerou o "milagre económico indiano", está a alargar o fosso entre ricos e pobres, entre os estados, entre a cidade e o campo, fomentando uma exclusão maciça e sem precedentes, acentuando as tensões sociais que, frequentemente, se exprimem em conflitos comunitários.
Um milhão de revoltas
A Índia é um país de contrários e que, outrora, os europeus consideraram uma civilização imóvel. "A Índia não tem História", sentenciou em 1817 o britânico James Mill na sua História da Índia Britânica. A Índia continua a mudar, mas sempre à sua maneira.
A agitação é uma constante histórica. O escritor V. S. Naipaul intitulou a sua grande reportagem sobre o país Índia, um milhão de revoltas (1990). O economista John Kenneth Galbraith, que foi embaixador americano em Nova Deli (1961-63), maravilhou-se com o que viu: "É uma anarquia que funciona" — um país que vai caminhando apesar do governo não fazer muito.
O sociólogo Andis Nandy explica assim o paradigma indiano: "Na Índia, a escolha nunca pode ser entre o caos e a estabilidade, mas entre o caos gerível e o ingerível, entre a anarquia humana e a desumana, entre a desordem tolerável e a intolerável."
O historiador Ramachandra Guha, crítico implacável de Narendra Modi, escreveu recentemente numa das suas crónicas: "É possível que em Maio de 2014 tenhamos um primeiro-ministro arrogante e sectário em vez do primeiro-ministro fraco e incompetente que agora temos. Mas a democracia indiana, para não dizer a própria Índia, vai sobreviver."