Ideologia e terror em nome de Deus
A derrota pode ser uma deriva securitária contra a liberdade e a democracia pluralista que demorou séculos a emergir no Ocidente.
1. “Em nome de quê, perguntam os franceses?” é o título de capa do PÚBLICO de 15/11. A interrogação mostra como a mentalidade secular é um poderoso obstáculo para compreender os atentados terroristas de 13/11 em Paris. A França sabe o que é o terror em termos históricos. A palavra surgiu durante os excessos da Revolução Francesa de 1789. Mas só o compreende ligado à história do Ocidente e às modernas ideologias políticas seculares. Não o consegue compreender na versão sacralizada e apocalíptica de uma ideologia não ocidental. Seria muito mais fácil entender a lógica do 13/11, se os autores fossem grupos tipo Baader-Meinhof ou Brigadas Vermelhas como na Europa dos anos 1970, ou um qualquer grupúsculo neonazi. As regras do jogo eram percebidas: uma confrontação, ainda que usando uma extrema violência terrorista, entre ideologias seculares ocidentais: marxismo-leninismo revolucionário ou nazismo versus capitalismo e democracia liberal. Moviam-se, em qualquer caso, no quadro familiar para um francês e europeu, do Iluminismo, da ideia de progresso, da transformação da sociedade por uma utopia revolucionária secular. Mas não é esse o caso do Estado Islâmico (Daesh). A sua reivindicação do atentado foi conhecida poucas horas depois. Os media divulgaram-na amplamente. Mas a ênfase foi colocada praticamente só naquilo que a mentalidade secular europeia compreende: a represália pelos bombardeamentos franceses na guerra da Síria. O resto foi largamente ignorado. Poucos a leram integralmente. Menos ainda reflectiram na (auto)justicação dada pelos perpetradores do atentado. No entanto, esta contém, de alguma forma, a chave para compreendermos como se vêem a si próprios. E, se não compreendermos como estes se vêem a si próprios — o que não significa, de forma alguma, aceitarmos a sua lógica —, não iremos perceber a substância do problema.
2. O texto emitido pelo Estado Islâmico (Daesh) para reivindicar os atentados de 13/11 (auto)intitula-se: “Comunicado sobre o ataque bendito de Paris contra a França cruzada.” Vamos analisá-lo a partir da sua versão em francês (ver “L’Etat islamique revendique les attentats de vendredi à Paris” in Libération 14/11/2015). O comunicado começa com uma citação do Alcorão: “(…) Eles que pensavam que as suas fortalezas os preservariam de Alá; porém, Alá os açoitou por onde menos esperavam e infundiu o terror em seus corações; destruíram as suas casas com suas próprias mãos, e com as mãos dos fiéis. Aprendei a lição, ó sensatos! (Surata 59, versículo 2).” Continua, depois, glorificando os autores do atentado: “(…) Um grupo de crentes dos soldados do Califado, que Alá lhes dê força e a vitória, tomou por alvo a capital das abominações e da perversão, aquela que leva o estandarte da cruz na Europa, Paris.” Elogia, em seguida, a sua determinação absoluta na prossecução da vontade divina e o seu desapego da vida na terra: “Um grupo sem apego à vida terrena avançou contra o seu inimigo procurando a morte no caminho de Alá, socorrendo a sua religião, o seu Profeta e os seus aliados e pretendendo humilhar os seus inimigos.” Estes são apresentados como instrumentos de execução de uma vontade divina: “Pela sua mão Alá lançou o medo e o terror no coração dos cruzados, na sua própria terra.” Quanto à escolha dos sítios dos ataques é feita e justificada da seguinte maneira: “Os locais escolhidos minuciosamente, de forma prévia, no coração da capital francesa, o Estádio de França na altura do jogo entre dois países cruzados (…) o ‘Bataclan’, onde estavam juntos centenas de idólatras numa festa da perversidade (…).” Explica também como estes serão recompensados pela sua actuação: “Que Alá os aceite entre os mártires e nos permita juntarmo-nos a eles.” Termina com uma ameaça à França e a todos os que seguem a sua via. Estes continuarão a ser “os principais alvos do Estado Islâmico [Daesh] e continuarão a sentir o odor da morte por terem encabeçado a cruzada, ousado insultar o nosso Profeta, se gabarem de combater o Islão em França e de atacar os muçulmanos na terra do Califado com os seus aviões que não lhes serviram de nada nas ruas malcheirosas de Paris.” Trata-se de um uso e apropriação do islão para fins políticos, como é habitual na estratégia do islamismo-jihadista (ver “O islamismo-jihadista como ideologia política totalitária” in Público 27/09/2014). Choca, sem qualquer dúvida, a esmagadora maioria dos crentes. É objecto do seu repúdio veemente. Mas o facto de esta ideologia extrema ir buscar aos textos sagrados do islão os seus fundamentos coloca um problema delicado. É necessário reverter-lhe a estratégia, separando a crença religiosa no islão da ideologia política do islamismo-jihadista, a qual se apropria destes e sacraliza a acção política. Não é tarefa fácil. Seja qual for a resposta, é imprescindível ter um quadro intelectual que permita perceber o problema antes de actuar.
