É preciso ser herói para sobreviver nos musseques
A habitação é um problema em Angola. Sacerdote tem um projecto de música no musseque onde vive em Luanda. José Patrocínio lidera, no Lobito, a Omunga, que tem feito campanhas por causa da destruição de casas.
Aos 52 anos, José Patrocínio podia ser o soba do bairro da Luz no Lobito. Vive na mesma rua desde os quatro anos, portanto já adquiriu o estatuto de líder tradicional da comunidade.
Fundador da organização Omunga, tem estado à volta do problema das cheias que tomaram conta da região de Benguela em Março. À porta da sua casa o tronco de uma árvore deita-se no chão, raízes à vista a entrarem pelo passeio adentro. A moradia, um edifício do tempo colonial, é onde funciona também a sede da organização não-governamental que se dedica ao activismo de direitos humanos.
Lá dentro, nas paredes, há quadros, obras de arte, máscaras africanas, artesanato e uma espécie de mural. Os escritórios da Omunga funcionam nas traseiras, Patrocínio trabalha à secretária na sala ao lado, onde está uma enorme ventoinha a afastar o calor e os mosquitos. Tem uma T-shirt a dizer “não partam a minha casa”, que serviu numa das campanhas contra as destruições de casas pelo Governo, causa que tem movido a Omunga.
A ONG, criada em 2005, pertence a um grupo que tem cerca de 20 organizações e monitoriza vários aspectos dos direitos humanos em Angola. A equipa da Omunga tem cerca de dez pessoas e financiamento de instituições como a USAid, embaixadas de alguns países, a Christian Aid. Têm zero de financiamento da presidência que, aliás, acaba de publicar um decreto (ainda não promulgado), contestado por várias ONG independentes, que acusam o Governo de limitar a sua actividade — a Omunga é uma das que criticam o papel de controlo que julgam vir a ser exercido com esta alteração.
Esta ONG começou por se dedicar aos meninos de rua, mas hoje a sua actividade estende-se a várias áreas e traduz-se sobretudo em advocacia, pressão e activismo: escrevem notícias, têm um ciclo de debates, fazem denúncias e ajudam a redigir cartas ou reclamações, tentam, por vários meios, dar visibilidade aos problemas das pessoas. Por exemplo, tinham um projecto de acompanhamento de crianças na escola num dos bairros da área, mas o objectivo entretanto mudou porque “o que é que interessa saber se a criança na terceira classe vai saber ler melhor se a irmã está a morrer de malária?”, explica Patrocínio.
Estava programado Patrocínio guiar-nos a um dos bairros onde a Omunga está a trabalhar de perto, mas o lago que se formou com as chuvas isolou-o e impediu o acesso. Era preciso as pessoas arregaçarem as calças para conseguirem chegar à estrada.
Patrocínio faz, então, uma “visita guiada” a um dos musseques da zona. O carro já atravessou um dos bairros da Catumbela (perto de Lobito), entre buracos e entre fugas aos lagos de água. A placa a dizer “Farmácia/existe uma esperança a 255 metro” podia ser a legenda para a criança, de uns cinco anos, que está agora a brincar literalmente no lixo. Veste uma T-shirt rasgada, e junto a ela estão uns porcos que se passeiam.
Já na estrada a caminho de Lobito se espalhavam vários lagos provocados pelas cheias, alguns transformados em piscinas para crianças. O problema é que águas paradas têm o risco de contaminação – são uma das principais razões para a propagação de malária por causa da atracção que exercem sobre os mosquitos. Pior: ainda há provavelmente cadáveres escondidos nestes lagos, destroços das cheias que mataram quase 80 pessoas, nota José Patrocínio.
Dos morros caem restos de garrafas, de plásticos, de roupa. As casas estão semiconstruídas, raras são as que estão pintadas. Há imensas pedras acumuladas na estrada e muita, muita, lama. Antenas parabólicas aqui e ali, bidões de água, bidões de gasolina espalham-se, há uma ou outra árvore plantada mas é raro. A vida do bairro faz-se na rua, onde se vende de tudo, e os mercados acontecem em aterros. Um grupo de raparigas com elásticos coloridos na cabeça olha para dentro do carro, diz adeus. As mães que passam levam os seus filhos às costas, amparadas por panos, no topo da cabeça carregam cestos com quilos de fruta.
