É perigoso ficar já "farto" de falar da Grécia
A questão nunca foi conduzir bem ou mal as negociações, mas o facto de, por imposição da Alemanha, se ter sempre decidido que não havia acordo com os esquerdistas do Syriza.
Depois há a sensação de derrota dos filo-helenos, seja dos políticos pró-Syriza, seja dos admiradores mais dos gregos do que do Syriza. Todos partilham uma sensação incómoda porque mistura sentimentos de traição, humilhação, derrotismo, impotência, tudo coisas pouco amáveis para a auto-estima.
Ainda pior é ver a alegria dos que, ao lado de personagens como Dijsselbloem, gozam a sua vingança contra Varoufakis que, de todo não respeitava o holandês pedestre, e contra os gregos que tiveram o arrojo de votar “não”. Digamos que é o clube português dos fans de Dijsselbloem, que festeja a vitória em artigos nos locais certos, nas redes sociais e nos comentários, numa espécie de jogo de futebol contra o clube português dos fans de Varoufakis, no qual, imagine-se a brilhante inteligência, incluem… António Costa.
Senhor, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. O problema é que sabem: querem manter-se no poder e prosseguir um programa de revanche social e política contra os que desde o 25 de Abril lhes roubaram o direito natural de mandar.
É por isso que me é inaceitável o argumento salomónico que muitos socialistas usam para se justificar, atribuindo “culpas” ao governo grego e à “Europa”, umas concretas e com alvo, as outras abstractas e genéricas, como se o resultado final se devesse ao modo como os gregos se comportaram nas negociações e não à recusa sempre sistemática dos alemães e do Eurogrupo em negociar fosse o que fosse, com o apoio dedicado dos socialistas. Os gregos podem ter feito todas as asneiras possíveis, que isso não justifica o que se passou. Mesmo os meses que durou isto tudo, não foram os meses necessários para negociar qualquer coisa, mas os meses necessários a colocá-los entre a espada e a parede e por fim vergá-los. Nunca, jamais, em tempo algum, poderia ter sido de outra maneira, porque nunca quem manda desejou que fosse de outra maneira.
Muitas das propostas gregas logo de início eram bastante moderadas (recordam-se de como os fans de Dijsselbloem disseram que os gregos tinham vergado como Hollande…), mas a perigosidade evidente de um governo como o do Syriza obter qualquer ganho de causa era inaceitável para governos como o português e o espanhol, e era uma bofetada para os socialistas colaboracionistas. A questão nunca foi conduzir bem ou mal as negociações, mas o facto de, por imposição da Alemanha, se ter sempre decidido que não havia acordo com os esquerdistas do Syriza.
Os alemães e os seus acólitos tinham um programa de humilhação, com um acordo que foi afinal escrito pelo Syriza a branco, para eles o reescreverem a preto. O acordo com a Grécia, na realidade um diktat, só tem uma lógica: obrigar os gregos a engolir tudo o disseram que não desejavam. Não tem lógica económica, nem financeira, tem apenas uma lógica política de humilhação. Querias isto? Pois levas com um não-isto. Foi assim que foi feito o chamado acordo.
E não me venham com o argumento de “confiança”, por parte de governantes como Merkel, Rajoy e Passos Coelho que apoiaram Samaras e a Nova Democracia até ao fim, sabendo que apoiavam um governo corrupto e oligárquico, coisa que o Syriza nunca foi acusado de ser. Esse governo “confiável” literalmente evaporou centenas de milhares de milhões de euros e permitiu que a Grécia, endividando-se até ao limite, funcionasse como tapete rolante para reciclar a dívida dos bancos franceses e alemães para os contribuintes europeus. E não me falem de “confiança” face a um acordo-diktat em que ninguém acredita, em que ninguém “confia” e que assenta no poder e no cinismo.
É uma exibição brutal de poder, que coloca a Grécia a ser governada de Bruxelas e Berlim, por gente que vai decidir os horários das lojas ao domingo, quem pode ter uma farmácia, como funcionam as leitarias e as padarias, e quem pode conduzir ferrys para as ilhas. Mas há mais: são revertidas decisões constitucionais de tribunais gregos e, como em Portugal se fez, mudanças legais para acelerar despejos, expropriações, falências e para retirar aos trabalhadores direitos sindicais e de negociação.