3. A justificação para os atentados de 13/11 não podia conter um choque maior de visões do mundo. Para a mentalidade secular europeia/ocidental a “morte de Deus” já ocorreu no século XIX. Foi enunciada pelo filósofo germânico Friedrich Nietzsche. “O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. 'Para onde foi Deus?’ exclamou. É o que lhes vou dizer. 'Matámo-lo… vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos!'” (Gaia Ciência, trad. port., Guimarães Editores, 1887, secção 125, p. 140). No islão, este tipo de pensamento filosófico seria simplesmente impossível. Metáforas filosóficas à parte, Deus, o Deus cristão, foi afastado do espaço público e da linguagem política da Europa do século XXI. É bem aceite como algo privado e pessoal. Só. Numa sociedade imbuída de valores seculares e humanistas, mas também de valores materialistas e hedonistas, a presença da morte foi igualmente afastada, o mais possível, da visibilidade pública. A ideologia islamista-jihadista que move grupos como o Estado Islâmico (Daesh) é hoje a antítese mais extrema dos actuais valores europeus e ocidentais. Deus — Alá em árabe — deve estar omnipresente na esfera pública e privada. A Sharia islâmica contém regras intemporais para todas as esferas da vida humana. Os europeus proclamaram a “morte de Deus”. O Estado Islâmico (Daesh) proclama a morte do homem que se afasta da Sharia islâmica, tal como este a entende. Na sua óptica, a vida humana não tem qualquer valor em si mesma, fora da conformidade com a vontade de Alá. A sua luta é, em primeira linha, contra o inimigo interno: os muçulmanos que não se revêem nas suas concepções, seja por professarem outras formas de islão vistas como heréticas (xiitas, alauitas, sufis, etc.), seja por terem ideias liberais e modernizadoras do islão. Numa segunda linha, contra o inimigo externo, ou seja, qualquer outra religião (cristãos, judeus, etc.), ou, pior ainda, contra agnósticos e ateus. Estes últimos, aos seus olhos, são iguais os pagãos da era pré-islâmica. A França e a Europa são o terreno desta nova confrontação ideológica. A mentalidade secular não a representava como possível no século XXI.
4. A actuação segunda a lógica da “guerra ao terrorismo” é um absurdo. A expressão, criada por George W. Bush após o 11/S, denota uma incompreensão fundamental. A oportunística invasão do Iraque, em 2003, não deixa dúvidas quanto a isso. Não eliminou o terrorismo. Pelo contrário, até criou o caos político e social onde surgiram, ou se reconfiguraram, os grupos que hoje mais usam esse meio, no Médio Oriente e fora dele. Recentemente, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair fez um mea culpa (Ver "Tony Blair makes qualified apology for Iraq war ahead of Chilcot report", Guardian, 25/10/2011). Importa, assim, ter isto bem claro: o terrorismo é um meio. Em qualquer situação onde o terrorismo seja usado, será sempre ao serviço de uma determinada finalidade, de uma ideia, de uma ideologia que se quer impor. Não é um fim em si mesmo. Podemos, devemos, estar em total rota de colisão com uma ideologia que se procura impor pelo terror. Tipicamente, é uma ideologia totalitária. Em qualquer caso, fazer guerra a meios é não perceber a substância daquilo contra o qual se está a lutar. É a ideia, a ideologia, que move os perpetradores – que lhe dá o sentido de missão. Nenhum terrorista se vê, a si mesmo, como terrorista. Vê-se, antes, como agente de uma causa de elevado valor, uma causa suprema, pela qual vale a pena lutar usando os meios mais extremos e até às últimas consequências. Neste quadro mental, o sacrifício da própria vida é a entrega suprema. É uma forma de transcendência. Que não haja ilusões. Enquanto a ideia persistir, haverá gente, até ainda mais do que hoje, disposta a recorrer ao terror. Só derrotando a visão do mundo que lhe está subjacente se ganha esta luta. O principal combate está aqui. Toca os valores mais profundos das sociedades europeias. A Europa e o Ocidente não estão preparados para o travar, apesar da supremacia material e tecnológica. Não percebem o inimigo islamista-jihadista, visto como um passadismo impossível, que não segue a lógica do progresso e da evolução humana. Não compreendem, até pela enraizada tradição de pensamento universalista, esta recusa total e absoluta dos valores humanistas e seculares. Mas terão de o perceber rapidamente, se não quiserem ser derrotados, de uma forma ou de outra. A derrota pode ser uma deriva securitária contra a liberdade e a democracia pluralista que demorou séculos a emergir no Ocidente.
Investigador