As cheias estiveram nas notícias durante muitos dias, várias organizações, inclusivamente o Governo, enviaram ajuda humanitária. Mas para José Patrocínio se é certo que há muito tempo não chovia assim, também é verdade que tamanha tragédia podia ter sido evitada se os sistemas de drenagem tivessem tido manutenção, se houvesse fiscalização, programa de urbanização como deve ser e programa de emergência para resgatar as pessoas, por exemplo.
A habitação é uma preocupação da Omunga porque continua a ser uma preocupação em Angola. Durante a guerra (1975-2002) deram-se enormes fluxos migratórios para as cidades, as populações fugiam do interior por questões de segurança, chegavam às cidades e ocupavam os espaços vazios. Não havia fiscalização, não havia planos de urbanização, não havia apoios, diz Patrocínio, que critica os recentes programas de construção do Governo, até por terem criado casas com um preço não compatível com o orçamento da maioria da população. Em 2008, José Eduardo dos Santos anunciou que ia construir um milhão de fogos em quatro anos — a promessa ainda não se cumpriu, os dados que existem sobre as casas já construídas são contraditórios e as atribuições de vendas e alugueres foram envoltas em polémica (num dos projectos, a zona do Kilamba, em Luanda, as casas foram anunciadas custar 60 mil dólares mas seriam postas à venda por mais do dobro).
Grande parte das cidades fazem-se com os musseques, que nasceram na segunda metade do século XIX, dividindo a população branca da negra. Embora também seja um problema no Lobito, a destruição de casas em zonas de musseques é mais problemática em Luanda, explica Patrocínio.
Mas mesmo assim a Omunga já está a trabalhar com alguns bairros que desconfia poderem vir a ser “partidos” um dia. A ideia é transmitir às pessoas a necessidade de mudança de modo a que possam apresentar propostas antes de verem as suas casas destruídas — no fundo, antecipar.
“O nosso trabalho começou porque não se pode partir uma casa. Partir casas deve ser considerado um crime a não ser que se tenham esgotado as alternativas”, diz. “Fico sempre preocupado em relação à visão dos planos de urbanização porque se transfere o bairro pobre para outra zona em que a única coisa que melhora é a parede da casa. Mas são autênticas prisões: olha-se para aquilo e são filas de casas umas em cima das outras, muitas vezes sem arborização, não há qualquer cuidado com as condições”.
Uma das bandeiras do Governo tem sido a requalificação dos musseques, mas isso está “em contradição com a prática”, considera. “O que está a acontecer nas requalificações é que se está a pôr infra-estruturas mas as pessoas que estavam naquele espaço perdem o direito a ele, não são elas quem beneficia da melhoria. Possivelmente, algumas delas não vão poder beneficiar porque num espaço destes estão 100 pessoas, e 80 delas estão a mais — é preciso saber quem são as 80 a mais e responder às suas necessidades. Temos que pensar como um todo: enquanto estão pessoas a sofrer ali, a minha dignidade aqui não é boa.”
Um dos grandes problemas nos musseques é o saneamento e a água. Em 2011, a 1ª Conferência Nacional sobre Saneamento, em Luanda, revelava que mais de metade da população angolana vivia sem instalações sanitárias e, entre as que as tinham, menos de metade estavam ligadas ao sistema de esgotos. “Os bairros pobres são os que mais pagam a água porque têm que comprar aos tambores, aos baldes, e de má qualidade. A água não é analisada, e é uma fonte grande de doenças”, comenta Patrocínio.
