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França: depois do terror, a deriva securitária

A polícia francesa arromba portas de norte a sul do país em busca de radicais islâmicos. Aproveita as liberdades que lhes dá o estado de emergência, apoiada pela maioria dos franceses. Mas muitos queixam-se de islamofobia e de deriva securitária.

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Aos receios de um Estado securitário, a polícia responde com números: 266 armas apreendidas em 1616 buscas é "um bom rácio" Joel Saget/AFP

Karim é uma das quase três centenas de pessoas em prisão domiciliária ao abrigo do estado de emergência em França, decretado duas horas e 40 minutos depois do início dos atentados em Paris. Dormia quando a polícia entrou no seu quarto. “Vão-me matar”, disse à mulher, vendo os feixes vermelhos das armas na parede da sua habitação parisiense. Não foi isso que aconteceu. “O senhor está preso, mas em sua casa”, disseram-lhe, momentos depois, para seu espanto. É “considerado muito radical” e foi visto a “congratular-se publicamente” com os ataques de Janeiro na capital. A esposa de Karim – não o seu nome verdadeiro – está convencida de que o crime é outro. “É porque somos muçulmanos”, conta à AFP. Chorava ao fazê-lo.

França responde com firmeza aos atentados de Paris que mataram 130 pessoas na noite de 13 de Novembro. Já o fizera com os ataques de Janeiro à redacção do semanário satírico Charlie Hebdo e a um supermercado kosher no centro da capital, ataques que Karim é acusado de ter celebrado. Mas a reacção agora é diferente. Antes, o Governo endureceu as leis antiterrorismo e deu quase rédea livre à recolha de informação pelos seus serviços de informação. Hoje bombardeia intensamente posições do grupo Estado Islâmico na Síria. “A França está em guerra”, repete François Hollande. Mas o inimigo não está só lá fora, na Síria, Iraque ou Afeganistão, como foi o caso da resposta norte-americana ao 11 de Setembro. Está também em solo francês. É uma “guerra difusa”, como explica ao Le Monde o filósofo Frédéric Gros.

A guerra interna de França ao terrorismo está a ser travada pela polícia. Fizeram-se já mais de 1600 operações de busca em pouco mais de dez dias, segundo os últimos números do Governo. As autoridades encontraram mais de 260 armas, incluindo um lançador de granadas. Pelo menos 165 pessoas foram detidas e outras 290 ficaram em prisão domiciliária, como aconteceu com Karim. Este volume de operações só é possível graças ao estado de emergência que o Presidente Hollande decretou na própria noite dos ataques e que foi entretanto prolongado até Fevereiro.

Sob este regime, a polícia pode deter uma pessoa em sua casa até 12 horas por dia, desde que o seu comportamento indique que pode estar envolvida em actos de terrorismo. A prisão domiciliária é autorizada pelo Ministério do Interior, não por um tribunal. Acontece algo de semelhante com as buscas domiciliárias. São sancionadas pelas autoridades locais, novamente contornando o mandado jurídico. Os poderes policiais estendem-se a outros campos. Mas para Karim e para outros, por enquanto, é isto que importa.

A mulher de Karim não usa o véu islâmico. Numa fotografia que mostrou à agência francesa, está de biquíni, rodeada de amigos numas férias que passou na Tailândia, no ano passado. “Um radical, para mim, não beija as mulheres, não tem televisão em casa, impede a sua mulher de ir de férias sozinha, não festeja o Natal ou o Halloween”, acrescenta Karim. Segundo o seu advogado, este pai de duas crianças pode perder o emprego por causa da prisão domiciliária. “Nunca foi detido, nunca foi assinalado” aos serviços de informação, sublinha. “É o delírio.”

O caso de Karim não é único. A advogada Daphné Pugliesi falou à AFP sobre um outro caso de prisão domiciliária indevida. Um casal muçulmano que no passado denunciou à polícia a ida de vários conhecidos seus para a Síria. As autoridades pediram-lhes então que se mantivessem em contacto. Eles cumpriram, mas acabaram nos últimos dias em prisão domiciliária, suspeitos de serem radicais pela proximidade que tinham com as pessoas cuja ida para a Síria denunciaram.

