Herdeiros de 1945?
As relações sociais no Ocidente voltam a estar saturadas de racismo e de xenofobia.
Do nosso lado do mundo, gosta-se de dizer que os novos autoritarismos estão na Rússia, na Venezuela, na China, mas o que emerge das revelações de Assange e de Snowden é que também nós vivemos em sociedades que se dizem democráticas mas que estão sujeitas a condições de vigilância e de controlo totalitários. Os estados (em cooperação com as empresas que gerem a informação) vigiam uma enorme parte dos seus cidadãos, entre sindicalistas, ativistas políticos e religiosos, trabalhadores públicos e privados, jornalistas, estudantes, até ao mais banal facebook em que uma imagem minimamente política possa ter sido postada.
Dizia Eric Hobsbawm que “a maioria dos seres humanos opera como os historiadores: só retrospetivamente conseguem reconhecer a natureza da sua experiência” (A Era dos Extremos, 1995). É difícil conseguir dar um nome adequado ao que vivemos enquanto o vivemos; só quando temos consciência de que entrámos noutro ciclo das nossas vidas é que conseguimos perceber o que ficou para trás. 70 anos passados sobre o fim da II Guerra Mundial na Europa, somos ainda herdeiros de 1945? A derrota do nazismo e do fascismo, e do projeto genocida de reorganização racista e colonial da Europa e da Ásia mais mortífero que a História conheceu, abriu caminho à segunda grande vaga de reivindicação democrática do séc. XX. Depois de cada uma das duas grandes guerras, havia que recompensar com direitos e um mínimo de bem estar quem fora obrigado a lutar, a resistir, e tinha sobrevivido; havia que criar condições para evitar que aquilo que causara a guerra voltasse a poder provocá-la de novo no futuro. Depois da I Guerra Mundial, à exigência de democracia social, de que a Revolução de Outubro foi um dos sintomas mais evidentes, contrapôs-se o fascismo, desenhado para inverter o caminho da democratização. Depois da II Guerra e até ao final dos anos 70, um sopro de emancipação varreu o planeta e tentou acabar com a ideologia da desigualdade. Isto é, essa visão do mundo — que hoje regressa em força — segundo a qual têm o direito, e o dever, de mandar os que se julgam autores do progresso, porque dizem fazer um mundo tecnológica e organizacionalmente novo, e têm de obedecer os subalternos: os assalariados porque não souberam ser patrões, os pobres, as mulheres e os povos infantis das Américas, da Ásia e da África, que precisam de ser ensinados, quer quando, no passado, eram súbditos de um Governo europeu, quer quando são, hoje, operários subcontratados de uma multinacional ocidental ou asiática.
Foi tudo menos coincidência que da chamada Libertação de 1944-45 tivessem surgido os três grandes movimentos emancipatórios, contemporâneos entre si, que mudaram, desta vez a sério, a vida coletiva da maior parte da Humanidade: a emancipação política dos povos submetidos ao colonialismo, das mulheres de todas as culturas, de uma nova geração de jovens que, filhos daqueles que tinham sido obrigados a fazer duas guerras mundiais, se opuseram à infindável série de guerras coloniais com que o Ocidente tentou impedir a descolonização (os franceses na Argélia, os EUA no Vietname, os britânicos na Malásia ou no Quénia, os israelitas na Palestina, os portugueses em África, os anglo-boers na África do Sul…). As independências afro-asiáticas, o reconhecimento de direitos sociais e políticos a quem trabalha, a legalização da contraceção e, depois, do aborto, ou os movimentos estudantis fizeram todos parte do mesmo impulso, são todos filhos do mesmo mesmo desejo de pôr em prática, finalmente, tudo quanto nas constituições se referia à igualdade e aos Direitos Humanos, enquanto a realidade social e económica exaltava a desigualdade e (parafraseando Fassbinder) o direito do mais rico à liberdade. Todas estas mudanças estão hoje a ser postas em causa.
70 anos depois da libertação de Auschwitz, o fundamento dos regimes em que vivemos é ainda a rejeição radical do fascismo e do racismo? A ilegitimidade de toda a dominação colonial? O reconhecimento de que não há liberdade sem bem-estar, de que não há democracia sem direitos sociais, sem igualdade efetiva entre homens e mulheres, com discriminação legal ou social de minorias étnicas ou de orientação sexual? Não. Já não somos herdeiros de 1945. Desde que Thatcher proclamou que a “sociedade” era “uma invenção marxista”, e que, pelo contrário, nas relações sociais só existem “indivíduos”, começou, apesar de todas as resistências, a des-democratização, a inversão do caminho aberto em 1945. Retomou-se o caminho da desigualdade. As relações sociais no Ocidente voltam a estar saturadas de racismo e de xenofobia; ainda que não tenham nunca desaparecido, voltam a ser assumidos abertamente por governos, polícias, instituições, empresas, umas vezes em nome do que sempre se invocou para colonizar e/ou reprimir (a luta contra o terrorismo e a barbárie), outras invocando-se o mercado, sacralizado, para justificar condições de trabalho próximas da escravatura, a contaminação do planeta ou a expulsão populações do seu habitat. Se, durante uns 30 anos, até ao fim dos anos 70, maiorias esmagadoras de eleitores reconheciam a utilidade do voto e forçaram a mudanças muito práticas nas suas vidas coletivas, hoje qualquer Governo diz ser legítimo (exatamente como há cem anos atrás, quando poucos tinham o direito de voto) mesmo que tenha tido o apoio de uns 20% dos inscritos, desde que a engenharia eleitoral em vigor invente maiorias absolutas a partir da abstenção maciça daqueles a quem se ensinou que não há alternativa.
A história, contudo, não acaba aqui. É que, como se viu, também não acabou quando a Europa inteira achou que Hitler tinha ganho a guerra e que o fascismo era o fim da História.