Por isso as consequências de se viver em musseques são “muitas”: as taxas de mortalidade infantil são maiores, quando Angola está no topo da mortalidade infantil de crianças com menos de cinco anos, sendo a malária das principais causas, e é também a principal causa de morte do país, segundo o coordenador do Programa Nacional de Controlo da Malária, Filomeno Fortes. “Há uma questão do direito à vida, da dignidade”, continua José Patrocínio. “O tipo de vida não é digno e tem consequência directa até no carácter, na criminalidade, na saúde pública. Há estigmatização, falta de serviços e falta de ocupação. Nenhum desses bairros tem projectos de jovens, a agressividade do meio também leva a uma resposta agressiva por parte dos jovens”.
Não há dados fidedignos sobre o número de habitantes nos musseques em Angola, mas José Patrocínio faz uma aproximação para os cerca de 70 a 80% da população urbana. Segundo o Censo 2014, na província de Benguela vivem 2 milhões – 16% estão na cidade do Lobito.
“Há todo um jogo já de vício que leva a ter dúvidas nos dados, são manipulados com vários interesses. Os interesses são sempre na perspectiva de ter benefícios ou esconder outros problemas”, explica. “Para fazerem estas construções, as pessoas têm que ter autorização do soba – e o soba recebe dinheiro por isso. Muitas vezes, o soba não apresenta esses dados. Depois habituámo-nos a ter números a partir da emergência e os números da emergência eram para receber comida — isto fica na nossa psicose.” A Omunga já sabe que não há números reais: dá uma margem de erro de uns 10% e não fica presa a dados exactos. Continuamos o percurso na rua que vai dar ao estádio do Académica do Lobito. Nas enxurradas, a água passou por cima das casas. Esta foi a área mais afectada. A acumulação de água continua a servir de piscina aos jovens e animais.
Sacerdote é um homem forte, “forte desde puto”
Aterrar em Luanda de avião é ver um lençol gigante de musseques, uma mistura de vermelhos e ocres com o (pouco) verde da vegetação, casas e mais casas com telhados coloridos a perder de vista. A nuvem de areia cria uma espécie de filtro à fotografia que se vai formando à medida que o avião desce e se aproxima da terra.
Para chegar a Sambizanga, e ao musseque onde muita gente tem medo de entrar, é preciso atravessar enormes lagos neste final do mês de Março. Em Luanda as chuvas fizeram destroços, e uma das principais consequências é tornar a circulação de carros ainda mais lenta. Passam vários táxis colectivos apinhados, prossegue um sobe e desce de buracos. À entrada do Bairro da Lixeira está hasteada a bandeira de Angola e cartazes com o rosto de José Eduardo dos Santos e o MPLA, o partido do poder.
Na rua principal, camiões tentam solucionar o problema do “rio” que separa os dois passeios. Vendedores de rua cozinham à frente das águas paradas, cheias de lixo e insectos. As ruas são estreitas, e o espaço de lazer praticamente inexistente — quem quer jogar à bola tem que o fazer num campo de basquete, minúsculo.
Durante o tempo colonial, Luanda foi pensada para cerca de 250 mil pessoas, notava recentemente o ministro do Urbanismo e Habitação, José Silva, numa entrevista à rádio da ONU. Em 1975 eram 500 mil. Em 2014, o Censo revelou que são cerca de 6,5 milhões os habitantes da província, 27% da população total angolana estimada em 24 milhões. É a província com maior densidade populacional: 347 habitantes por quilómetro quadrado.
“Proporcionar as comodidades da vida na Europa à comunidade não era tarefa simples numa colónia falida e parcialmente povoada por condenados. O abastecimento de água foi, durante séculos, um problema tremendo”, lê-se em História de Angola, de Douglas Wheeler e René Pélissier.
O problema mantém-se. Em casa de Sacerdote, rapper, produtor e promotor cultural, não há água canalizada. No bairro, “há água para alguns, e mesmo para quem tem, vem num mês, no outro não, nunca se sabe quando vai faltar”, diz.
Do terraço onde está a pensar desenvolver um projecto de ocupação de tempos livres para jovens consegue-se ver os telhados em cima dos quais há de tudo: sapatos, antenas, restos de pacotes de sumos, roupa, fios eléctricos… Um miúdo subiu e anda a trepar de telhado em telhado como um gato.