Os muçulmanos são os alvos predominantes destas operações. A polícia fez buscas já em mais de 30 mesquitas. De tal maneira que o Colectivo contra a Islamofobia em França publicou já um guia prático para a denúncia de buscas e prisões domiciliárias indevidas. “Fixá-las na comunidade muçulmana multiplica as generalizações e cria um sentimento de medo, mesmo de psicose, em muitos muçulmanos”, diz à Al-Jazira Nabil Ennasri, escritor e responsável pelo Observatório do Qatar.

Rasto histórico
A história da lei do estado de emergência francês tem um rasto de repressão. Foi criada em 1955, para combater os levantamentos independentistas na Argélia, quando este país era ainda uma colónia francesa. “Ao longo de 50 anos, foi apresentada como uma lei colonial”, escreve a historiadora Sylvie Thénault. O estado de emergência foi apenas aplicado duas outras vezes antes deste ano. Ainda na década de 80, novamente para atacar um movimento independentista, neste caso na Nova Caledónia – que continua a ser território francês – e em 2005, na resposta aos motins de Paris.

Em 2005, a lei do estado de emergência transformou-se num instrumento com um alvo específico. Atingiam-se os elementos “subversivos”. Quem estava “fora do contrato social, fora da República e fora da nação”, escreve Thénault. Nesse momento, escreve Gilbert Achcar no Le Monde, os fantasmas da guerra na Argélia já eram visíveis.

Agora também o são, segundo este professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres. “Grande parte dos jovens envolvidos nos motins dos subúrbios [de Paris] era o produto de uma longa história colonial da França em África. Tal como a maior parte da franja jihadista francesa dos últimos anos nasce da exacerbação dos rancores que explodiram em 2005 e das esperanças não concretizadas.”

A colisão entre liberdade e segurança tornou-se um lugar-comum no momento de se discutir a melhor forma de combater a ameaça jihadista moderna. Aconteceu o mesmo na França pós-Charlie Hebdo, no momento de aprovar nova legislação antiterrorismo. Volta a acontecer agora. Mais de 90% dos franceses têm uma opinião positiva sobre o actual estado de emergência. Em 2005, eram mais de 70% os que a aprovavam. Na opinião do filósofo Frédéric Gros, faz parte de um “primeiro momento de emoção legítima”. Segue-se outra fase, a da “vigilância e poder crítico do executivo na sua deriva autoritária”.

Medida eficaz?
Este segundo momento pode estar já a começar. O estado de emergência foi imposto no momento dos ataques e o seu prolongamento foi aprovado no Parlamento imediatamente depois da violenta operação policial em Saint-Denis. A sua votação foi quase unânime. As críticas só agora começam a surgir. E a mobilizar.

Um grupo de personalidades francesas publicou nesta semana um abaixo-assinado intitulado “Desafiemos o estado de emergência”. Nele lembram o caso de uma rapariga de três anos que ficou ligeiramente ferida numa operação da polícia em Nice. As autoridades, soube-se mais tarde, enganaram-se na porta. Na carta, apelam à participação na marcha contra o aquecimento global do próximo domingo, por ocasião da cimeira do clima, em Paris. O Governo cancelou-a por risco de atentado terrorista. “É uma vitória para o Daesh [Estado Islâmico], que com menos de uma dúzia de homens afundou o Estado num dos seus piores reflexos reaccionários”, escrevem.

Mas aos receios sobre um Estado securitário, ou islamofóbico, a polícia responde com números. Para o comandante Patrice Ribero, secretário-geral de um dos mais importantes sindicatos da polícia em França, 266 armas apreendidas em 1616 buscas é um bom resultado. “É um bom rácio, quando vemos o que se pode fazer com uma Kalashnikov”, afirma ao Le Figaro. Já os alvos das operações policiais, assegura, são escolhidos pela proximidade a sectores radicais. Como os mais de 30 espaços de culto islâmicos. “Não vamos a essas mesquitas por acaso”, diz. “Há uma conivência intelectual.”

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