Ferguson arde e a revolta estende-se ao resto da América

Mais de uma centena de manifestações em todo o país reclamam justiça para Michael Brown, depois de um grande júri ter recusado acusar o agente da polícia que o matou. Família pede a reabertura do processo e Presidente Barack Obama apela à calma.

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Manifestantes em Nova Iorque AFP/Kena Betancur
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Manifestação em Nova Iorque REUTERS/Eduardo Munoz
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Solidariedade em Los Angeles AFP/Ringo Chiu
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A destruição em Ferguson AFP/Jewel Samad
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Limpeza depois de noite de distúrbios Justin Sullivan/Getty Images/AFP
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Comerciantes protegem a sua propriedade em Ferguson Scott Olson/Getty Images/AFP
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A mãe de Michael Brown, Lesley NcSpadden, reage às notícias AFP/Michael B. Thomas

A decisão, que só não surpreendeu totalmente porque fugas de informação durante o processo já faziam prever esse desfecho, contraria aquela que é a “norma” quando a dedução de acusação cabe à apreciação de um grande júri: só muito raramente, estes colectivos de cidadãos locais não optam por submeter o caso apresentado pela Procuradoria a julgamento. Os números do Departamento de Estatísticas da Justiça mostram que em 2010, o último ano para o qual existem dados, em 162 mil casos que a justiça federal remeteu à apreciação de um grande júri, só em 11 não foi deduzida acusação.

Na noite de segunda-feira, após a – inusitadamente – tardia divulgação do veredicto do grande júri (que é o equivalente à decisão instrutória no sistema jurídico português), as ruas de Ferguson transformaram-se num inferno de revolta e caos. Dezenas de edifícios e veículos foram incendiados; lojas, restaurantes e outro tipo de estabelecimentos como cabeleireiros ou escritórios foram vandalizados e assaltados; manifestantes atacaram as forças anti-motim com tijolos e garrafas, e estas responderam com gás lacrimogéneo.

O grau de violência, comparou o chefe da polícia de St. Louis, Jon Belmar, foi “muito superior” àquele que rebentou em Agosto, quando Michael Brown foi morto. Nessa altura, a indignação deu origem a dias consecutivos de manifestações pacíficas mas também motins, vandalismo e confrontos nocturnos. A noite de segunda-feira foi “muito pior”: as autoridades verificaram pelo menos 150 disparos de manifestantes e efectuaram 61 detenções. “A situação ficou totalmente fora de controlo”, explicou Jon Belmar na terça-feira de manhã.

As previsões tanto das autoridades como dos residentes de Ferguson – um subúrbio de cerca de 20 mil habitantes na área metropolitana de St. Louis – eram de que o mesmo cenário violento viesse a repetir-se nesta noite de terça e nas noites seguintes. Enquanto durou a luz do dia, foram tomadas medidas mais drásticas para garantir a segurança e proteger a propriedade. Barricadas de cimento foram levantadas junto à esquadra da polícia; as escolas fecharam e os comerciantes entaiparam os seus estabelecimentos, e vários moradores recolheram a casa antes do pôr-do-sol.

As razões para o protesto e a revolta não mudaram nestes dois meses: a população continua a clamar por justiça pela morte de Michael Brown. Dentro desse chavão, incluem-se várias outras exigências e muitas lamentações – de racismo e intolerância, de violência policial e impunidade. Michael Brown, um estudante de 18 anos, era negro; Darren Wilson, o polícia de 28 anos, é branco. Nas vigílias e concentrações pacíficas que decorreriam ao mesmo tempo que Ferguson ardia, voltou a pedir-se o fim da discriminação racial e económica ou a reforma do sistema (policial, jurídico, prisional). “As vidas dos negros também contam”, diziam os cartazes que voltaram a aparecer esta terça-feira – em Ferguson, mas em muitas outras cidades do país.

Em menos de um dia, mais de uma centena de manifestações de solidariedade com a família de Michael Brown e acções de protesto contra a polícia e os tribunais foram convocadas para grandes cidades de 35 estados do país, de Miami a Chicago, Los Angeles a Nova Iorque, Denver a Filadélfia e na capital, Washington DC. “Mil Fergusons pela América”, pediam os organizadores; Ferguson é aqui, responderam os manifestantes.

Num esforço de apaziguamento e reconciliação, o Presidente Barack Obama dirigiu-se ao país pouco depois do procurador do condado de St. Louis, Robert McCulloch, ter encerrado o processo contra o agente Darren Wilson. “Alguns americanos concordam [com a decisão] e alguns americanos estão profundamente desiludidos e até zangados. É uma reacção compreensível. Mas o nosso país assenta no respeito pela lei, e temos de aceitar a decisão que competia ao grande júri”, declarou.

Antes de Obama, já a família de Michael Brown tinha feito um apelo à contenção e à calma e, ao mesmo tempo, ao activismo numa campanha de sensibilização para garantir uma mudança legislativa no sentido de acrescentar uma pequena câmara de vídeo aos uniformes da polícia. Em comunicado, os familiares não deixaram de exprimir a sua “profunda desilusão pelo facto de o assassino do nosso filho não ter de enfrentar [na justiça] as consequências das suas acções”.

“Totalmente injusto”
Esta terça-feira, a família marcou presença, ao lado de vários líderes religiosos e de activistas dos direitos cívicos, numa conferência de imprensa conduzida pelo seu advogado, Benjamin Crump, que denunciou o processo judicial como “totalmente injusto” e exigiu a nomeação de um procurador especial que reabra a investigação. “Condenamos a violência que aconteceu na noite passada, da mesma maneira que condenamos a violência que aconteceu a 9 de Agosto contra Michael Brown”, frisou o advogado. “Exigimos que todas as diligências sejam esgotadas e que a justiça seja efectivamente aplicada”, prosseguiu.

Apesar de o processo contra Darren Wilson ter sido encerrado no estado do Missouri, a actuação do agente da polícia ainda está a ser investigado no âmbito do inquérito aberto pelo Departamento de Justiça após os acontecimentos em Ferguson. Ou seja, teoricamente, o Procurador-geral Eric Holder pode ainda decidir levar o caso a julgamento e produzir uma acusação federal contra Wilson – uma possibilidade que vários especialistas norte-americanos em direito criminal consideram pouco provável, uma vez que o Ministério Público precisaria de provar que o polícia tinha uma “intenção clara” de privação dos direitos constitucionais e cívicos de Michael Brown quando atirou a matar.

A hipótese mais plausível para que Darren Wilson tenha de responder judicialmente pela morte de Michael Brown é a interposição de um processo cível pela família da vítima, que poderá reclamar uma compensação financeira pela sua perda.

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