A t-shirt de Sacerdote tem “Dizkuduru” gravado a branco, um jogo entre disco duro e kuduro, o nome do seu projecto musical. Nascido em 1985, Sacerdote vive desde sempre neste bairro, um lugar no qual foi difícil crescer. Desde os 11 anos que ajudava a mãe, com quem vendia, no mercado do Roque Santeiro, água, torresmos, etc. Temia os bandidos e temia os polícias que ainda hoje são violentos com as vendedoras, acusa. Foi forçado a contribuir para “a manutenção das coisas em casa”. “É sempre aquela cena, tens que ser um artista, procurar ser um herói. Tens que procurar a alternativa de poder te actualizar e arranjar maneira de fazer alguma coisa” fora do bairro. Portanto Sacerdote é um homem forte, “forte desde puto”.
Viver no musseque é ter pouco para fazer. Não há centros culturais, não há campos de futebol para os que sonham em ser futuros Mantorras, não há forma de ocupar os tempos livres num espaço disputado por tanta gente, até pela água que cai e engole tudo. Por isso Sacerdote está a lançar o projecto Ocupar para Educar, onde vai ensinar cerca de 20 crianças e jovens a tocar música e ocupá-los com outras iniciativas. “É uma maneira de reduzir o índice de criminalidade: se aprenderem a tocar, a pintar, amanhã vão dedicar-se àquilo que sabem. Na verdade o número de criminosos aumenta porque não se ocupam com nada: o puto já não estuda, nem pratica desporto, não aprende nada, então é muito difícil…”.
A alcunha vem do facto de ele ser religioso, de frequentar a Igreja Maná e de escrever músicas com pendor religioso, conta, a sorrir — rir é aliás, uma característica que o define. Sacerdote diz piadas, goza até consigo próprio — ironiza sobre a sua altura quando conta que, nas poucas manifestações a que foi, a polícia não o chateou porque devia pensar que ele “era um puto”.
O que o aguentou “até hoje” foi ter sido “educado com a arte”, algo que veio do pai, autor de música infantil. Apareceu a vontade de criar as suas músicas no quarto. Quando conseguiu o computador gravava com os amigos música rap e underground. Fazia cópias em CD que ia também vender para o mercado Roque Santeiro. Dava-lhe, depois, “um certo gozo ter os candongueiros a vender músicas de intervenção”, com mensagens “contra a discriminação, a violência, contra as drogas, contra a pobreza, contra a instabilidade que existe na nossa sociedade”.
Conheceu outros músicos, fez contactos, produziu música sobretudo de outros até decidir centrar-se nos seus próprios projectos. Ao mesmo tempo, trabalhava como informático na polícia e nas forças armadas, “mas eram órgãos com quem não me identificava muito”. “Como artista acabo por ser um educador social. Nas minhas canções falo sobre violência contra mulheres, contra zungueiras e não só, e trabalhar para um órgão que batia nessas mulheres, que faz exactamente o contrário do que defendo fazia sentir-me mal… Saí, e tive que ir fazer um trabalho que me vingasse de mim próprio — e me fizesse pensar: ‘já paguei’. Fui trabalhar para um empresa de construção civil, saí de um sítio em que podia estar sentado num escritório para meter a mão na massa”.
Expiou, então, a culpa, e tem agora um projecto para o bairro, a pensar na sua infância. “Quando era puto passei por muitas fases complicadas. Sempre achei que não podia sair do bairro em que cresci sem fazer alguma coisa.”
Fez o curso de artes domésticas no centro social, e na altura teve uma educadora de quem foi assistente em palestras sobre planeamento familiar, etc. Por causa desse envolvimento, cresceu e aprendeu. Então isso é algo que procura hoje: gerar oportunidades aos outros. “A partir dos contactos que tenho, das pessoas que conheço, consigo gerar possibilidades em prole da comunidade.”
No Lobito e em Luanda, José Patrocínio e Sacerdote não estão à espera de apoios do Governo para exercer o seu activismo. Sacerdote explica sobre o projecto musical: “Não temos apoio nenhum. Não nos queremos comprometer com certas pessoas e depois não ser autónomos. Queremos ser independentes.”