Homs: “Graças a Deus. Decidimos sair porque tínhamos fome”

Operação para retirar civis de Homs recomeçou nesta quarta-feira. ONU preocupada com as centenas de homens detidos pelo regime depois da evacuação.

Entre os 1150 sírios que já deixaram Homs há 500 crianças
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Entre os 1150 sírios que já deixaram Homs há 500 crianças Bassel Tawil/AFP
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O acordo entre o regime e os rebeldes foi alcançado, finalmente, a semana passada. Na sexta-feira, saíram da Cidade Velha de Homs os primeiros civis, ao mesmo tempo que começava a entrar ajuda na zona, cercada pelas forças de Bashar al-Assad há 18 meses. Na terça-feira, as operações foram interrompidas por motivos “técnicos e logísticos”: os cinco bairros que faltam estão isolados uns dos outros e é difícil encontrar caminhos seguros para fazer sair de lá as pessoas. A ONU já recomeçou as operações nesta quarta-feira.

As imagens que têm chegado de Homs não são de uma evacuação tranquila. Há adultos com crianças ao colo que atravessam uma estrada ladeada de destroços e que correm na direcção das viaturas da ONU, ao lado de idosos com bengalas; há muitos sacos e malas que são deixados para trás na confusão. Esses vídeos são dos opositores que ficaram para trás. “Graças a Deus. Decidimos sair porque tínhamos fome”, diz um homem de barba comprida.

“É uma operação extremamente perigosa”, diz Jens Laerke, porta-voz do Gabinete da ONU para a Coordenação dos Assuntos Humanitários, citada pelo Guardian. “Mas é isto que as pessoas de Homs têm vivido todos os dias há um ano e meio.”

Há uma trégua em vigor, mas já foi quebrada várias vezes desde o início das operações – 14 pessoas foram mortas – e os voluntários das organizações envolvidas já se viram debaixo de fogo.

Também há algumas imagens do que acontece depois, divulgadas pelo Crescente Vermelho: uma mãe e um bebé sentados à mesa diante de uma refeição, idosos a serem reconfortados por voluntários que lhes medem a tensão arterial, voluntárias que lançam balões a meninas.

“Um homem contou que sobreviveu uma semana só com uma colher de bulgur”, diz à Reuters porta-voz do Programa Alimentar Mundial (PAM), Elisabeth Byrs, explicando que a pouca quantidade deste cereal que estava disponível na área cercada de Homs se encontrava infestada de insectos. “Eles dizem que sobreviviam com folhas, relva, azeitonas, e às vezes aparecia algum trigo que eles misturavam com farinha e água e faziam uma espécie de pão.”

Não era só a comida que faltava. Havia um único hospital improvisado e quase nenhuns medicamentos. Entre a ajuda que a ONU tem feito entrar, à medida que retira os civis que desejam sair, há comida, cobertores, remédios e vacinas.

Também faltava escola, há 18 meses. “A maioria das crianças passou este tempo enfiada em casa, a ouvir os bombardeamentos. Mesmo depois de terem saído podíamos ver o medo nos seus olhos quando ouviam o som de armas”, descreveu ao Guardian Geoffrey Ijumba, da equipa da UNICEF em Homs.

“Os níveis de destruição dentro da Cidade Velha são piores do que tudo o que eu já vi. As pessoas estão a viver em túneis subterrâneos, a mover-se entre destroços de edifícios para encontrarem raízes para comer – há muitos meses que há muito, muito pouca comida”, disse à BBC Matthew Hollingworth, director do PAM na Síria.

336 detidos
Inicialmente, o acordo negociado com a mediação da ONU só incluía mulheres, crianças e homens com mais de 55 anos. Mas no domingo, o governador de Homs, Talal Barzani, disse que todos os que quisessem podiam deixar os bairros cercados com a condição de que rapazes com mais de 15 anos e homens abaixo dos 55 teriam de passar por um “processo judicial”.

Segundo a ONU, o regime deteve 336 homens que saíram da cidade. “Estamos muito preocupados por saber que vários homens, rapazes e as suas famílias foram detidos pelas autoridades depois de deixarem as zonas cercadas. É essencial que nada de mal lhes aconteça”, disse Rupert Colvile, porta-voz da ONU.

O governador de Homs diz que 190 detidos já foram libertados e que ainda há 111 homens a serem interrogados. “Estão num abrigo, em condições muito boas”, disse à BBC. Mas a ONU só confirma a libertação de 42 dos 336 detidos que contabilizou.

As 2500 a 3000 pessoas que a ONU estima que estavam na Cidade Velha de Homs são apenas uma parte das 250 mil que se encontram encurraladas noutras zonas da Síria: há gente cercada pelo regime nas áreas rurais dos arredores de Damasco, incluindo Ghutta, cenários dos ataques químicos de Agosto do ano passado, e vilas perto de Alepo, a maior cidade do país, no Norte.

Nova Iorque e Genebra
É para garantir que a ajuda chega a estas pessoas que os franceses passaram os últimos dias a tentar negociar uma resolução no Conselho de Segurança: no texto que tem circulado em Nova Iorque, exige-se “o levantamento imediato dos cercos” e denunciam-se ainda os bombardeamentos aéreos do regime contra os civis com mísseis SCUD e barris carregados de explosivos (uma táctica que tem sido usada com frequência em Alepo), para além de se condenaram “os crescentes ataques terroristas” no país.

“Deixem que vos diga, este texto não vai ser adoptado”, afirmou aos jornalistas o embaixador russo na ONU, Vitali Churkin. Em Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, descreveu um texto “absolutamente inaceitável”, lamentando que contenha “um ultimato” – o texto não prevê a adopção imediata de punições mas reserva para o Conselho de Segurança a possibilidade de votar sanções se o que ali se diz não for aplicado em 15 dias.

“É um projecto de resolução moderado, não há nenhuma razão política para estar contra”, comentou o embaixador francês, Gérard Araud, acrescentando que está pronto a avaliar sugestões de alteração. “Não vemos como é que pode prejudicar as discussões de Genebra II”, disse ainda Araud, referindo-se aos encontros que continuam a decorrer na Suíça.

A evacuação de parte de Homs e a entrada de ajuda na cidade é o primeiro resultado prático das negociações entre o regime e a oposição que começaram no fim de Janeiro em Genebra e recomeçaram na última segunda-feira. Inicialmente, deveriam servir para pôr em marcha um plano de transição e um governo interino. Para já, só serviram mesmo para fazer chegar ajuda à população de Homs. Na terça-feira, a ONU falava em “impasse total”.
 

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