Depois há Schäuble, mas isso é outro nível das coisas, aquelas que vale a pena discutir. O que é que se assistiu nos últimos dias? Várias coisas que já são seguras e outras que estão em desenvolvimento.
Comecemos pelas “regras”. Como se sabe os gregos foram acusados de violar as “regras” do euro, e uma fila de pequenos governantes limitados enchiam a boca com as “regras”. Ora se há processo que violou desde o início as “regras” da União foi o modo como foi conduzido o caso grego. Nenhuma das três instituições europeias, o Conselho, o Parlamento e a Comissão assumiu o seu papel neste processo, substituídas por uma entidade informal, o Eurogrupo, e dentro do Eurogrupo pela palavra e posições alemãs que sempre decidiram o que se fazia e o que não se fazia.
A União Europeia não são os dezanove, a que se podia subtrair um, a Grécia, ficando dezoito. São vinte e oito, o que significa que nove estados que não têm o euro como moeda ficaram de fora. Um deles foi o Reino Unido, completamente marginalizado de uma discussão que foi muito mais longe do que apenas a política monetária do euro, mas foi um dos mais importantes momentos da história política da União. Mais: algumas decisões tomadas no Eurogrupo implicam fundos comunitários sobre os quais o Reino Unido também tem direitos, e ninguém se deu ao trabalho de telefonar a Cameron para o envolver nas discussões e nas decisões. A marginalização do Reino Unido é um grave precedente para o referendo que se vai realizar sobre a pertença à União Europeia.
Isto significa que o Conselho, que reúne os chefes de governo da União, com euro ou sem euro, e o Parlamento, cujo protagonismo os europeístas gostam tanto de exaltar, assistiram sem qualquer papel à crise grega. O mesmo se pode dizer da Comissão sempre subalternizada pelos alemães e os seus aliados como pouco fiável na dureza que queriam impor aos gregos. A Comissão, depositária dos Tratados, assistiu à violação desses mesmos Tratados pela Alemanha e o Eurogrupo, sem pestanejar ou, se pestanejou, como alguns afirmam, ficou por aqui. Aliás a marginalização da Comissão é institucionalizada no acordo imposto à Grécia, que implica a participação obrigatória do Fundo Monetário Internacional, uma instituição de fora da União, com quem passa a partilhar o “controlo” do resgate. Esta foi, mais uma vez, uma imposição alemã.
Não, eu não sou salomónico. Reconheço que os gregos cometeram muitos erros, mas recuso-me a colocar esses erros no mesmo patamar do que lhes fizeram. E o que lhes fizeram, uma mistura de vingança e humilhação, mostra bem o que a “Europa” hoje é. De há algum tempo para cá, já sabíamos o que ela estava a deixar de ser, a Europa dos fundadores, construída a favor da paz e pela solidariedade.
Hoje não foi a senhora Le Pen que foi dizer aos eleitores que devem ser egoístas se são ricos e submissos se são pobres. Foram Passos Coelho e Cavaco Silva, em Portugal, foi Rajoy em Espanha, foi Dijsselbloem na Holanda, foi Merkel na Alemanha, foram partidos e governantes como os antigos Verdadeiros Finlandeses, que até há pouco tempo eram esconjurados pelos europeístas e agora são eles que dão o tom à “Europa”.
Os estragos deste egoísmo não vão desparecer e um dia virão bater à nossa porta. Não é difícil imaginar como. Também nós esperamos “crescer” nos próximos anos com os fundos comunitários, uma dádiva dos países que são contribuintes líquidos, ou seja, dos contribuintes alemães. Só por ingenuidade é que nós pensamos que o mesmo argumento que é usado para os gregos não pode virar-se contra nós. Não fazemos parte dos “preguiçosos” do sul? Por que razão um honesto e trabalhador operário especializado numa fábrica da Renânia-Vestfália vai ter que pagar dos seus impostos para esses portugueses que “vivem à nossa custa” quando um seu companheiro alemão da Pomerânia ganha metade do que ele ganha?
A Caixa de Pandora está aberta. E Pandora era grega.